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UTOPÍA Y PRAXIS LATINOAMERICANA. AÑO: 22, n°. 79 (OCTUBRE-DICIEMBRE), 2017, PP. 71-81 REVISTA INTERNACIONAL DE FILOSOFÍA Y TEORÍA SOCIAL

CESA-FCES-UNIVERSIDAD DEL ZULIA. MARACAIBO-VENEZUELA.


Africanidades e educação


Africanities and Education Africanidades y educación Ademir BARROS DOS SANTOS

Universidade de Sorocaba, UNISO, S-P, Brasil.


RESUMO


Abordando os efeitos dos valores civilizatórios de matriz africana e suas eventuais possibilidades nos processos escolares, este artigo busca, primeiramente, desmistificar diversos significados apostos, pejorativamente, a elementos desta matriz; a seguir, se volta para a apresentação das bases culturais presentes nesta visão de mundo, de forma a possibilitar a visualização das diferenças entre a mesma e o entendimento ocidental disseminado sobre estas sociedades, a partir da Europa estendida, ou seja: da expansão da cultura europeia sobre terras conquistadas. Isto, com o intuito de apresentar tais valores como possibilidades para o trato pedagógico, quer escolar e oficial, quer não.

Palavras-chave: Africanidades; Educação; Filosofia africana; Religiosidade africana.


ABSTRACT


Addressing the effects of the civilizational values of the African matrix and its possibilities in school processes, this article seeks, firstly, to demystify several meanings, pejoratively attached to elements of that matrix; then, it turns to the presentation of the cultural foundations present in this world view, in order to allow the visualization of the differences between that vision

and the Western understanding which is disseminated in these societies, from the extended Europe, that is, from the cultural expansion over conquered lands. This exercise aims at presenting such values as possibilities for pedagogical treatment, whether being academic and official or not.

Keywords: Africanities; Education; African Philosophy; African religiousness.


RESUMEN


Abordando los efectos de los valores civilizatorios de matriz africana y sus eventuales posibilidades en los procesos escolares, este artículo busca, primero, desmitificar diversos significados impuestos, peyorativamente, a elementos de esta matriz. A continuación, se vuelve a la presentación de las bases culturales presentes en esta visión de mundo, para posibilitar la visualización de las diferencias entre la misma y el entendimiento occidental diseminado sobre estas sociedades desde la Europa ampliada, o sea: desde la expansión de la cultura europea sobre tierras conquistadas. Esto, con el propósito de presentar tales valores como posibilidades para el trato pedagógico, tanto escolar y oficial, cuanto no.

Palabras clave: Africanidades; Educación; Filosofía africana; Religiosidad africana.


Recibido: 29-06-2017 ● Aceptado: 06-08-2017


INTRODUÇÃO

A expansão territorial europeia, iniciada nos primórdios do século XVI, trouxe consigo o ideal de disseminação da cultura ali desenvolvida como única em condições de levar o mundo ao desenvolvimento da excelência social.

Com esta visão, aquela cultura foi imposta aos povos encontrados, como hegemônica e padrão universal, em detrimento de todas as outras com que se confrontou. Isto ocorre por considerá-las inferiores ou atrasadas, relegando-as a segundo plano, ao desprezo ou, no extremo, ao extermínio.

Decorre deste foco o fato desta cultura deixar de apropriarem-se, espontaneamente, de valores civilizatórios outros, quando não originados na própria fonte, entre os quais a religiosidade que, a princípio, serviu de motor à mencionada expansão, justificando visões que levaram os europeus a considerarem-se arautos do divino.

É com esta compreensão que, para os anglicanos, a conquista das Américas significava, segundo aponta Bosi1, perform the ways of God2, para os ibéricos e muitos de seus seguidores, a catequese indígena, assim como a escravização de africanos, supunha, pelo menos segundo os Sermões XIV e XXVII do Pe. Vieira3, o necessário estágio de purificação, a preparar a Salvação após a morte.

Foi assim pensando que os europeus em seu processo de expansão, quando se depararam com as culturas exógenas, por consequência, nada mais objetivaram que conquistar os povos encontrados pela via da destruição ou desclassificação cultural.

Este artigo se coloca, portanto, a partir dos valores gerados na matriz africana apresentados na diáspora, no enfrentamento às posturas negativas sobre as negritudes, ainda tão atuantes em nosso mundo social atual.


ORIGEM DA CULTURA AFRICANA NAS AMÉRICAS

Não parece possível compreender a cultura de matriz africana transplantada, compulsoriamente e via escravização, para as Américas, exceto se as vistas se voltarem para a religiosidade destes povos, vitimados no processo.

Isto porque tinham eles, na religiosidade, a formatação das sociedades locais em todos os sentidos, sendo dela que se depreendem seus valores civilizatórios4. Além disto, como escravos e provindos, especialmente, da costa atlântica em direção às Américas, estes africanos somente trouxeram, de si, sua cultura. Cujo assento enraizava-se, apenas, na religiosidade.

Porém esta religião, embora também enquadrada, assim como o catolicismo e segundo Thornton5, no modelo “revelação contínua”, era vista, pelos colonizadores, como intolerável adoração ao demônio. Portanto, ou era reprimida, ou desprezada. Decorre que os fundamentos religiosos trazidos pelos


  1. BOSI, A (1992). Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, p.15.

  2. Em tradução livre: percorrer os caminhos do Senhor; alternativamente, seguir os comandos de Deus.

  3. Sobre o tema, ver Saraiva de Sousa, J Francisco. “Padre António Vieira: os escravos negros e a devoção do Rosário”. Disponível em: <http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2012/02/padre-antonio-vieira-os-escravos-negros.html>. Acesso em 22 nov.2016. Também disponível em <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01872.html>. Acesso em 30 nov.2016; além destes, Literatura brasileira: Textos literários em meio eletrônico. Sermão XIV (1633), do Padre Antônio Vieira. Edição de referência: Sermões. v. V Erechim: Edelbra, 1998. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf. pdf>. Acesso em 30 nov.2016.

  4. MUNANGA, K (1984). “O universo cultural africano”, África-Brasil, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, vol.14, n°. 7 a 10, pp. 64-74, jul a ou, p. 70: “um conjunto de traços culturais comuns a centenas de sociedades da África subsaariana”.

  5. THORNTON, JK (2004). A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus / Elsevier.


    africanos para as Américas, viram-se relegados à consistente desclassificação. Isto quando não temidos e vigorosamente enfrentados pelo Estado, exercitando seu poder de violência legalizada.

    Cabe, portanto, desmistificar elementos desta cultura; não com fins catequéticos, mas sim, para expô-los como significantes e estruturantes da socialização de matriz africana, incluindo-se, aí, os efeitos didáticos deste modelo, mesmo sem enfrentar o modelo europeu tradicional.


    AJUSTES ETIMOLÓGICOS

    De início, parece necessário ajustar-se alguns termos aplicados, pelo menos no Brasil, a elementos da cultura de matriz africana, especialmente em seu viés religioso.

    Isto porque tais termos são utilizados, consistentemente, com intuito pejorativo. Quem os utiliza sequer se preocupa em conhecer a etimologia dos mesmos que, por via da cultura disseminada, consolidou-se distorcida, com o que perpetuou, consistentemente, a conotação de inferioridade que a constância de tal uso cimentou.

    Assim, por exemplo, com o termo candomblé: embora o sentido cultural e pejorativo com que o termo é utilizado pelo vulgo, a palavra, em si, sequer tem sentido religioso, e muito menos o significado de feitiçaria, de adoração ao demônio, conforme é comumente tratado.

    Na verdade, candomblé parece fruto, especialmente, dos processos de resistência cultural a que os africanos se viram obrigados, diante do escravismo institucional e estruturante da sociedade de então.

    O dicionarista Lopes6, assim descreve o termo: “(1) Tradição religiosa de culto aos orixás jêje-nagôs.

    (2) Celebração, festa dessa tradição; xirê, (3) De origem banto mas de étimo controverso. Para A. G. Cunha é híbrido de candombe mais o iorubá ilê, casa” (negritos nossos).

    Portanto e se, de fato, candomblé deriva da junção dos termos bantu candombe, festas, e do iorubá ilê, casa, o mesmo nada mais significa que folguedo em casa, festa no local de moradia; no caso, na senzala, por exemplo.

    No entanto, há que se notar que este termo, provavelmente, resulta, conforme já abordado, de estratégias de resistência cultural do africano escravizado.

    Isto é, diante de possíveis similaridades entre as comemorações de santos católicos com os deuses africanos, estes fiéis escravizados, muito provavelmente, tenham solicitado, àqueles colonizadores, o direito de também comemorar tais santos católicos. Mas, exteriormente, apenas!

    Como exemplo: os escravizados podem ter pedido para festejar Iansã junto à festa católica dedicada a Santa Bárbara, já que ambas as divindades, tanto a católica quanto a africana, são relacionadas aos raios e tempestades7.

    Outro termo que, em português, carrega conotação negativa, é macumba. Isto, apenas porque quem assim pensa, sequer desconfia que macumba é, simplesmente, o plural de cumba, já que, em idiomas da família bantu, as flexões ocorrem por prefixação, não por sufixação, como nos idiomas de origem latina.


  6. LOPES, N (2005). Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Cultural José Bonifácio.

  7. Virgem nascida na Nicomédia, atual Turquia, a santa católica é considerada protetora contra raios e tempestades; isto porque quando de sua morte por degolação, por haver-se recusado a renegar a fé cristã, um trovão soou com grande estrondo e um raio atingiu seu carrasco, que era seu próprio pai; daí deriva a fé em sua atuação contra os raios e tempestades, visto que este fato foi interpretado, por seus fiéis, como demonstração de revolta divina contra sua martirização. Já Iansã, é a deusa africana dos raios, do fogo e da tempestade; esposa de Xangô, com quem forma o “casal do dendê”; guerreira, o acompanhou, mitologicamente, até a morte, conforme relata PRANDI, R (2002). Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras.


No caso em tela, cumba é um instrumento, similar ao reco-reco e produzido a partir da árvore que lhe dá nome, na África Central; como é utilizado nos rituais sagrados, macumba nada mais significa que reco-recos rituais, sendo, macumbeiro, aquele que o toca. Apenas isto.

No mesmo andar o termo feitiço que, incorporado ao português pelo francês fetiche, remete a objeto fictício, ficto – do latim fictus – que simboliza o alvo que se quer atingir.

Poder-se-ia prosseguir pela análise de outros termos, tais como a diferença entre babalaô e babalorixá, pai-de-santo e filho-de-santo, por exemplo. Mas, o que acima vai, para demonstrar o que aqui se propõe, deve bastar.


BASES FILOSÓFICAS AFRICANAS

Como preâmbulo a este tópico, é preciso repisar que o africano, por escravizado, só pode transportar de si, na viagem transatlântica, sua filosofia que, em sua terra, tinha fundamento altamente religioso.

Partindo deste ponto de vista, torna-se necessário esclarecer como a religião desta matriz se apresenta a seu fiel, o que pode ser representado por uma pirâmide, subdividida em quatro corpos.

Tendo em vista esta figura, o africano enxerga, no topo desta pirâmide, o Criador, ao qual o iorubá denomina Olodumaré e/ou Olorum8: é deste Ser que emana toda a força vital, ou energia criadora, que o africano denomina asè.

Em nível imediatamente abaixo, estão os orixá e as iabá9, gerentes da distribuição desta energia para o mundo material. Desta forma, a cada orixá ou iabá, cabe a “gerência” de uma parcela deste asè, assim como, por exemplo, o é a dissociação da luz no arco-íris.

Esta distribuição abrange toda a natureza; para os seres humanos, no entanto, ela é, ainda, concentrada, filtrada e distribuída pelo nível logo abaixo, que é o da linhagem ancestral10.

Quanto ao fluxo do poder vital, circula, em princípio, em sentido divino-profano, ou seja, Olorum- natureza. Porém o ser humano, que é responsável pela manutenção desta, com quem partilha o asè, deve fazê-lo retornar, em parte, para o divino, via das oferendas que, na verdade, nada mais são que a demonstração de agradecimento pelo que a energia vital lhe permite obter, propiciando a sobrevivência harmônica do grupo.

Na figura 1, se encontra o esquema, em pirâmide, do que acabamos de expor. Note-se que a função do sacerdote não é a de conduzir seus fiéis ao encontro da divindade, mas de aproximar, harmonizando, o orum e o ayê, com o que a circulação do asè se completa.


8 De olu, senhor; odu, caminho do destino; maré, supremo; orum, o mundo místico, imaterial, em oposição ao ayé, o mundo real e material. Portanto, Olodumaré, senhor supremo dos caminhos do destino, e Olorum, senhor do mundo místico.

  1. Orixá é o termo pelo qual são denominadas as entidades místicas que o candomblé acredita gerirem a força, a possibilidade e a característica da ligação de cada fiel com o sagrado; o termo deriva da junção das palavras ori que, em iorubá, significa cabeça, mais que, no mesmo idioma, pode ser entendida com significado próximo a guardião; portanto, orixá é o ser divino que atua como guardião da cabeça de cada um, intermediando, portanto, a ligação entre os humanos e o poder divinizado que rege toda a natureza. Iabá, de ia = mãe, mulher, designa as “orixá” femininas. Obs: orixá, não orixás; iabá, não iabás; o plural africano, conforme já abordado, não se forma por prefixação.

  2. Ancestral, aqui, no sentido amplo, ou seja: inclui os antepassados mais os mais velhos da mesma linhagem.


    Figura 1

    Fluxo do poder divino na religiosidade africana. Fonte: elaborado pelo autor


    Ressalte-se que, neste esquema, o ser humano e a natureza estão no mesmo nível, o do mundo material. Portanto, para o africano que, compulsoriamente, trouxe sua visão de mundo para este lado do Atlântico embutida em sua religiosidade, o ser humano não é superior à natureza que o sustenta, mas, sim, responsável pela manutenção desta.

    Em outras palavras: para este africano e sua descendência cultural, a ecologia não é opção, é profissão de fé.

    Talvez caiba, agora, repisar, por necessário, o que significa asè para os fiéis deste culto. Asè é a força vital que, emanada pelo Ser Criador, permeia e mantém toda a existência, material e imaterial, no orum e no ayê.

    Assim sendo, após gerada pelo Criador, filtrada e direcionada pelos orixá/iabá e os ancestrais, o asè, na natureza, dissemina-se pelos membros do grupo, fortalecendo-se pela ação coletiva e possibilitando o realizar, no sentido material.

    Porém, esta força não é estática: está em constante movimento, fazendo a ligação entre os mundos material e imaterial, e sendo distribuída por toda a natureza, que deve ser cuidada e mantida pela humanidade.

    Portanto, sendo força que emana do Divino para a natureza, flui em sentido vertical; mas, entre os humanos, faz a ligação entre eles, ou seja: produz a horizontalidade, ao unir, indistintamente, todos os membros do grupo; daí a filosofia ubuntu11, esta palavra, mágica, que possibilita compreender porque, entre africanos, bem como entre os adeptos da religiosidade dali advinda, forma-se o sentimento de pertença, onde a individualidade vale bem menos que o grupo.

    Para melhor compreensão, pode-se dissecar ubuntu em quatro partes:


  3. Filosofia africana que deriva da máxima zulu umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Note-se que, segundo ensina Munanga, ntu significa pessoa e bantu, plural de pessoa, todo grupamento cultural que utiliza este termo com esta significação.


    Parte

    Tradução

    Característica

    Muntu

    Mu = o ser humano, cons- ciente

    O ser humano, topo e responsável pela natureza, capaz de manipular o asè.

    Kintu

    Ki = outros seres, não conscientes

    A natureza a ser cuidada pelo ser humano que, dele, de- pende.

    Huntu

    Hu = lugar e tempo

    A força, constantemente alterada, localizada na junção do espaço com o tempo.

    Kuntu

    Ku = qualidades sociais e naturais

    As qualidades da sociedade e da natureza: bonito, bom, verdade, mentira, etc.

    Quadro 1

    Dissecando o ubuntu. Fonte: elaborado pelo autor


    Assim sendo e segundo ensina Silva12, ubuntu é a filosofia que se refere à humanidade com os outros, porque assentada na capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem ao outro, de onde deriva a generosidade, a colaboração, o sincero desejo de harmonia entre os seres humanos.

    No entanto, embora tal filosofia se assemelhe à utópica universalidade pregada por diversas outras religiões, na africanidade, por assentar-se, de início, entre aos membros de cada grupo, de onde se expande13, ela, de fato, atua e se materializa. Daí decorre o já afirmado conceito de que o grupo é muito mais importante que o indivíduo.

    Como decorrência deste entendimento, o indivíduo só o é quando pertence a um grupo, o que o faz existir enquanto humano. Portanto, tudo o que é ruim para o indivíduo é ruim para o grupo, de onde decorre a obrigatoriedade, individual, de produzir o melhor possível para o grupo todo, mesmo quando em detrimento da vontade própria.

    Sobre o tema, Munanga ensina:


    Assim, a filosofia de participação na vida global do mundo, a busca do crescimento da força, a consciência da primazia do coletivo sobre o indivíduo, constituem um outro aspecto da africanidade. Evidentemente, essa visão ontológica é expressa de diversas maneiras, mas a coisa existe em todas as culturas; só a maneira de expressar é diferente14.


    Por outro lado, há que se compreender que o asè, ao abranger toda a comunidade, porque o faz a partir dos ancestrais15, formata o grupo estendido e a família estendida, o que compreende não só os vivos, mas também, e principalmente, a linhagem que permeia todo o grupo. Sobre o tema, vale a pena recorrer, novamente, a Munanga, mesma página:


    Isso é um dado fundamental que se encontra em toda a África. A dependência da linhagem, essa união entre vivo e morto, cria uma dependência do indivíduo em relação à linhagem. O cordão umbilical nunca é cortado inteiramente, mesmo quando tiverem a idade madura [...]. A solidariedade do parentesco, no caso


  4. SILVA, DM (2009). Por que riem da África? São Paulo: Terceira Margem (Coleção Percepções da Diferença. Negros e brancos na escola, 6).

  5. Foi com isto em mente que o bispo Desmond Tutu, sob o governo Mandela, promoveu a reconciliação entre brancos e negros, na África do Sul pós-apartheid.

  6. MUNANGA, K (1984). Art, cit., 70.

  7. Compreendidos como o conjunto dos antepassados e os mais velhos.


    da morte e da integração dos filhos do morto na linhagem, é muito importante. É dentro do contexto da linhagem que o indivíduo aprende seus papéis dentro da sociedade [...]16.


    Ainda ele, mesma página, um tanto mais além: “Cultuando os ancestrais, ao mesmo momento em que ele vive a solidariedade da linhagem, o jovem africano é introduzido aos valores básicos de sua cultura: força, fecundidade, harmonia com a natureza – fundamentos da filosofia africana”17.

    É desta visão que decorrem algumas incontornáveis posturas sociais: o respeito ilimitado aos mais velhos, além do dever, de todos, de cuidar de todos, para que todos cuidem do indivíduo e da natureza.


    AS BASES CULTURAIS AFRICANAS, MATERIALIZADAS

    Como efeito do que acima foi exposto, algumas posturas são produzidas como efeitos sociais efetivamente atuantes, que assim se interligam:

  8. Ibidem.

  9. Ibidem.

18 BÂ, Amadou Hampâté (2003). Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, pp. 182-186.

  1. Recordando: o termo ancestral, aqui, abrange o conjunto formado pelos antepassados e os mais velhos.


  2. CAPUTO, SG (2012). Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, p. 138.

  3. Que, na verdade, são rezas, saudações, orações.


    Até porque sobre o tema já se debruçaram, no Brasil e entre outros, Santos e Luz22, apresentando sua experiência assentada na teatralização dos mitos religiosos de matriz africana.

    Por outro enfoque vem Caputo23 que, em vinte anos de pesquisa ininterrupta em terreiros, apresenta não só interessantíssimas possibilidades de ensino com base na matriz cultural aqui abordada, mas também e tristemente, o enfrentamento que adeptos de religiões desta matriz suportam no ambiente escolar oficializado.

    Ainda no viés da pesquisa, recentes estudos vêm sendo desenvolvidos em ambientes de pós- graduação, entre outros, na Universidade Federalde São Carlos, especialmenteemseu campus Sorocaba.

    Dentre estes, a dissertação de mestrado de Silva24 que, abordando modelos sugeridos e aplicados em variados ambientes de matriz africana, foca na experiência multicultural do Centro Cultural Quilombinho, em que tais valores servem de base a toda a didática ali aplicada.

    Mais profunda e recentemente, Santos25 descreve, em seu trabalho de conclusão de curso, a experiência por ela exitosamente desenvolvida em classe de ensino infantil na qual, assentada nos valores civilizatórios acima elencados, buscou criar barreiras ao desenvolvimento do racismo estrutural nas personalidades, ainda em formação, postas a seus cuidados.

    Neste ponto, cabe voltar os olhos para Rocha26, para quem os valores aqui abordados podem servir como fundo à prática pedagógica assentada nas africanidades. É com este foco que ela opina, à página 51:


    Pedagogicamente, penso que a circularidade possa favorecer uma relação de respeito e de aprendizado entre os(as) estudantes e os(as) professores(as); [...] enfim, entre todos os sujeitos sociais que atuam nesse contexto. O(A) professor(a), como mediador de conhecimentos e valores, não será a autoridade e o(a) aluno(a), o receptor, mas estará, hierarquicamente, a serviço da ativação e articulação das potencialidades dos(as) estudantes, numa relação ética e respeitosa. (negritos nossos).


    Resumindo: com este foco, entre professor e aluno deve permear o respeito, a atenção, a cumplicidade, o reconhecimento de que o aprendizado é mútuo, conforme já ensina Freire: “Quem forma, se forma e re-forma ao formar, e quem é formado, forma-se e forma ao ser formado. [...]. Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender”27.

    Entre outros valores abordados por Rocha28, a solidariedade e o comunitarismo remetem, certa e diretamente, aos valores comunidade e complementariedade acima já abordados; isto porque, segundo ela, mesma página, “o comunitarismo torna equânime todos os participantes do processo educa, ativo sem perder de vista a singularidade de cada um no processo”, o que, necessariamente, implica na colaboração intergrupal, remetendo à solidariedade.


  4. SANTOS, MD & LUZ, MA (2007). O rei nasce aqui: Oba Biyi, a educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô.

  5. CAPUTO, SG (2012). Op. cit.

  6. SILVA, MM de C (2014). Africanidades e educação popular: uma análise de propostas e vivências pedagógicas de movimentos negros em Sorocaba, 133 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba.

  7. SANTOS, APS (2016). A construção de identidade étnico-racial no contexto da educação infantil, 83 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialista em educação infantil) – Programa de Especialização em Docência em Educação Infantil, Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba.

  8. ROCHA, RM de C (2009). Pedagogia da diferença. Belo Horizonte: Nandyala.

  9. FREIRE, P (1987). Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 25.

28 ROCHA, RM de C (2009). Op. cit., p.54.


É neste sentido que, segundo a mesma autora, “solidariedade e comunitarismo são partilha e socialização do que se possui”29.

Prossegue ela à mesma página, opinando que “o comunitarismo, tendo como base a solidariedade, aponta alternativas pedagógicas positivas de construção de conhecimento e trato dos conteúdos escolares”30, pois “as propostas de trabalho vivenciadas coletivamente proporcionam aprendizagens interativas, em que valores como fraternidade, partilha e aceitação negociada terão que ser exercitadas”.31

A autora ainda afirma: “a circularidade e o comunitarismo aí se completam. O comunitarismo leva em conta a singularidade individual no processo de construção coletiva”32, fazendo com que o conhecimento individual circule entre toda a comunidade, o que o torna, por consequência, conhecimento solidarizado.

Assim sendo e por via de consequência, reforça a união do grupo, colocando barreiras aos perniciosos processos excludentes, tais como o preconceito, a discriminação, a rejeição infundada e o racismo.

Quanto à corporeidade, a mesma autora33 informa que, dentro da cosmovisão africana, o corpo é um universo e uma singularidade. Ao apoiar esta informação, recorre a Oliveira34, que opina que o corpo “é a unidade mínima possível para qualquer aprendizagem”, mas “a unidade máxima para qualquer experiência”.

Portanto, segundo ela ensina à mesma página, “na cultura negra, o corpo é fundamental, pois a força está no corpo. Não se concebe o corpo separado do todo. Ele faz parte do ecossistema”35. Então, prossegue: “mais que um referente biológico, o corpo é território de cultura. O corpo é o que somos, e o que somos é construção da comunidade a que pertencemos”36.

Ora, se assim é, a utilização do corpo como instrumento didático remete, necessariamente, à ludicidade, que pode ser utilizada no sentido “fazer para saber”. Ou seja, o ensino a partir da experiência, o que, via de regra, irá provocar a dúvida, permitindo que a resposta não venha, apenas, do professor para o aluno como algo imposto mas, sim, como explicação às questões por este levantadas.

Em outras palavras: é o aluno invertendo a posição tradicional do ensino ocidental, posto que passa de agente passivo, repositório da “educação bancária” tão condenada por Paulo Freire37, a agente ativo que, curioso, busca respostas em quem confia: o professor.

Parece evidente que, fluindo o conteúdo neste sentido inverso, o aprendizado carrega chances muito maiores de se tornar efetivo e consolidado. Não há como contornar a importância da ancestralidade a ser utilizada como instrumento didático, quando vista como o irrestrito respeito aos mais velhos, como já acima abordado.

Ressalte-se que não se trata, apenas, do respeito do aluno ao professor, não! Este valor cultural traz consigo, potencialidades outras em sua aplicação como instrumento didático.


  1. Ibidem.

  2. Ibidem.

  3. Ibidem.

  4. Ibidem.

  5. Ibíd., p. 60

34 OLIVEIRA De, ED (2003). Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, p. 11.

  1. Ibíd, p. 60.

  2. Ibidem.

  3. FREIRE, P (1987). Op. cit..


Como exemplo, pode ser utilizado na promoção da coleta de estórias de vida, em que os alunos, buscando levantar a historicidade da própria família, podem trazer para a escola, elementos culturais não conhecidos e, até mesmo, provocar a teatralização das estórias levantadas. Talvez, até de estórias combinadas, reforçando o sentido da complementariedade comunitária.

Se assim for, o elemento lúdico, a partir da possível adoção e desenvolvimento da música e da dança estará presente, bem como a corporeidade, a aliar-se, possivelmente, à oralidade, à compreensão do comunitarismo e à solidariedade, visto que o teatro, conforme aqui abordado, não pode ser espetáculo individual; até porque parece ter o potencial, de promover a autoestima do alunado.

Alternativamente, pode-se promover o convite a membros da sociedade para a contação das próprias estórias, com o que esta comunidade poderá sentir-se inserida no contexto escolar, alvo tão buscado, mas de tão difícil atingimento, ainda nos dias atuais.

Poder-se-ia, talvez, prosseguir por este caminho, abordando possiblidades reais da aplicação dos valores culturais de matriz africana em ambientes escolares tradicionais; porém, não é este o objetivo deste artigo, cujo alvo pouco vai além das provocações aqui apresentadas.


Año 22, n° 79


Esta revista fue editada en formato digital y publicada en octubre de 2017, por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela


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