Volumen 32 Nº 4 (octubre/diciembre) 2023, pp.201-214

ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10107885

A moralidade na construção do Estado Nacional em Moçambique de 1975 a 2004

Alcides André de Amaral* y Andrea Borges Leâo**

Resumo

A discussão sobre a questão moral em Moçambique parte de questionamentos filosóficos cuja resposta implica sempre a necessidade de diagnóstico e de “cura” de um mal social. Raramente se coloca questionamentos sobre como a moralidade, concretamente a justiça enquanto “valor moral”, é construída a partir do próprio “tecido social”. Duas perguntas se impõem: como os atores sociais definem o que é “justo” e “injusto”, “bom” e “mau”? Como a justiça é concebida politicamente em diferentes contextos (e temporalidades) políticos que determinaram diferentes formas de relações de poder na história de Moçambique? Tais questionamentos nos colocam no campo da Sociologia da Moralidade. E, talvez por isso, pouco interesse têm tido dos filósofos deixando algum vazio na abordagem da questão moral. O presente artigo visa a problematizar a construção desse vazio. A partir de uma análise de documentos oficiais, e com base na Análise de Discurso com enfoque na categoria “justiça” como valor moral, constata-se que a dinâmica e a forma da moral em Moçambique enquanto um país recente, dá-se a partir de dois diferenciais de relações políticas de poder, a saber: a de abertura para constituição de viés revolucionária e de abertura para uma democracia de viés liberal. Constatado estas formas e dinâmicas, considera-se que uma sociologia da moralidade no país teria que dar conta dos contextos nos quais a questão moral é determinada e das condições sobre as quais ela é possível. A preocupação dessa sociologia não pode ser do que “deve ser”. Ademais, este “deve ser” passa a ser igualmente o objeto da investigação sociológica.

Palavras-chave: Sociologia da Moralidade; Justiça; moralidade; relações de poder.

*Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, Brasil. E-mail: alcidesamarl017@gmail.com

ORCID:  0000-0002-1205- 1417

**Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, Brasil. E-mail: aborgesleao@gmail.com

ORCID: 0000-0001-8404-6767

Recibido:20/11/2023 Aceptado 14/03/3023

Morality in the construction of the National State in Mozambique from 1975 to 2004

Abstract

The discussion on the moral issue in Mozambique starts from philosophical questions whose answer always implies the need for diagnosis and “cure” of a social evil. Questions are rarely asked about how morality, specifically justice as a “moral value”, is constructed from the “social fabric” itself. Two questions arise: how do social actors define what is “fair” and “unfair”, “good” and “bad”? How is justice politically conceived in different political contexts (and temporalities) that determined different forms of power relations in the history of Mozambique? Such questions place us in the field of Sociology of Morality. And, perhaps for this reason, there has been little interest from philosophers, leaving some void in the approach to the moral issue. This article aims to problematize the construction of this void. From an analysis of official documents, and based on Discourse Analysis focusing on the category “justice” as a moral value, it appears that the dynamics and form of morality in Mozambique as a recent country, occurs from of two differentials in political power relations, namely: openness to the constitution of a revolutionary bias and openness to a democracy with a liberal bias. Having noted these forms and dynamics, it is considered that a sociology of morality in the country would have to account for the contexts in which the moral issue is determined and the conditions under which it is possible. The concern of this sociology cannot be about what “should be”. Furthermore, this “must be” also becomes the object of sociological investigation

Keywords: Sociology of Morality; Justice; morality; Power relations

Introdução

A questão moral é um debate que atravessa toda a história da Sociologia, desde os clássicos até aos autores mais contemporâneos. Nesse sentido, qualquer proposta de reflexão sobre essa questão, independentemente do ponto de vista e do campo a partir do qual a reflexão é feita, precisa, necessariamente, levar em conta essa transversalidade do problema moral. Isto é, deve-se levar em consideração a complexidade que caracteriza o campo da Sociologia Moral (POWEL, 2010). Por outras palavras, é necessário levar em consideração a variabilidade da questão moral no contexto e no tempo da normatividade definida pela própria realidade social, num processo de articulação entre os princípios universais e o contexto particular no qual se desenvolve a própria normatividade (HABERMAS, 1998).

A partir de um olhar que se encerra na constituição do político em Moçambique, pretende-se aqui pensar sobre essa articulação particular. Nesse contexto, como a justiça, enquanto “valor moral”, é construída a partir dos próprios tecidos social e político moçambicano? Mais especificamente, como os atores sociais definem o que é “justo” e “injusto”? Tais questionamentos nos colocam no campo da Sociologia da Moralidade. Talvez seja por isso que, no caso de Moçambique, e como muito brevemente procuraremos discutir mais adiante, questionamentos assim colocados parecem escapar da preocupação e do interesse dos filósofos deixando algum vazio na abordagem da questão moral.

O presente artigo se propõe a suprir ou a contribuir no suprimento desse vazio. A pergunta concreta que orienta a presente reflexão é, do ponto de vista da constituição do político, como é concebida a justiça, enquanto valor moral, em diferentes contextos (e tempo) políticos que determinaram e determinam diferentes formas de relações de poder na história de Moçambique? A importância desse questionamento assenta na proposta de uma Sociologia da Moralidade cuja finalidade é a construção dessa sociologia a partir dos atores sociais. Assim, o suprimento do referido espaço vazio está na proposta de uma reflexão sobre a questão moral a partir de um campo diferente do filosófico estabelecendo, assim, as bases sobre as quais assentaria um novo campo de reflexão: o campo da Sociologia da Moralidade. De acordo com Powel (2010), são, fundamentalmente, três questões que caracterizam o problema moral formulado nesse campo. A saber: O que é Moralidade? Onde surge a Moralidade? Quais são as suas formas e dinâmicas?

Segundo Powel, diferentes autores, como os clássicos Weber, Durkheim e Marx ou os contemporâneos como Habermas, Bourdieu ou Foucault, procuraram dar respostas a estas perguntas estando os dois últimos focados na questão de poder. Não se pretende, entretanto, desenvolver esta longa discussão aqui. O objetivo do presente trabalho é de, a partir da noção de “justiça” enquanto “valor moral”, responder parcialmente a última questão. Isto é, quais são as formas e dinâmicas que este valor tomou na história de Moçambique desde 1975 com a constituição que instaura a República Popular de Moçambique de orientação marxista-leninista caracterizada por uma vontade de ruptura radical com a gestão colonial (por isso de viés revolucionário) a 2004 altura da aprovação de uma nova constituição que instaura uma República de Moçambique que, sobre os princípios nela consagrados, caracterizados pela abertura à pluralidade política e aos preceitos liberais, assentam as bases da consideração, por assim dizer, de uma “justiça dos outros” (PHARO, 2004)?

Em Moçambique, a Sociologia se furta, por exemplo, do trabalho sobre a justiça como valor moral. De fato, no país, a questão moral é geralmente discutida do ponto de vista do senso comum e do ponto de vista filosófico e religioso. A apropriação filosófica da referida questão, pelo viés da educação, principalmente com a introdução do ensino de filosofia ao nível do ensino médio (11ª e 12ª classe de acordo com o Sistema Nacional de Educação de Moçambique), parece ter como finalidade dotar os alunos de “valores morais” como medida corretiva do que os artífices do Programa Curricular da disciplina chamam de “déficit moral” nos jovens e na sociedade (GONÇALVES, 2009).

Por outro lado, pode-se depreender daí a apropriação moralista, e assimilacionista, isto é, mudar o comportamento das pessoas a partir dos nossos próprios valores morais, da questão moral. Mas não só. Há um domínio filosófico na reflexão sobre esta questão em Moçambique. A definição do que deve ser, ou como se deve institucionalizar as noções de “justiça”, de “bom” ou de “mau” é vista como da prerrogativa da filosofia cuja finalidade é, numa perspectiva positivista ao estilo durkheimiano, melhorar a sociedade. Por exemplo, as reflexões de Castiano, na coletânea sobre o “Pensamento engajado: Ensaios sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política” (NGOENHA E CASTIANO, 2011) são excelentes contribuições para a noção de justiça na construção de uma nação que se deseja pautar pelo “espírito da democracia” (CASTIANO, 2011, p. 63-74).

Para Castiano, a justiça, como “justiça restauradora” ou de “reconciliação”, e não “punitiva”, isto é, a justiça que procura “curar” as condições nas quais o “mal” é possível, funcionaria não só como princípio para costurar o tecido harmonioso das sociedades e dos países africanos, como também como princípio universal num contexto em que o desafio se encontra na preocupação universal de “onde ir buscar uma justiça que compreenda os imperativos da catarses através do reconhecimento do outro e da reconstrução da relação social?” (CASTIANO, 2011, p. 72). A resposta para esta pergunta o autor encontra no que chama “justiça restaurativa” (“Ubunto”). Isto é, no “reconhecimento público do mal cometido, o arrependimento, a vontade de reintegrar à comunidade com uma nova atitude relacional” (idem). Nesse contexto, a figura do filósofo funcionaria como “médico” ou “curandeiro”. Entretanto, neste trabalho, aborda-se a moralidade numa perspectiva sociológica da moralidade.

Metodologia do trabalho.

Para responder à questão que orientou a pesquisa que embasa o presente trabalho (como é concebida a justiça em diferentes contextos (e tempo) políticos que determinaram diferentes formas de relações de poder na história de Moçambique?) far-se-á uma análise documental. Criteriosamente selecionados, foram privilegiados documentos oficiais como Sistema Nacional de Educação (Lei nº 4/83) disponibilizada pelo Instituto de Estudos e Econômicos (IESE) neste link Lei/83 (iese.ac.mz); Política Nacional de Educação e Estratégia de sua implementação do MINED de 1995 (que se pode encontrar na plataforma academia.edu) ou Plano Estratégico da Educação do MINED de 1999-2003 (disponível aqui (silo.tips)); ou a Lei 6/92 (que altera o Sistema Nacional da Educação de 1983) que se pode encontrar no mesmo site.

O privilégio dado a esses documentos, ligados à educação, cinge-se ao fato de a questão moral, como já se referiu, ser vista sob ponto de vista da “moralização” dos que se consideram ter “déficit moral”. Todavia, considerando que a educação, principalmente enquanto um “Sistema Nacional”, tem como órgão principal o Estado, alguns documentos mais gerais foram igualmente analisados: a Constituição da República Popular de Moçambique (de 1975); a Constituição da República de Moçambique (de 1990); e a Constituição da República de Moçambique (de 2004) todas que podem ser encontrados no site “The Electoral knowledge Network” (disponível aqui ACE Electoral Knowledge Network — (aceproject.org)) ou no site Mozambique History Net.

Finalmente, considerando que o Estado é governado por um mesmo partido, seja na primeira ou na segunda constituições, de partido único e centralizado (1975) e de pluralidade política e de mercado (1990/2004), respectivamente, alguns documentos do partido são também analisados: o Relatório do Comité Central ao 3º Congresso de 1979 (disponível aqui Relatório do Comité Central ao V Congresso in SearchWorks catalog (stanford.edu)); mas também alguns documentos da sociedade civil, a saber, o Boletim sobre o processo de paz em Moçambique da AWEPA de 1990 e 2001 (disponíveis aqui Boletim sobre (open.ac.uk) e Política Nacional De Educação E Estratégias De Implementação/Programa Do Governo Para 1995/1999 (www.portaldogoverno.gov.mz). O documento da AWEPA (Association of European Parliamentarians with Africa) serviu apenas como simples documentos de consulta.

Para a análise dos documentos usou-se a Análise do discurso (AD) concebido numa abordagem específica. A recorrência a AD nos permitiu não só a apreensão do “texto”, mas, também, a relação entre o “texto” e o “contexto” (DARCH E HEDGES, 2018). Partimos do pressuposto, corroborado por Charaudeau e Maigueneau (2018), de que o discurso, não só é contextualizado, como também é orientado no tempo e assumido por uma instância que expõe o seu ponto de vista, também ele contextual, através da linguagem. Esta difere do “discurso” na medida em que este é apenas uma linguagem particular usada num contexto também particular.

Nesse sentido, o temo “justiça” será lida dentro do contexto do próprio texto. Por exemplo, o seu uso na Constituição da República de 1975 considerando o contexto político particular desse período. Considerando isso, a “justiça”, enquanto valor moral, é concebido como variável dependente. Isto é, que é determinada pelo contexto específico de “relações de poder”. Esta é, então, a variável independente e é concebido a partir da perspectiva de Foucault. Isto é, como exercício de poder considerando as suas diferentes características: desigualdade e dinâmica, assimetria, intencionalidade e não subjetividade (FOUCAULT, 2014). É nesta perspectiva que pretendemos, então, fazer uma genealogia da noção de “justiça” como valor moral no contexto das relações políticas de poder em Moçambique.

Apesar de não nos pautarmos por uma abordagem essencialmente cognitivista, no sentido de não nos focamos aqui no “sentimento de justiça” (BOUDON, 1994), temos na superfície a preocupação da emergência dos valores morais prestando atenção nos contextos nos quais os atores morais aderem a estes valores, concretamente o da “justiça”. Nesse sentido, não partimos de qualquer definição do que entendemos por “justiça”. Pretendemos inferir a partir da própria análise dos resultados procedida conforme o seguinte esquema:

Fig. 1: Modelo de Análise


A figura acima ilustra o modelo da análise adotado no presente trabalho. Como se vê, o que se pretende é articular, a partir de um mesmo quadro interpretativo, o contexto (“Relações de poder”), os valores morais (“justiça”) e a relação entre ambos. Assim, questões como quantas vezes é mencionado a palavra “justiça” e qual sentido prático que ela expressa no texto determinado (ou considerado no “contexto do texto” no qual ela é mencionada) a partir do contexto político do dado documento são alguns exemplos de procedimento analítico. É nesse sentido em que o conceito de justiça será construído.

Resultados da pesquisa

Antes de “colocarmos à disposição” os resultados da pesquisa, alguns reparos metodológicos. Algumas categorias de análise, fora da principal “noção de justiça”, foram consideradas, se e somente se, o documento não apresentasse a categoria de análise aqui em consideração. Por outras palavras, se na análise por nós feita sobre a Lei 6/92, do Sistema Nacional da Educação (SNE), não constatámos menção do valor moral “justiça”, procuramos saber, por exemplo, só, e somente só, num contexto comparativo (por exemplo, em relação a mesma lei, mas de 1983, isto é, a lei 4/83), principalmente quando constatamos que esta última faz menção ao valor moral “justiça”, quantas vezes a referida lei faz menção dos termos “moral” e “valores” e em que contexto textual.

De fato, a primeira constituição da república, designada Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM), aprovada em 1975, e revisada em 1978, porém, aqui analisamos somente a fundante, faz menção do valor “justiça” apenas duas vezes e em contextos textuais muito particulares, como se apresenta no quadro seguinte.

Tabela 1: Contexto do texto “Justiça social” nos artigos 13 e 50 da Constituição da república Popular de Moçambique.

Contexto 1

Concernente à sujeição de impostos sobre o rendimento e a propriedade privada — “O rendimento e a propriedade privada estão sujeitos a impostos progressivos, fixados segundo critérios de JUSTIÇA SOCIAL” (Art. 13);

Contexto 2

Concernente ao processo de investidura do Presidente da República — “Juro pela minha honra de militante da FRELIMO dedicar todas as minhas energias à defesa, promoção e consolidação das conquistas da revolução, ao bem-estar do povo moçambicano, fazer respeitar a constituição e FAZER JUSTIÇA A TODOS MOÇAMBICANOS” (Art. 50).

Nas duas citações exemplificadas no quadro, assim como nas demais apresentadas durante o texto, as palavras destacadas são da nossa inteira responsabilidade. Entretanto, é preciso compreender bem a expressão “Fazer justiça aos Moçambicanos” destacada no segundo contexto. É possível aventar a hipótese de que, pelo contexto, a expressão “fazer justiça” é em referência ao recente processo de libertação da opressão colonial português. Todavia, falta-nos espaço, mas também tempo, para aprofundar esta reflexão. De qualquer forma, se a constituição fundante faz uma economia na menção do valor “justiça”, o mesmo já não se pode dizer do Relatório do Comitê Central do Terceiro Congresso da FRELIMO, de 1979. Neste, foi mencionado doze vezes (respectivamente, páginas 5, 71, 77, 78, 101, 107, 158 e 159), considerando os mais diferentes contextos textuais, alguns deles exemplificados na tabela seguinte.

Tabela 2: Relatório do Comitê Central do Terceiro Congresso da FRELIMO (1979)

Contexto

Página

Texto

1

71

“A abolição da advocacia privada liquidou o negócio da JUSTIÇA capitalista, condição da edificação do sistema de JUSTIÇA Popular em todo o País”

2

77

“Durante a guerra tratávamos um duro combate contra as concepções erradas e não receamos a confrontação aberta no nosso seio para impormos a JUSTIÇA da política de clemência”

3

78

“Foi a nossa própria experiência que nos mostrou que todos aqueles que honestamente desejam a JUSTIÇA, são pelo socialismo.”

Entretanto, parece que em documentos oficiais, como leis, por exemplo, este “esbanjamento” do valor moral “justiça” tem sido tomado com muita contenção no que concerne a menção. De fato, se nesse relatório há uma abundância, o mesmo já não se pode dizer da já mencionada Lei 4/83 de 23 de março — (SNE). Nenhuma menção encontramos nele, apesar de, em termos do contexto do texto do documento, a lei se aproximar flagrantemente ao relatório analisado. De qualquer forma, tudo isso parece compensar com a frequência da menção do termo “valor” (cerca de cinco vezes) e em mais variadas expressões: 1) “Valores culturais” (Introdução. Parágrafo primeiro); 2) “Códigos de valores políticos, cultural e sociais” (parágrafo segundo); 3) “Valores negativos da formação tradicional” (Art. 1, alínea c); 4) “Valores da sociedade” (Art. 4, ponto 1); 5) “Valores morais e culturais” (Art. 33, Ponto 3).

O mesmo acontece com o termo “moral”, entretanto, este não ultrapassando quatro menções. Porém, os termos aparecem indicando objetivos concernentes à formação dos professores enfatizando sempre a criação do “Homem novo”, a ruptura com a colonização e a luta contra o obscurantismo. A tradição, por exemplo, torna-se, também, a questão central. Por exemplo, como consagra a alínea c, do capítulo I, art. 1: “A educação é o instrumento principal da criação do Homem Novo, homem liberto de toda a carga ideológica e política da formação colonial e dos VALORES NEGATIVOS da formação tradicional capaz de assimilar e utilizar a ciência e a técnica ao serviço da Revolução”

Mas, se neste contexto a economia da menção do valor “justiça” foi escasso, mais escasso foi com a constituição de 1990 e a sua revisão de 2004 apesar de, tomando o conjunto (criação e revisão, respectivamente), a menção soma cerca de vinte e cinco vezes. Dizemos “apesar de”, porque o contexto do texto da maior parte destas menções são, na verdade, a identificação de um novo órgão do Estado criado em 2004, sob a referida revisão constitucional, nomeadamente o “Provedor de Justiça”. Assim, a expressão “Administração da justiça” foi mencionada uma vez (Art. 63 do Capítulo sobre Direitos, Liberdades e Garantias individuais) e a expressão “Funcionários da justiça” foi mencionado duas vezes (art. 221 sobre a “Composição” e 222 sobre as “Competências”). Por sua vez, a menção do “Provedor de justiça” foi mencionada mais de doze vezes (artigos 137, 164, 179, 245, 256, 257, 258, 259, 260, 261; Título VII e Capítulo III).

O resto das menções, feitas em sete vezes (no preâmbulo e nos artigos 1, 11, 100, 150, 249, 256), dizem respeito ao valor “justiça” ele mesmo. Isto é, não como um “órgão”, mas como um valor moral a semelhança dos valores “bom” ou “mau”. Porém, algumas destas menções (como no caso do preâmbulo, do artigo onze ou sobre investidura), já se encontravam ainda no texto da constituição de 1975. Necessário seria investigar a relação entre os contextos de modo a compreender as continuidades e descontinuidades. Mas esta tarefa pode ser feita posteriormente, num outro trabalho. De qualquer forma, em termos de menções do valor aqui em questão, podemos dizer que a constituição da 1990/2004 trazem mais à tona a questão do valor moral “justiça”. Mas, analisado a Lei 6/92 (SNE), nenhuma menção é feita nem mesmo as suas variantes como, por exemplo, “injustiça”, “justo” ou “justa”. Curiosamente, nem mesmo palavras como “Valores” ou “Moral” aparecem no Documento.

Então, analisamos, tentando fazer o mesmo exercício que fizemos com o Relatório do Terceiro Congresso da FRELIMO, a Política Nacional de Educação e Estratégias de Implementação/Programa do Governo para 1995/1999. Diferentemente daquele relatório, não identificamos também aqui qualquer menção do valor “justiça”. Porém, foi possível identificar o termo “Moral” mencionada duas vezes. Na verdade, três. Porém, um deles pouco tem a ver com a “questão moral”, mas no sentido de “ânimo”. Por exemplo: “Desenvolvimento de outras formas de incentivo para a profissão docente, visando a elevação da motivação e moral dos professores, particularmente a melhoria das condições de trabalho” (p. 8) e, por outro lado, o termo “Valores” mencionada em três vezes. Na verdade, quatro. Porém, uma delas pouco tem a ver com o sentido de “valores morais”, mas sim monetários — por exemplo: “Desenvolvimento de outras formas de incentivo para a profissão docente, visando a elevação da motivação e moral dos professores, particularmente a melhoria das condições de trabalho” (p. 8) ou “Avaliação da possibilidade do pagamento das taxas de propinas em numerário, devendo os valores correspondentes reverter diretamente a favor das instituições de ensino” (p. 43).

Ambos termos são perspectivados em variados contextos particulares do texto. No que se refere ao primeiro, é possível identificar:

Contexto 1: Concernente aos deveres morais do Governo — “O Governo promoverá uma ação sistemática de educação moral e consciencialização cívica de toda a sociedade combatendo a delinquência, a corrupção e o parasitismo social, e garantindo a segurança pessoal e da propriedade dos cidadãos” (p. 6);

Contexto 2: Concernente ao dever do governo de formar “cidadãos elevados” científica, cívica, moral e patrioticamente – “Formar cidadãos com uma sólida preparação científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação moral, cívica e patriótica;” (p. 17).

No que concerne ao segundo, portanto, ao temo “valor”, identificamos os seguintes contextos do texto:

Contexto 1: Concernente a necessidade de um SNE, pautado pela massificação, que tenha pretensão de formar “cidadãos com valores” – “Pretende-se massificar o acesso da população à educação e fornecer uma educação com uma qualidade aceitável, isto é, uma educação com um conteúdo apropriado e um processo de ensino-aprendizagem que promova a evolução contínua dos conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, de modo a satisfazer os anseios da sociedade” (p. 15);

Contexto 2: Concernente a noção de infância como a fase de administração da criança através do Estado para a formação de um “adulto melhor” – “O Ensino Primário é o eixo do sistema educativo. Este carácter decorre do papel que o ensino primário joga no processo da socialização das crianças, na transmissão dos conhecimentos fundamentais como a leitura, a escrita e o cálculo, e de experiências e valores comumente aceites na nossa sociedade. A educação das crianças no nível primário é, por isso mesmo, crucial para o seu desenvolvimento posterior” (p. 18);

Contexto 3: Concernente ao papel do Estado assumido como sendo de formar cidadãos “relevantes” para a sociedade – “Capacitar a criança a desenvolver valores e atitudes relevantes para a sociedade em que vive” (p. 18);

Note-se que estes últimos contextos se encontram diretamente relacionados com a formação da criança. Todos os documentos analisados trouxeram neles, ou entre eles, uma “questão moral” cuja a forma de tratamento encontra-se no próprio contexto do texto. Porém, para uma análise abrangente sobre este aspecto será necessário partir por perspectivas mais abstratas. Isto é, teoricamente discutidas. É isso que se propõe fazer na fase a seguir. Portanto, a fase de discussão do resultado.

Discussão dos resultados: A MORALIDADE E RELAÇÕES POLÍTICAS DE PODER EM MOÇAMBIQUE.

Para adentramos na discussão dos resultados é preciso realçar uma breve discussão teórica que a fundamenta. Patrick Pharo (2004), na sua “L’enquete en sociologie morale”, parte de uma pergunta que considera ser central para a Sociologia da Moral: “o que é moral, imoral ou indiferente à moralidade em um determinado ato ou fato social?”. Ora, tal questionamento não difere, no seu fundamento, das perguntas que nos baseamos nesse trabalho a partir dos questionamentos levantados por Powel (2010). Perguntar-se sobre o que é moral, imoral ou indiferente num determinado ato é colocar este ato num determinado contexto e estas questões na imanência da preocupação de conhecer quais são as formas e dinâmicas que um valor moral tem nos agentes.

Como se coloca neste trabalho, estas questões são consideradas ao nível da dinâmica do tempo. Isto é, aos contextos históricos que caracterizam uma sociedade. Considera-se estes contextos como caracterizados por determinadas relações de poder. Compreenda-se relações de poder no contexto mais estruturalista proposto por Foucault. Isto é, uma proposta que concebe o poder como relação, como exercício de poder que pode tomar formas dialéticas concernentes ao próprio contexto de relações sociais (FOUCAULT, 2004). Mas, é preciso particularizar estas relações de acordo com o contexto do trabalho. Assume-se aqui, como se referiu de passagem, uma concepção política de relações de poder. Ou seja, relações que tenham como fim conquistar ou manter o poder (SERRA, 1997).

Sendo assim, tem-se o Estado como a categoria de análise e se constrói, a partir da pesquisa, o ponto de vista de que a questão moral é igualmente encarada como mecanismo de manutenção do poder. Ou seja, como mecanismo de controle da gestão do Estado. Podemos, então, identificar duas formas de relações de poder que caracterizam a história de Moçambique desde a sua fundação enquanto país (e estado) em 1975: um tipo de relações de poder, que estruturou o contexto político do tipo revolucionário cujo fato moral dependeria muito pouco da racionalização do debate social, como proporia Pharo, por meio de abordagens axiológicas e hermenêuticas habermasianas (PHARO, 2004); e um tipo de relações de poder do tipo, digamos, por falta de um termo melhor, liberal cujo o fato moral dependeria das condições práticas da vida das pessoas em condições de “precariedade civil” (SERRA, 2003).

Com a conquista da independência, e no contexto revolucionário de relações de poder, a sociedade moçambicana experimentou uma gestão de estado que coloca em funcionamento uma normatividade persuasiva determinada pela mobilização e uma legalidade que estabelece uma mobilização que alterna com a conscrição. Toma-se aqui o termo “conscrição” no sentido de participação involuntária das pessoas num projeto deficiente. Pensamos aqui a partir da colocação de Carlos Serra sobre, por assim dizer, o “fracasso da revolução” abordando o problema como uma situação na qual, por falta de aderência de massa às ordens do líder, este toma a violência como moeda de troca.

Assim escreve o sociólogo ao caracterizar esse derradeiro acontecimento da revolução: “A autoridade dá, crescentemente, lugar ao autoritarismo, a mobilização alterna com a conscrição, as relações de poder são parasitadas pelas relações da violência. Era, afinal, o fim da utopia.” (SERRA, 1997, p. 112). No primeiro momento da revolução, a figura do líder carismático era reconhecida em Samora Machel, o então presidente do país desde 1975 a 1986 com a sua morte. No segundo momento, essa figura foi desaparecendo, o carisma foi entrando em rotinização, como diria Max Weber (SERRA, 1997) e, em concomitância, os discursos foram sendo cada vez mais incisivos e se foi construindo instrumentos legais cada vez repressivos.

Por hipótese, é este contexto que justifica a menção do valor “justiça” por apenas duas vezes na constituição de 1975 e que justifica, igualmente, a sua ausência na lei que instituía o Sistema Nacional da Educação no país. Tratando-se de um país recentemente conquistado, e pela euforia da revolução que criou nos e foram criadas pelos, assim considerados, “libertadores da pátria”, a convicção de serem os legítimos representantes políticos e morais da “recém-descolonizada” nação, parece fazer sentido considerar viável a hipótese de que a justiça, enquanto valor moral, estaria mais no discurso mobilizador falado na figura carismática do líder do que amplamente mencionada na constituição da então República Popular de Moçambique. Assim, o que é “bom” ou “justo” seria confirmado apenas nas respostas “É!” e “Sim!” para as perguntas mobilizadoras e retóricas como “É, ou, não é?” ou “Ouviram?” (DARCH E HEDGES, 2018).

Tais retóricas políticas nos discursos de Samora Machel era recorrente nos seus comícios. Principalmente naqueles que tinham como fim a autoafirmação da FRELIMO e dos seus líderes e naqueles que tinham como fim denunciar e, ao mesmo tempo, condenar alguns “males” ou “injustiças” ao “povo” e ao “Estado”. Inúmeros, mas não suficientes, trabalhos há que analisam tais contextos. Alguns que fazem referência ao presente trabalho podemos mencionar os trabalhos Colin Darch e David Hedges de 2018, Samora Machel: Retórica política e independência de Moçambique; e Carlos Serra de 1997, Combates pela Mentalidade Sociológica: Sociologia política das Relações de Poder em Moçambique;

Por outro lado, como mostram os resultados, o documento sobre o relatório do congresso do partido estava carregado de menções ao valor “justiça”. O que se pode dizer sobre esse aspeto é que é possível aqui levantar a hipótese de que a história do país é diferente da história do Partido FRELIMO. Moçambique, enquanto país, só foi possível em 1975 e a sua construção depende de um envolvimento de todas as forças, agora vivas, e no reconhecimento daquilo que Habermas considerou como “justiça dos outros” (PHARO, 2004). Em contrapartida, a FRELIMO já vem desde 1962. O referido documento parece se inscrever mais nas ideologias do partido do que do país.

Nesse sentido, não é tão curioso o fato de a noção de justiça ser mencionado em contextos do texto específicos como a centralidade administrativa, o triunfalismo dos “heróis” e a opção pelo socialismo. Tudo isso faz, ou fez, parte do projeto do partido FRELIMO na fase revolucionária. De qualquer forma, o mais seguro de afirmar como hipótese está na ausência da menção do valor “justiça” no SNE de 1983. A década de oitenta é o período marcado pelas relações políticas nas quais a mobilização alternava com a conscrição e esta relação dava cada vez mais lugar a relações de violência. A educação deveria ser o veículo pelo qual se extirparia o “vício da colonização” e se criaria um Homem Novo. Tratar-se-ia de um instrumento de “moralização revolucionária” da sociedade. Talvez seja por isso que os termos “valor” e “moral” apareçam mais nele do que, por exemplo, no SNE de 1992 (que não aparecem nenhuma vez) e no Programa do Governo para 1995/1999.

Mas o que apresentamos é referente ao contexto do tipo de relações de poder do tipo revolucionário. O que dizer do contexto do tipo liberal? Como afirmamos, o fato moral neste contexto dependeria das condições práticas da vida das pessoas em condições de precariedade. O país acabava de sair de uma, como dissemos, horrenda guerra de dezesseis anos e a precariedade era imediatamente flagrante. Como mencionado, há consenso entre os estudiosos moçambicanos de que a institucionalização de uma nova República teria como finalidade mais a acomodação da “parte rebelde” (ou, a quem preferir, “parte resistente”, mas esta questão tem a ver com as simpatias e convicções políticas individuais, por isso pouco interfere o nosso argumento aqui) e o fim da guerra do que necessariamente a necessidade “genuína” de uma nova república, plural, democrática e baseada numa racionalização do debate social (PHARO, 2004).

Apesar do fim da guerra, o fato é que esta arrastou como consequência pobreza e, com esta, criminalidade. No período aqui em análise, isto é, concretamente décadas de 1990 a 2000, 70% dos moçambicanos viviam com menos de um dólar por dia e, até 2000, 1/3 das 1470 empresas privatizadas desde o “ajustamento estrutural” de 1987 fecharam e os seus trabalhadores acabaram no desemprego (SERRA, 2003). Em concomitância com esse quadro, a informalidade e a criminalidade foi crescendo. Só em 1999 havia mais de 8 milhões e meio de encarcerados, sendo a maior parte jovens (NIQUICE, 2016) num total de cerca de 18 milhões da população que nessa altura caracterizava demograficamente o país.

Com esse quadro, parece fazer sentido a hipótese de que este contexto determina o fato de o valor “justiça” (ou até termos como “valor” e “moral”), mesmo no cerne de uma república que se queria, e se quer, plural, ser mencionado muito poucas vezes na constituição de 1990/2004, nenhuma vez no SNE de 1992 e nem no Plano do governo sobre educação aqui analisado. Quando se menciona o valor na constituição refere-se mais, como se demonstrou, a um novo órgão do Estado: o Provedor de Justiça. Criado pela constituição de 2004, este órgão é definido como tendo a função de “garantia dos direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça na atuação da Administração Pública” (Art. 26) e tem como competência apreciar “os casos que lhe são submetidos, sem poder decisório, e produz recomendações aos órgãos competentes para reparar ou prevenir ilegalidades ou injustiças”. Trata-se de um órgão virado para regular a administração.

Na presente pesquisa, havia se partido do pressuposto de que este órgão foi criado em virtude da criminalidade determinada pelo contexto que se encontra aqui em análise. De fato, a criminalidade também afetou a administração. Em 2001 um jornalista foi assassinado quando investigava a corrupção a nível bancário no sistema bancário moçambicano na década de noventa e em 2001 um presidente de um banco comercial também foi morto neste mesmo nível de corrupção (SERRA, 2002). Refere-se, respectivamente, ao jornalista Carlos Cardoso cujo o assassinato levou ao julgamento de um dos maiores escândalos de corrupção no país e ao Presidente do Banco Comercial moçambicano, hoje extinguido (Banco Austral), Siba Siba Macuácua, em agosto de 2001.

Porém, o contexto destes acontecimentos ajuda a pensar na hipótese de que o valor “justiça” é assumido mais administrativamente do que como um valor construído como um princípio que se quer universal a partir de uma “ética do discurso” baseada nos princípios universais (porém, com apropriação particular) de justiça e solidariedade (HABERMAS, 1998). Por outro lado, isso parece também justificar não só a pouca menção do valor “justiça” na constituição da segunda república e nenhuma no SNE do mesmo contexto, como também a ausência dos termos “Valor” e “Moral”. Todavia, os instrumentos legais que trazem estas palavras nos seus “textos” têm como finalidade moralizar os jovens e as crianças (e a sociedade no geral).

Por essa razão, como apresentado acima, o contexto do texto no qual aqueles termos são mencionados na Política e Programa do Governo para a educação de 1995/1999 (apesar de também este documento não mencionar o valor “justiça”) nos mostram esta necessidade de moralização. Por exemplo:

Curiosamente, tudo isso é visto como dever e responsabilidade do estado e do governo. Mas não só. Como comentado mais acima, o curso de filosofia seria então o veículo pelo qual a moralização ganharia espaço de materialização. Por isso, a ideia de “déficit moral”, que dava razões aos idealizadores e membros criadores do programa de introdução a Filosofia para o ensino médio, ao introduzirem o ensino sobre a “ética” na filosofia, como discute a tese de doutorado de Gonçalves (2009), justifica-se igualmente por esse contexto de “precariedade civil”. Por isso, acredita-se que “a inclusão do eixo temático sobre a Ética no ensino de Filosofia é para resolver o ‘deficit moral’” e que esta medida se justifica pelas “perplexidades que se viviam no país, decorrentes da mudança de orientação de valores” (GONÇALVES, 2009, p. 19).

Considerações finais

O que discutimos neste trabalho foram alguns “achados” que nos permitirão a possibilidade de uma “sociologia da moralidade” em Moçambique. Esta sociologia teria, então, que dar conta dos contextos nos quais a questão moral é determinada e as condições sobre as quais ela é possível. A preocupação de uma sociologia como essa, e num país recente como Moçambique, não pode ser do que “deve ser”. Na verdade, o que é tido como “deve ser” passa a ser igualmente o seu objeto de investigação. Mas isso não quer dizer que os resultados desta investigação não possam ajudar na melhoria das políticas públicas. Por exemplo, a análise aqui feita do documento sobre o programa de educação pode servir para um melhor esclarecimento sobre como a questão moral é tratada e, pela importância dela na sociedade, como se pode melhorar esse tratamento.

Como se viu, olhou-se a questão moral do ponto de vista do político. Isto é, através do viés oficial da gestão do Estado. Eis uma limitação. A análise de documentos oficiais, e numa sociedade, se se permite a expressão, “documental” como a moçambicana, torna o problema aqui em questão ainda mais desafiante. Por exemplo, analisou-se a constituição de 1975, mas não sabemos como isso foi tratado na revisão de 1978; no mesmo ângulo, analisou-se o programa do governo de um dado ano, mas não sabemos como foram para os outros anos no mesmo contexto de análise.

Porém, há outras limitações. Inferimos a partir das vezes que foram mencionados o valor tomado aqui como referência: a “justiça”. Porém, pode haver nos documentos construções de parágrafos que nos diriam sobre a justiça, mesmo sem mencionar o termo. A “artimanha” metodológica foi ler o contexto do texto no qual esse termo é mencionado. Porque o que se pretendeu aqui foi de trazer possibilidades. Sentenças e inferências bastante hipotéticas, e parcialmente trabalhadas, que nos permitiriam pelo menos pensar sobre a possibilidade de uma sociologia da moralidade que se preocupa com as formas e dinâmicas da própria moral com os seus valores morais inerentes a uma sociedade que muito recentemente experimentou (e experimenta) a violência da colonização, da revolução e, porque não, do liberalismo. Tudo isso entendido do ponto de vista de um ideal tipo.

Entretanto, pretendeu-se, igualmente, pensar numa hipótese que argumente que a forma e dinâmica da moralidade deve ser baseada na análise da normatividade que se estabeleça na articulação, como queria Habermas, entre os princípios universais e o contexto particular no qual se desenvolve a própria normatividade. Em sociedades complexas como as africanas, mas, também, latino-americanas, esta proposta parece ser válida e necessária. Eis aí mais uma limitação da pesquisa. Seria necessário analisar como os atores constroem as noções de justiça nas suas ações comunicativas e estudar os seus “sentimentos de justiça” de modo a pensar sobre as suas racionalidades.

Mas, de qualquer forma, o que se apresentou foi apenas um estudo de carácter exploratório, por isso, hipotético. Até porque, os sentimentos morais são fenômenos de evolução, como diria Steven Lukes (2010). Se essa hipótese ser verdadeira, seria bom, então, relacionar a racionalidade dos atores sobre a moralidade (ai incluindo até o ponto de vista dos professores de filosofia como procuramos fazer aqui) com a evolução dos acontecimentos históricos de Moçambique considerando as suas continuidades e descontinuidades das diferentes relações de poder. Um trabalho futuro será então de aprofundar a análise documental aqui feita e alastrar para uma outra dimensão analítica da pesquisa considerando os atores reais.

Referências bibliográficas

BALOI, Obede. Entre a espada e a parede: círculo vicioso da Violência como um Dilema de um Estado pós-guerra. In N. Teles, B. Muianga e E. Brás (Org.), Mosaico Sociológico, Maputo: Departamento de Sociologia, 2011, pp. 61-85.

BOUDON, Raymond. La logique des sentiments moraux. L’Année sociologique (1940/1948-), 1994, Vol. 44, pp. 19-51.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do discurso. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2004, 555 p.

DARCH, Colin e HEDGES, David. Samora Machel: Retórica Política e Independência em Moçambique. Salvador: EDUFBA, 2018.

GONÇALVES, António Cipriano Parafino. “Modernidades” Moçambicanas, Crise de Referências e a Ética no Programa de Filosofia para o Ensino Médio. 2009. 383 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação: conhecimento e inclusão social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

HABERMAS, Jurgen. Moral Norms and Legal Norms: On the Complementary RelationsBetween Natural Law and Positive Law. Between facts and norms. Contriution to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: The MIT Press: 1998, pp. 104-118.

LUKES, Steven The Social Construction of Morality. Handbook of Sociology of Morality, S. Hitlin & S.Varsey (eds), London: Springer, 2010. Pp. 549-561;

MACAMO, Elísio. A transição política em Moçambique. Lisboa, 2002. Disponível em https://repositorio.iscteiul.pt/bitstream/10071/2431/1/CEA_OP4_Macamo_Transicao.pd f. Acesso em 25/09/2021.

MENESES, P.M. As ciências Sociais no contexto do ensino Superior em Moçambique. PERSPECTIVA, Florianópolis. V. 34, (2), 338-364. DOI 10.5007/2175- 795X.2016v34n2p338 PEREIRA, Gilson R. de M. e Catani A.M. (2002). Espaço Social e Espaço Simbólico: Introdução a uma Topologia Social. PERSPECTIVA, Florianópolis, Nº Especial, V.20, 107-120, 2016.

MISSE, Michel. A categoria “bandido” como identidade para o extermínio: Algumas notas sobre a sujeição criminal a partir do caso do Rio de Janeiro. Em Violência e Dilemas Civilizatorios. As práticas de punição e extermínio. C. Barreira, L. Sá, J.P. Aquino. Campinas: Pontes Editores, 2011, pp31-58.

NGOENHA, Severino E. E CASTIANO, José P. Pensamento Engajado: ensaios sobre Filosofia Africana Educação e Cultura Política. Editora Educar: CEMEC/UP, 2011. (Versão eletrónica disponível aqui Pensamento Engajado: Ensaios sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política - DOKUMEN.PUB , acessado a 15 de junho de 2022)

SERRA, Carlos. Novos Combates Pela Mentalidade sociológica: Sociologia política das relações de poder. 1ª Ed. Maputo: Impressa Universitária, 1997.

SERRA, Carlos. Em cima de uma lâmina: Um estudo sobre a precariedade social em três cidades de Moçambique. 1ª Ed. Maputo: Impressa Universitária, 2003.

SUBUHANA, C. Estudar no Brasil: imigração temporária de estudantes moçambicanos no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

PHARO, Patrick L’enquête en sociologie morale. L’Année sociologique, 2004, 54, n° 2, p. 359-38.

POWELL, Christopher. Four concepts of Morality: Differing Epistemic Strategies and Classical tradition. Handbook of Sociology of Morality, S. Hitlin & S.Varsey (eds). London, Springer, 2010. Pp 35-56.

Outros documentos:

Constituição da República Popular de Moçambique, Boletim da República, 1ª Série, nº 1, de 25 de junho de 1975.

Constituição da República de Moçambique, 1990.

Política Nacional de Educação e Estratégia de sua implementação — MINED, 1995.

FRELIMO. Relatório do Comité Central ao 3º Congresso. Maputo: Departamento do Trabalho Ideológico da FRELIMO, 197

MOÇAMBIQUE. Sistema Nacional de Educação. Linhas Gerais e Lei n. 4/83. Maputo: Minerva Central, 1985. MOÇAMBIQUE. Lei n. 6/92 que altera o Sistema Nacional da Educação, reajustando as disposições nela contidas. Boletim da República, Maputo, 6 mai. 1992.

Política Nacional de Educação e Estratégias de Implementação/Programa do Governo para 1995/1999.