Volumen 32 Nº 3 (julio-septiembre) 2023, pp. 90-109

ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44

DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.8272857

Domínios do capital internacional na Amazônia: a relação Icomi, Bethlehem Steel e Eximbank nos contratos de exploração de manganês no Amapá (1946-1954)

Fábio Antonio de Campos* y Delaíde Silva Passos**

Resumo

O objetivo deste artigo será mostrar como os contratos de exploração de manganês brasileiro no Amapá entre 1946 e 1954, firmados, com a empresa mineradora Icomi foram um instrumento de valorização do capital em escala internacional, uma vez que parte significativa da renda foi comprometida em acordos externos com a Bethlehem Steel e o Eximbank. Metodologicamente, faremos uma leitura das principais questões na legislação específica que envolveram os contratos de exploração do manganês no Amapá e seus efeitos, dialogando com os estudos que analisaram tal marco institucional. Os principais regimes institucionais a ser pesquisados são: i)- o Decreto-Lei nº 5.812 (13/09/1943) de criação do território do Amapá; ii)- o Decreto-Lei nº 9.858 (13/09/1946) de criação da reserva nacional do manganês no Amapá; iii)- o Decreto nº 24.156 (04/12/1947) que regeu o contrato assinado com a Icomi para exploração de manganês; iv)- o Decreto nº 28.162 (31/05/ 1950) de revisão do contrato com a Icomi; v)- a Lei nº 1.235 (14/11/1950) que estabeleceu a garantia do Tesouro Nacional a empréstimo a ser contraído pela Icomi no exterior; vi)- e, por último, a Portaria nº 247 (29/04/ 1953) que permitiu o aditamento ao contrato de arrendamento de jazidas de minério de manganês na Serra do Navio – Amapá. Depois de fazer uma minuciosa investigação dos contratos de exploração, o artigo conclui que a extração de manganês no Amapá foi um verdadeiro modelo de economia de enclave, em que grande parte da renda gerada pelo empreendimento não se irradiou pela região.

Palavras-chave: Capital internacional; Amazônia; Amapá; Icomi; Bethlehem Steel; desenvolvimento econômico

*Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, Brasil. E-mail: fcampos@unicamp.br

ORCID: 0000-0003-3995-3661

**Universidade Paulista. São Paulo, Brasil. E-mail: dedehpassos@gmail.com

ORCID: 0000-0003-3829-2099

Recibido: 13/12/2023 Aceptado: 22/04/2023

Domains of international capital in the Amazon: the Icomi, Bethlehem Steel and Eximbank relationship in the manganese exploration contracts in Amapá (1946-1954)

Abstract

The purpose of this article will be to show how the Brazilian manganese exploration contracts in Amapá between 1946 and 1954 signed with the mining company Icomi were an instrument of capital appreciation on an international scale, since a significant part of the income was compromised in external agreements with Bethlehem Steel and the Eximbank. Methodologically, we will read the main issues in the specific legislation that involved the manganese exploration contracts in Amapá and their effects, dialoguing with the studies that analyzed this institutional framework. The main institutional regimes researched are: i)- Decree-Law nº 5.812 (09/13/1943) creating the territory of Amapá; ii)- Decree-Law No. 9,858 (09/13/1946) creating the national manganese reserve in Amapá; iii)- Decree No. 24,156 (12/04/1947) which governed the contract signed with Icomi for manganese exploration; iv)- Decree No. 28,162 (05/31/1950) revising the contract with Icomi; v)- Law No. 1,235 (11/14/1950) which established the guarantee of the National Treasury for a loan to be contracted by Icomi abroad; vi)- and, lastly, Ordinance No. 247 (04/29/1953) which allowed the amendment to the lease agreement of manganese ore deposits in Serra do Navio – Amapá. After making a detailed investigation of the exploration contracts, the article concludes that the extraction of manganese in Amapá was a true model of enclave economy, in which a large part of the income generated by the enterprise did not radiate throughout the region.

Keywords: International capital; Amazon; Amapá; Icomi; Bethlehem Steel; economic development

Introdução

A mineração e os efeitos da sua exploração pela iniciativa privada no Brasil têm sido repensados diante de alguns casos atuais de desastres ambientais como o da empresa Samarco em Mariana-MG (2015) e da empresa Vale em Brumadinho-MG (2019). Torna-se premente a investigação desse tema também numa perspectiva histórica e em regiões estratégicas como a amazônica, tal como mostraremos neste artigo ao tratar dos contratos de exploração de manganês no Amapá entre 1946 e 1954.

A história da exploração de manganês em “Serra do Navio” (AP) teve início em 1934, quando o engenheiro de minas do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Josalfredo Borges, encontrou manganês às margens do rio Amapari. Porém, apenas após a Segunda Guerra Mundial, quando recursos dessa natureza se tornaram estratégicos, as autoridades nacionais e locais deram a devida atenção. Nesse contexto, o caboclo Mário Cruz levou algumas pedras escuras ao primeiro governador do Território Federal do Amapá (TFA), Janary Gentil Nunes, cuja missão seria encontrar uma função econômica para essa região. Com a comprovação do DNPM de que aquelas pedras escuras eram manganês de alto teor, as classes dominantes locais conseguiram sustentar a ideologia do progresso, mobilizando recursos e força de trabalho para a exploração de um dos minerais mais importantes da Amazônia. Então Nunes solicitou ao presidente Eurico Gaspar Dutra a criação de uma “Reserva Nacional” na região onde hoje se localiza a Serra do Navio.

Posteriormente, o governo federal abriu licitação em busca de uma empresa responsável pela prospecção e exploração do manganês. Três mineradoras interessaram-se: i)- a United States Steel, que se fez presente por meio da sua subsidiária brasileira, a Companhia Meridional de Mineração; ii)- a Hanna Coal & Ore Corporation; iii)- e, a Sociedade Brasileira de Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês (Icomi), sendo a vencedora. A Icomi (fundada em 1942), em seguida, planejou adquirir uma sócia estrangeira para o estudo do depósito. Mesmo enfrentando diversas críticas, em 1948, ela iniciou as pesquisas na Serra do Navio, em que a empresa estadunidense Bethlehem Steel Corporation participou conjuntamente da prospecção, do financiamento da produção, da gerência e das vendas do minério.

O resultado do empreendimento entre Estado, empresa privada brasileira e empresa multinacional impulsionou uma taxa de crescimento da população amapaense na década de 1960 de 80,77%, sendo que quase 2000 pessoas (cerca de 3% dos 68.889 habitantes no Estado) foram ocupadas no negócio de extração de manganês da Serra do Navio. Entre 1957 e 1975, a Icomi apresentou mais de US$ 2,1 bilhões em receitas brutas (valores convertidos para 1994) ao extrair cerca de 24 milhões de toneladas, permitindo ao Brasil estar em 1978 entre os oito maiores produtores mundiais de manganês (9% de participação).

Os estudos especializados que se dedicaram a investigar essa atividade mineradora e seu papel para o desenvolvimento econômico brasileiro não são muitos. Dos existentes, temos o trabalho pioneiro de Janary Nunes (2012) que se confunde com seu envolvimento pessoal como primeiro governador do Amapá, tendendo a defender a exploração do manganês como atividade importante para o progresso regional. Na mesma linha, porém, trazendo uma investigação empírica mais abrangente, de modo a sustentar a tese de que o negócio de manganês na Serra do Navio trouxe desenvolvimento para a região, uma vez que a associação com o capital internacional seria supostamente imprescindível, temos o trabalho de José Augusto Drummond e Mariângela Pereira (2007). Numa linha oposta, o funcionário do governo do TFA Álvaro da Cunha (1962) teceu inúmeras críticas à atividade de exploração do manganês realizada pela Icomi, relativizando seu papel para o desenvolvimento local. Recompondo os elementos críticos a esse empreendimento nos termos de Cunha (1962), tais como a baixa difusão de desenvolvimento para a coletividade regional, e a sobreposição de interesses privados internos e estrangeiros sobre interesses públicos que acarretassem melhores condições de vida para os amapaenses, destacamos igualmente Aluízio Lins Leal (1988; 2007), Indira Marques (2009) e Adalberto Paz (2014a; 2014b).

Nossa investigação identifica-se com essa última linha de abordagem, aprofundando a crítica a tal empreendimento que julgamos ser uma “economia de enclave” , isto é uma atividade extrativa ultra especializada, localizada em regiões periféricas e subdesenvolvidas e voltada para atender as necessidades dos centros capitalistas, com baixa difusão de sinergias econômicas regionais e nacionais, que no caso do Amapá servia aos interesses privados para exploração mineral com altíssimas rentabilidades. Embora a bibliografia crítica aprofunde o tema, acreditamos ser necessário trazer um ângulo de análise subestimado no debate: o das estratégias de dominação do capital internacional sobre o empreendimento, com destaque para a Bethlehem Steel Corporation, especificamente nas posições vantajosas dos contratos de exploração definidos na relação com o Estado. Assim, nosso objetivo será mostrar como os contratos de exploração entre os anos 1946 e 1954 foram determinantes para que o empreendimento no Amapá se firmasse como um instrumento de valorização do capital em escala internacional, uma vez que parte significativa da renda foi comprometida com os acordos externos, especialmente aqueles com a Bethlehem Steel e o Eximbank.

Para tanto, faremos uma leitura das principais questões na legislação que envolveu os contratos de exploração do manganês no Amapá, destacando: i)- o Decreto-Lei nº 5.812 (13/09/1943) de criação do território do Amapá; ii)- o Decreto-Lei nº 9.858 (13/09/1946) de criação da reserva nacional do manganês no Amapá; iii)- o Decreto nº 24.156 (04/12/1947) que regeu o contrato assinado com a Icomi para exploração de manganês; iv)- o Decreto nº 28.162 (31/05/ 1950) de revisão do contrato com a Icomi; v)- a Lei nº 1.235 (14/11/1950) que estabeleceu a garantia do Tesouro Nacional a empréstimo a ser contraído pela Icomi no exterior; vi)- e, por último, a Portaria nº 247 (29/04/ 1953) que permitiu o aditamento ao contrato de arrendamento de jazidas de minério de manganês na Serra do Navio – Amapá.

Além dessa introdução, no próximo item apresentaremos a legislação e a interpretação dos contratos de exploração do manganês pela Icomi e a associada Bethlehem Steel. Em seguida, relacionaremos o marco institucional de exploração com o padrão mundial de acumulação do período. Por fim, traremos algumas considerações finais.

Icomi e contratos de exploração de manganês

Desde o início da contratação da exploração de manganês no Amapá em 1947 observamos que havia nesse empreendimento uma lógica de acumulação capitalista imposta de fora, algo já evidente no contrato de exploração mineral, assinado em 4 de dezembro do mesmo ano por meio do Decreto n° 24.156 (Brasil, 1947a). Segundo esse documento, o governo amapaense tinha o objetivo de, mediante uma associação com uma empresa privada, fazer uso racional das jazidas para levar o desenvolvimento socioeconômico para aquele território. Logo no capítulo I, o contrato explicitava as principais orientações que de um lado deveriam contribuir para o progresso do TFA e, de outro, impediriam qualquer bloqueio à exploração eficiente do manganês (Amapá, 1947:3). Para Cunha (1962), o ambiente que influiu na organização institucional da exploração de manganês no Amapá já estava dado antes, no Decreto-Lei nº 9.858 de 13 de setembro de 1946, que criou uma reserva nacional na região das jazidas, visto que o marco institucional que iria conduzir a exploração de manganês em Serra do Navio dava de antemão sinais da natureza do empreendimento:

Art. 1° - Constituem reserva nacional as jazidas de minério de manganês existentes no Território Federal do Amapá.

Art. 2° - O Governo Federal fará proceder imediatamente ao estudo do aproveitamento dessas jazidas por intermédio do Governo do Território Federal do Amapá, com a colaboração direta do Departamento Nacional da Produção Mineral, quanto ao estudo das jazidas e dos órgãos competentes do Ministério da Viação e Obras Públicas, quanto aos serviços de transporte, saneamento e porto exigidos para o aproveitamento das mesmas. [...]

Art. 4° - O aproveitamento das jazidas poderá ser, se assim o entender o Governo Federal, contratado com entidades particulares ou de economia mista.

Art. 5° - Fica assegurada ao Território Federal do Amapá participação direta nos proventos auferidos com o aproveitamento das jazidas, de que trata o presente Decreto-lei (Cunha, 1962:10-11).

Segundo Leal (1988), tal documento que foi ponto de partida da exploração mineral no Amapá iniciou com uma falsa ideia de nacionalidade, expressa no artigo 1°, ao fazer referência às jazidas amapaenses como “Reserva Nacional”. Essa expressão dava a entender que o empreendimento seria voltado para os interesses locais, quando, na verdade, tratava-se de um documento que incorporou um discurso empenhado em atender aos interesses do capital internacional. Todavia, é oportuno enfatizar que todo esse discurso foi fundamental para preparar o cenário futuro, a ser moldado pelos dois últimos artigos que previam a possibilidade de participação da iniciativa privada.

Esses artigos ganhariam uma conotação mais liberal quando associados ao relatório de Glycon de Paiva, que orientava a privilegiar a atuação do capital privado na exploração de manganês, pois, em sua opinião, esse seria o único capital em condições de enfrentar os desafios da região. Em outras palavras, os artigos 4° e 5° apenas confirmavam um clima que já estava posto pelo relatório do engenheiro de minas do DNPM. Observamos, dessa maneira, o peso que esse relatório teve no empreendimento estudado, orientando-o de modo condizente com a livre movimentação do capital internacional. Essa hipótese fica ainda mais clara quando notamos que entre a criação da reserva nacional e o edital que abriu a licitação passaram-se apenas doze dias. Dado o curto espaço de tempo entre esses dois processos, a promulgação do Decreto-Lei nº 9.858 (Brasil, 1946b) antecipadamente revelava um viés direcionado do tipo de empresa que iria se candidatar no dia 25 de setembro de 1946 (Cunha, 1962).

Vale destacar a descontinuidade do Governo Dutra (1946-1951) na relação do capital internacional com a mineração se comparado com o antecessor Governo Vargas (1930-1945). Enquanto Vargas esteve muito mais disposto a proteger as riquezas minerais do país, principalmente após a Constituição de 1937 (Brasil, 1937), Dutra igualou as condições de concorrência entre o capital nacional e estrangeiro. A Constituição de 1937 (Brasil, 1947) proibia a participação estrangeira nos negócios que envolvessem o aproveitamento de minas e jazidas do país. De acordo com a Carta Magna, a exploração das riquezas só seria concedida a brasileiros ou a companhias formadas no Brasil. A Constituição de 1946 (Brasil, 1946a), porém, abriu novamente espaço para a participação de empresas organizadas no território brasileiro, concedendo, com isso, importante brecha para a entrada das empresas multinacionais.

Uma análise superficial do contrato pode sugerir que a exploração de manganês em Serra do Navio tinha o objetivo de desenvolver a região. Melhor dizendo, no discurso, o manganês seria um instrumento de mudanças que colocaria a sociedade no centro do projeto, na medida em que os benefícios deveriam ser dados a ela primeiramente. O ponto é que o empreendimento não seguiu essa lógica, visto que as decisões tomadas a partir da assinatura do contrato favoreceram sempre os interesses do capital. Lembramos que as empresas públicas e privadas nacionais da época não tinham tecnologia, capital e know-how para conduzir a exploração de manganês amapaense desassociadas do capital internacional. Podemos ver que mesmo quando algumas concessões eram dadas ao poder público e à sociedade amapaense, sempre vinham com algumas ressalvas, apontando o “cuidado” que se deveria ter com os interesses do capital privado, que não poderiam ser “ameaçados”. O contrato de 1947 (Decreto nº 24.156), mas, principalmente o de 1950 (Decreto nº 28.162), foi muito bem elaborado para que a esfera privada não fosse prejudicada.

Diante da celeridade em todo o processo institucional necessário para viabilizar a exploração do manganês, o relatório de Glycon de Paiva (1945) e as próprias características da Icomi sustentam nossa hipótese de que os polos internacionais, nacionais e regionais estavam muito bem articulados para atender à livre movimentação do capital internacional. Ademais, a contradição entre o discurso e a prática, bem como a sobreposição de uma orientação liberal em todo empreendimento, foram confirmadas ao compararmos o relatório de Paiva (1945) e a declaração da Icomi sobre a necessidade de se associar a uma “empresa de grande porte” (Drummond; Pereira, 2007).

Após um primeiro processo de pesquisa, a Icomi pediu uma revisão do contrato, justificando que os estudos realizados até aquele momento exigiam uma redefinição das obrigações, prazos e condições da exploração do minério. Sem questionar as mudanças em alguns termos desse documento, Janary Nunes conseguiu a autorização do presidente da República por meio do Decreto nº 28.162 de 31 de maio de 1950 (Brasil, 1950; Leal, 1988). De acordo com Cunha (1962), uma análise dos termos adicionais de contrato indicava na verdade o surgimento de um novo contrato, perante as mudanças significativas com aquele assinado em 1947 (Decreto nº 24.156). Para o autor, o termo “revisão” é usado de forma inapropriada, dado que tratamos da modificação e da inserção de novas cláusulas que permitiram elaborações mais bem-feitas no sentido de garantir ao capital privado vantajosas condições para exploração de um recurso estratégico.

Para Cunha (1962) houve uma diferença clara entre a nomenclatura usada para estabelecer as faculdades e obrigações da Icomi e aquelas que determinavam esses mesmos pontos para o TFA e a sociedade amapaense. A cláusula 17ª, por exemplo, além de conceder inúmeros benefícios à Icomi, também a transformou em uma empresa transportadora, uma vez que dependia dela o direito de trafegar na ferrovia construída para atender à exploração de manganês (Cunha, 1962):

Cláusula 17ª – A empresa reservará para o uso público uma capacidade de tráfego até de 200.000 toneladas anuais, distribuídas metade no sentido das jazidas e metade no sentido do porto, mediante tarifas fixadas de acordo com a legislação brasileira. Fica entendido que o objetivo primordial da estrada de ferro consistirá no transporte do minério de manganês da empresa, e que seu uso como meio de transporte para fins públicos e particulares, deverá ser razoável e que, por outro lado, esse tráfego não será de caráter oneroso para a Empresa e não virá prejudicar o empreendimento que é objeto deste contrato, isto é, a produção do minério de manganês (Brasil, 1962:121).

Apesar de a construção da estrada de ferro ter sido noticiada como um grande feito a favor da sociedade amapaense, os limites do seu uso para esse fim estavam muito bem determinados – “200.000 toneladas anuais”. A cláusula citada evidenciou que a principal função da ferrovia era atender à exploração de manganês, e de modo algum tal meio de transporte poderia ser desviado para fins públicos a ponto de prejudicar o empreendimento. Ou seja, no que diz respeito aos direitos do setor público sobre a estrada de ferro, o contrato de exploração mineral fez uso de termos restritivos (Cunha, 1962).

Cunha (1962) caracterizou algumas cláusulas do contrato como sendo artificiais. A 12ª declarava que para investimentos em uma estrada de ferro serem viabilizados, precisavam da confirmação de uma reserva mínima de 10 milhões de toneladas de manganês de alto teor. O autor questiona se a Icomi realmente não sabia desses dados depois de passar tanto tempo realizando pesquisas nas minas amapaenses. O que estava em destaque no contrato era o volume, e não as áreas das jazidas que serviram apenas como um ponto de referência. O contrato dava à empresa exploradora o direito de ter uma quantia mínima de minério, podendo ter acesso ao minério que estivesse em áreas distantes, caso a reserva de 10 milhões de manganês ainda não estivesse garantida. Se essas 10 milhões de toneladas não fossem constatadas, segundo as cláusulas 18ª, 28ª e 29ª, o TFA cederia aos concessionários o direito de explorar outras áreas para pesquisa e exploração. O monopólio e exclusividade para nova joint venture pertenciam à Icomi e à Bethlehem Steel, visto que as riquezas minerais descobertas após a assinatura do contrato deveriam ser privilégio das concessionárias das minas de Serra do Navio. As empresas privadas teriam o direito de explorar no mínimo 500 mil toneladas por ano, e os minérios extraídos seriam destinados para a indústria nacional apenas se o pedido fosse feito com antecipação e a preços de mercado. Além disso, estas empresas também teriam acesso a todos os recursos naturais necessários à sua atividade, ou seja, as mineradoras poderiam cortar árvores, fazer aterros etc., usando terras e água do TFA como bem lhe servisse. Enquanto a Icomi tinha amplos direitos, os quais estavam sempre acima dos da sociedade amapaense, os seus deveres também eram viabilizados para garantir que a exploração de manganês beneficiasse a valorização do capital. A conclusão mais óbvia seria que os deveres da empresa estavam conectados aos próprios direitos, de modo que não fossem contrapostos, mas associados.

A cláusula 38ª, por exemplo, destacava que a Icomi deveria fornecer até 30% da energia elétrica ao consumo público, colocando uma quantia máxima, e não mínima, de modo que a companhia poderia fornecer muito menos, se fosse de seu interesse. De resto, a cláusula ainda enfatizava que dessa porcentagem máxima poderia ser descontado aquilo que a empresa fornecesse para suprir as necessidades dos seus funcionários (Cunha, 1962):

Cláusula 38ª – A Empresa se obriga a pôr à disposição do serviço público, para instalações domiciliares, hospitalares, comerciais, industriais, ou iluminação de ruas, até 30% (trinta por cento) da capacidade das instalações de energia elétrica que porventura venha a montar para acionar as suas maquinarias de mineração. Incluem-se no serviço público as instalações de força e luz em residências, escolas, hospitais e ruas, que a Empresa construir para seus auxiliares, nas proximidades de seus serviços. A Empresa cobrará pela energia elétrica assim fornecida, as tarifas fixadas pela autoridade competente (Brasil, 1962:126).

Se, de um lado, algumas cláusulas foram definidas para que o Amapá fosse instrumentalizado pelos interesses do capital privado, outras, como a 39ª, vieram para garantir que, em caso de transgressão por parte da Icomi, esta tivesse meios legais para proteger a valorização do seu capital:

Cláusula 39ª – Se se verificar inadimplemento de cláusula no presente contrato, por parte da Empresa, e se esse inadimplemento perdurar por um período de sessenta dias (60) dias, o Território notificará a Empresa conforme for o caso, sobre a situação, explicando detalhadamente até que ponto a Empresa esteja infringindo as obrigações contratuais, e a Empresa, após receber a mencionada notificação, ou após determinação judicial, na hipótese de divergência, terá noventa (90) dias para sanar, se houver (Brasil, 1962:126).

De acordo com Cunha (1962), essa cláusula impedia o território de notificar a Icomi antes de transcorridos 60 dias, independente da falta cometida pela companhia. E, caso houvesse alguma intimação nesse prazo, a empresa poderia não aceitar, partindo dos princípios da cláusula. Mesmo depois de passados os 60 dias da certificação de uma irregularidade, a Icomi teria 90 dias para resolver o problema notificado. Dessa maneira, tinha 150 dias, ou seja, 5 meses, que poderiam ser estendidos se a empresa fizesse uso da cláusula 48ª:

Cláusula 48ª – O atraso ou inexecução das obrigações assumidas pela Empresa neste contrato, que decorrer de caso fortuito ou força maior, importará na prorrogação do prazo pré-fixado para o cumprimento da obrigação, por tempo correspondente à duração do impedimento e seus efeitos. Entender-se-ão por casos fortuitos ou de força maior os correntemente como tais conceituados, notadamente os seguintes: greves, sabotagens e impraticabilidade de obtenção de mão-de-obra, demoras e atrasos em transportes ou entregas de materiais, oriundos de atos ou fatos de terceiros que a Empresa não possa prever, impedir ou obviar, devidamente comprovados. De qualquer modo, a prorrogação de prazos, prevista nesta cláusula, não afetará o compromisso assumido pela Empresa de pagar o preço do arrendamento nas datas estipuladas (Brasil, 1962:127-128).

Há um ponto específico, no entanto, em que Cunha (1962) fez uma crítica muito clara, que talvez não tenha sido percebida por Drummond e Pereira (2007). Ao apresentar possíveis alternativas na questão do pagamento dos royalties, dadas as características peculiares do manganês de Serra do Navio, o imposto deveria ser de 15%, e não de 4%, como ficou acordado na cláusula 32ª:

Cláusula 32ª – A Empresa pagará ao Governo do Território Federal do Amapá, trimestralmente, nos termos do art. 5° do Decreto-lei n° 9.858, uma importância por tonelada métrica de minério de manganês exportado, correspondente a quatro por cento (4%) do valor de venda do minério posto a bordo do navio no porto de embarque no Território (F.O.B.) (Brasil, 1962:124).

Além disso, o ex-funcionário do TFA, Cunha (1962), afirmou que uma participação nos lucros seria mais interessante para o Amapá, dado o sucesso do empreendimento e o contexto histórico – um momento em que o manganês era um recurso altamente estratégico:

Cláusula 35ª – A Empresa se obriga a investir em novos empreendimentos, no Território, vinte por cento (20%) dos lucros líquidos originados da exploração nas minas arrendadas, apurados em balanço anual, ou então, à escolha do Território, a pagar um acréscimo do preço de arrendamento. Esse acréscimo corresponderá a uma quarta parte do preço de arrendamento previsto na cláusula 32ª, concernente ao exercício financeiro de cujo balanço decorram os lucros líquidos em apreço e será pago no ano em que deveria ser feito o investimento (Brasil, 1962:125).

Cunha (1962) também chamou atenção para outro ponto importante para a nossa pesquisa: a drenagem da maior parte da renda para fora do país. Isso porque a associação com a empresa norte-americana Bethlehem Steel fazia com que 49% dos lucros fluíssem para os EUA. E, ainda, os 51% que pertenciam ao capital nacional eram remetidos para o Sudeste brasileiro, algo que ficaria mais evidente quando lembrarmos que a sede da Icomi estava em Belo Horizonte, fato que contribuiu para que grande parte do investimento oriundo da venda do manganês do Amapá não ficasse nesta região.

Ao constatar que a Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (CAEMI), holding a que a Icomi pertencia, tornou-se o maior grupo privado do setor mineral do Brasil, realizando investimentos em outros estados e inclusive fora do país, Drummond e Pereira (2007) concordaram nessa questão. Para tais autores, contudo, a Icomi estava agindo de acordo com o que o contrato previa: um reinvestimento de 20% dos lucros líquidos (1962) no Amapá, deixando para fazer o que quisesse com os outros 80%. A denúncia de Cunha “fica um tanto oca e demagógica quando se leva em conta (1) que, por muito tempo, não houve outros empreendimentos de mineração viáveis no Amapá nos quais a Icomi pudesse investir e (2) que não havia base legal para obrigar uma empresa privada a reinvestir todos os seus lucros de acordo com as determinações de autoridades públicas” (Drummond; Pereira, 2007, p. 135).

A crítica ao Cunha (1962), feita por Drummond e Pereira (2007), continuaria quando analisaram o contrato de concessão de empréstimo realizado pelo Eximbank à Icomi. No dia 14 de novembro de 1950, o governo brasileiro liberou para a Icomi US$ 35 milhões no Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Todavia, ao final de 1951 a empresa brasileira, após afirmar ter feito novos cálculos, aumentou o valor necessário para financiamento externo para US$ 48 milhões. Assim que a Bethlehem Steel confirmou a formação da joint venture com a Icomi, esta última desistiu da parceria com o BIRD, dada a possibilidade de realizar uma negociação com o Eximbank dos EUA, o qual fez as seguintes exigências:

Declaração do Ministro da Fazenda, em nome do Governo Federal e autorizado pelo Presidente da República, considerando economicamente vantajosos, sob o ponto de vista nacional, o projeto de aproveitamento das jazidas de manganês do Amapá e o plano de seu financiamento, bem como não existirem objeções ao prosseguimento da respectiva execução;

Autorização para a ICOMI exportar as quantidades de minério de manganês que forem necessárias ao pagamento integral das prestações programadas no serviço de empréstimo, podendo exceder, até o ano de 1965, inclusive, e enquanto não estiver integralmente liquidado o empréstimo, a quantidade de 500 mil toneladas anuais e contanto que não ultrapassasse a 1 milhão de toneladas por ano;

Autorização à Superintendência da Moeda e do Crédito para acertar com o Banco de Exportação e Importação as medidas satisfatórias no sentido de aplicar no serviço de empréstimo uma parte das divisas resultantes da venda de minério, equivalente a 15 milhões de dólares norte-americanos, aproximadamente (Cunha, 1962:91).

Segundo Cunha (1962), a Icomi comprometeu-se a conceder ao Defense Materials Procurement Agency (DMPA) 5,5 milhões de toneladas de minério de manganês que fossem produzidas até o dia 31 de dezembro de 1965. O governo estadunidense, além de ter 30% das 5,5 milhões de toneladas exigidas para o pagamento do empréstimo, também solicitou um desconto de 10% sobre o preço médio do mercado. Ficou que até o pagamento total do empréstimo 70% do que fosse produzido e exportado deveria ser destinado ao mercado estadunidense, e os outros 30% poderiam ser distribuídos para outros países, claro que sob a condição de que 50% do que fosse vendido deveria servir para pagar o empréstimo.

Sobre o contrato de empréstimo, Drummond e Pereira (2007) também analisaram a desproporção entre as garantias e as exigências feitas pelo banco estadunidense ao governo e à empresa brasileira. Primeiramente, o governo federal deveria declarar oficialmente que o empreendimento não teria obstáculos, de modo que fosse um projeto economicamente vantajoso. Se ocorresse algum erro, o governo brasileiro seria o responsável e teria que indenizar a financiadora dos EUA. Além disso, o banco exigia que o financiamento fosse pago pelas receitas geradas pela Icomi, ao passo que era o governo dos EUA que comprava o minério. Isso fez com que o Eximbank tivesse seu pagamento garantido. O governo brasileiro deveria conceder ainda isenções de impostos de importação para que a Icomi conseguisse os equipamentos para a construção da infraestrutura necessária para o empreendimento. Adicionalmente, o governo territorial deveria mudar a forma como seria feito o reinvestimento – inicialmente fora planejado que 20% do lucro líquido da Icomi seria reinvestido, no entanto, com as exigências do banco dos EUA, o governo teria que reinvestir o adicional de 1% dos royalties, que foi decrescendo progressivamente ao longo dos anos.

Até mesmo Drummond e Pereira (2007), defensores da Icomi, afirmaram que essas exigências eram rígidas, mas não ilegítimas, sendo comuns em negociações com bancos privados e agências multilaterais do mundo todo. Ao receber tais imposições, a Icomi transferiu-as a Janary Nunes, que, por sua vez, encaminhou o pedido para o Ministro da Fazenda, Horário Lafer, o qual as repassou ao Presidente Vargas sem grandes questionamentos. A aprovação do Presidente da República veio em 11 de março de 1953 por meio de uma publicação no Diário da União. Para aderir a todas exigências, Lafer permitiu a anexação de emendas ao contrato, as quais foram registradas no dia 29 de abril de 1953, cuja aprovação pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ocorreu em 14 de julho de 1953 (Drummond; Pereira, 2007). Para os autores, a garantia de mercado dada pela Bethlehem Steel e pelo DMPA permitiu a triangulação no fluxo de renda entre vendas e pagamentos que envolviam o empreendimento estudado. Como essas duas instituições norte-americanas compravam o manganês do Amapá e realizavam o pagamento diretamente ao Eximbank, amortizando a dívida da Icomi, o ciclo abria e fechava fora do país. Tratava-se da participação da maior produtora de aço do mundo, logo, um dos maiores mercados consumidores do manganês, e de uma importante agência dos EUA, preocupada em estocar o minério, segundo o qual era um instrumento estratégico no cenário político internacional do período conhecido como “Guerra Fria”.

Com o objetivo de estabelecer novas concessões diante do empréstimo de 67 milhões de dólares cedido pelo Eximbank à Icomi, no dia 29 de abril de 1953 foi acrescentado um “Termo Aditivo” ao contrato de exploração de manganês, em que salientamos:

Que o aditamento ao aludido contrato de 6 de junho de 1950 reger-se-á pelas cláusulas seguintes:

Primeira – Fica assegurado à ICOMI o direito de exportar as quantidades de minério de manganês que lhe forem necessárias ao pagamento integral das prestações programadas no serviço do empréstimo acima referido. Esse direito importa em que tais quantidades poderão exceder, até o ano de 1965, inclusive, e enquanto não estiver integralmente liquidado o empréstimo, ao mínimo de quinhentos mil (500.000) toneladas anuais previsto na cláusula 31ª do contrato de arrendamento de 6 de junho de 1950, já referido, contanto que não ultrapassem a um milhão (1.000.000) de toneladas em cada período anual, a partir do início regular das exportações.

Segunda – A ICOMI se obriga expressamente a pagar ao Governo do Território Federal do Amapá, por tonelada de minério de manganês que exceder ao mínimo de 500.000 acima referido, um preço de arrendamento adicional de 5% (cinco por cento) sobre o valor de exportação do minério no porto de embarque do Território – FOB;

Terceira – O Território exerce neste ato a opção a que se refere à cláusula 35ª do contrato de arrendamento já mencionado, de 6 de junho de 1950, de modo que a ICOMI deverá, até a liquidação do empréstimo, pagar o acréscimo ao preço do arrendamento previsto em dita cláusula, e dispensada, consequentemente, da alternativa de investimento, também referida na mesma cláusula (Cunha, 1962:98).

Cunha (1962) criticou o termo, visto que não o considerava um pequeno acréscimo. Pelas mudanças fundamentais que trouxe para a exploração de manganês no Amapá, ele funcionou como mais um novo contrato. Primeiramente, havia uma diferença significativa entre essa nova proposta e aquela celebrada pelo contrato original de 6 de junho de 1950: a quantia de manganês a ser exportada anualmente e o processo institucional exigido em cada período. Enquanto no contrato original previa-se a exportação de somente 500 mil toneladas de manganês anualmente, com um financiamento de 35 milhões de dólares, o termo assinado em 29 de abril de 1953 dobrou o valor do manganês a ser exportado (1 milhão de toneladas), com um empréstimo de 67,5 milhões de dólares. Quer dizer, a evolução dos termos contratuais reforça o caráter exportador do empreendimento. Além disso, Cunha (1962) também chamou a atenção para o fato de que em 1950 as condições do contrato foram estudadas pelos principais órgãos nacionais do setor – o CNMM, as comissões do Congresso Nacional e outras instituições do governo federal. No entanto, para a aprovação do “Termo Aditivo” de 1953 foi necessário apenas uma portaria do Ministério da Fazenda com um simples despacho do Presidente da República. Cunha (1962:99-100) ressaltou:

A cláusula primeira do “Termo Aditivo” diz apenas que as exportações, até o ano de 1965, poderão exceder ao mínimo de 500 mil e totalizar um máximo de 1 milhão de toneladas. Mas não diz que depois de 1965 a Companhia não poderá exportar mais de 500 mil. Pode a ressalva estar implícita, mas não está expressa. Sabe-se o que isso significa em fase judicial. A cláusula não ressalva, também, que se a Empresa pagar antes de 1965 o empréstimo obtido, deixará automaticamente de gozar dos favores da cláusula. Pois se a Empresa puder pagar o empréstimo com antecipação, seremos forçados a admitir que seus lucros foram suficientemente bons, mesmo abaixo do limite de 1 milhão de toneladas, ou que terá ela possibilidade de se beneficiar, num sentido, de concessão que lhe foi dada para outro fim.

Observamos na estrutura desse ciclo o caráter exportador da exploração de manganês em Serra do Navio, algo também muito criticado pelos nacionalistas do período. Drummond e Pereira (2007) acreditavam que não havia razão para se preocupar com a possibilidade de as siderúrgicas brasileiras ficarem sem abastecimento de manganês, dada a descoberta de novas jazidas em Minas Gerais, no Pará e no Mato Grosso, as quais, iam muito além do demandado pela nossa siderurgia na época. Este caráter exportador do empreendimento não era o que mais incomodava Cunha (1962), mas sim a passividade do governo federal e do TFA, que não barganharam melhor ganhos para a sociedade amapaense.

Padrão mundial de acumulação e exploração de manganês

Uma análise apressada do contrato de exploração de manganês na Serra do Navio pode supor vantagens locais para o desenvolvimento. Muitos acreditariam que o empreendimento estudado tinha a finalidade de levar à população amapaense melhores condições de vida, por meio de aumento da renda, dos índices de saúde, de educação, e, assim, por diante. Contudo, acreditamos que a interpretação defensora da ideia de que a exploração de manganês tenha trazido desenvolvimento, aliás, no sentido de um importante teórico do conceito como Celso Furtado (1984), ocorreu porque se usou demasiadamente de eufemismos e termos inapropriados pelos principais instrumentos de negociação e difusão de informação da época, como o jornal Amapá e os contratos de exploração mineral. Ao mesmo tempo em que legitimavam o empreendimento, dando a ideia de que as duas partes foram tratadas simetricamente, tais termos também mascaravam uma série de relações de poder entre os envolvidos: a pequena empresa brasileira Icomi, o governo federal e a grande mineradora estadunidense Bethlehem Steel.

Tanto no contrato de 1947 quanto no de 1950, a expressão arrendamento, por exemplo, foi constantemente usada de forma inadequada. O manganês seria concedido por um tempo e depois devolvido. O problema é que em um contrato de exploração de recursos naturais não renováveis o minério deixa de retornar para o solo amapaense, e, por isso, acreditamos que seria melhor usar o conceito de extração, dado que é disso que se tratava – um acordo de compra e venda, no qual o manganês era retirado de Serra do Navio e exportado. Das diferentes cláusulas que usavam o termo arrendamento de forma inadequada, destacamos: “Cláusula 28ª – Fica assegurado à Empresa o direito de explorar com exclusividade, e por meio de arrendamento, as jazidas de minério de manganês demarcada na forma da cláusula anterior” (Brasil, 1962:123, grifos nossos).

Concordamos com Cunha (1962) que a expressão revisão também seria inapropriada para se referir ao contrato de 1950. Quando o comparamos com o de 1947 é possível constatar que o de 1950 não traz apenas uma simples mudança de termos formais, mas sim novos meios de o capital se proteger contra qualquer barreira que impeça sua valorização, descomprometendo-o de obrigações com a sociedade amapaense. Tratava-se de um contrato que reafirmava o objetivo do empreendimento, garantindo à Icomi a liberdade de exportar o minério. Tanto que, se compararmos o contrato de 1947 (cláusula 36ª) com o de 1950 (cláusula 31ª), notaremos um aumento de 300 mil para 500 mil toneladas por ano de minério de manganês que deveriam ser minimamente exportados. É importante lembrar que essa quantia dobrou com o “Termo Adicional” de 1953, passando a 1 milhão de toneladas anuais (Drummond; Pereira, 2007). Uma vez que as cláusulas do contrato aumentaram progressivamente o mínimo a ser vendido para outro país, elas revelaram o principal objetivo da exploração de manganês: atender ao mercado externo, pois quase a totalidade da produção desse minério foi exportada.

Contudo, é pertinente enfatizar que o uso de tantos eufemismos em um contrato de exploração mineral pode, inclusive, ter ajudado o andamento das negociações, de acordo com as expectativas da empresa e do TFA. Muito provável que se o contrato tivesse as palavras mais apropriadas – como extração ou exploração, em vez de arrendamento –, os envolvidos teriam que enfrentar críticas mais severas por parte da corrente nacionalista, que ia completamente contra a associação com o capital internacional. Como expusemos na seção anterior, o contrato assinado em 6 de junho de 1950, e principalmente o “Termo Adicional” de 1953, passou com facilidade e em um espaço de tempo muito curto, impedindo qualquer organização das forças contrárias. O uso de tantas expressões inapropriadas reforça nossa hipótese de que os interesses do capital se sobrepunham aos interesses da sociedade amapaense. Mediante uma análise mais minuciosa, comparando os contratos de 1947 e de 1950, fica claro que os benefícios adquiridos pelo Amapá, mas, sobretudo, por Serra do Navio, tinham um limite: a valorização do capital internacional. Dado que não foi uma relação entre iguais – algo que pode ser percebido por meio de uma leitura atenta das 50 cláusulas que designam os direitos e as obrigações dos envolvidos.

Na cláusula 17ª, por exemplo, observamos que a exploração de manganês que deveria ser um meio do desenvolvimento, passou a ser o fim para valorização privada, visto que o poder público poderia ter acesso à infraestrutura criada pelo capital somente se não prejudicasse o bom andamento do empreendimento. De instrumento que poderia propiciar o aumento das potencialidades humanas naquela região, na verdade serviu para atender à demanda externa, mais precisamente dos EUA em um contexto de Guerra Fria. Se o manganês fosse um meio do desenvolvimento, não haveria uma cláusula destacando que um dos principais feitos do empreendimento, a ferrovia, poderia ser usado pela sociedade desde que não atrapalhasse os trabalhos da Icomi e da Bethlehem Steel. A formulação da cláusula 17ª deixaria evidente o sentido da exploração de manganês em Serra do Navio: a reprodução do capital em escala mundial:

Cláusula 17ª – A empresa reservará para o uso público uma capacidade de tráfego até de 200.000 toneladas anuais, distribuídas metade no sentido das jazidas e metade no sentido do porto, mediante tarifas fixadas de acordo com a legislação brasileira. Fica entendido que o objetivo primordial da estrada de ferro consistirá no transporte do minério de manganês da empresa, e que seu uso como meio de transporte para fins públicos e particulares, deverá ser razoável e que, por outro lado, esse tráfego não será de caráter oneroso para a Empresa e não virá prejudicar o empreendimento que é objeto deste contrato, isto é, a produção do minério de manganês (Brasil, 1962:121).

A combinação da cláusula 17ª com a 34ª denotava o quanto a organização do contrato seria, de certa forma, irônica, porque parecia defender os interesses da sociedade local, quando, na verdade, os direitos desta estavam restritos ao sucesso do empreendimento. E mesmo que autores como Drummond e Pereira (2007) afirmassem que os ganhos apenas viriam para o Amapá se a exploração mineral fosse bem-sucedida, seria importante destacar que tais cláusulas indicavam uma inversão desse argumento. Os direitos da sociedade amapaense deveriam estar a todo tempo subordinados à valorização do capital, e não o contrário:

Cláusula 34ª – A Empresa se compromete a abastecer a indústria nacional consumidora de minério de manganês até o total das suas necessidades aos preços de mercado, desde que os pedidos de minério lhe sejam submetidos com devida antecedência e respeitados os compromissos contratados com terceiros e o disposto na cláusula 31ª deste contrato (Brasil, 1962:124-125, grifos nossos).

Observamos também que em diversos pontos do contrato a empresa foi apontada como a benfeitora do empreendimento, algo identificado não somente neste ponto do marco regulatório, como também nos discursos e nos principais meios de comunicação da região, como o jornal Amapá. A empresa era tratada por expressões como “generosa” e “excepcional”, sendo aquela que proporcionou ao TFA a estrada de ferro, o porto e uma mudança positiva na vida social. Inclusive na cláusula 11ª mencionava-se: “Cláusula 11ª – Em igualdade de condições com qualquer outro meio de transporte, a Empresa dará preferência à construção de uma via férrea, pela influência que tal empreendimento terá sobre o progresso da região” (Brasil, 1962:120).

A questão é que esta cláusula ficava entre duas que apresentavam outro sentido para a construção da estrada de ferro, cuja função seria atender às necessidades da exploração mineral, e não da população local, a qual poderia usufruir de tal meio apenas se não prejudicasse a exportação do manganês e em condições limitadas. Tais prerrogativas podem ser identificadas na cláusula ١٠ª, pela qual vemos que:

Cláusula 10ª – De acordo com o resultado dos estudos feitos, em função da quantidade de minério constatada e de outros fatores locais, a Empresa escolherá o meio de transporte mais indicado e mais econômico para a remoção do minério das jazidas até o porto de embarque, submetendo suas conclusões à apreciação do Território (Brasil, 1962:120).

E, na cláusula 12ª observamos que:

Cláusula 12ª – Tendo em vista o elevado montante dos investimentos e despesas a serem feitos com a construção de uma via férrea, a Empresa considera que, para que se justifique tal construção será necessário constatar a existência de uma reserva mínima de 10 milhões de toneladas de manganês de alto teor, economicamente estável (Brasil, 1962:120).

Mesmo que a exigência de uma “reserva mínima” tenha um caráter técnico, dada a necessidade de uma escala capaz de fornecer custos unitários mínimos, gerando rentabilidade ao empreendimento, queremos chamar a atenção para o fato de que foi essa preocupação técnica que impulsionou a exploração mineral, e não a intenção de transcender os benefícios do empreendimento para a sociedade local.

Devemos ficar atentos igualmente para o fato de que, por meio do contrato, o capital tinha acesso não apenas ao manganês, mas também a uma série de outros meios de propriedade da sociedade amapaense, os quais não foram negociados à parte. Nenhum imposto foi recebido sobre esses elementos específicos, tais como a água, a madeira, as terras e assim por diante. Ao se comprometer integralmente com as exigências da empresa, que obrigava o poder público a facilitar o escoamento do produto, o governador Janary Nunes facilitou a concessão de terras essenciais para a construção da estrada de ferro, para as instalações portuárias, vilas etc. O ponto é que toda essa área de propriedade pública foi passada para a Icomi sem a devida negociação. Como bem podemos constatar na cláusula 44ª do contrato, o TFA concedeu à Icomi muito mais do que o manganês:

Cláusula 44ª – O território auxiliará a Empresa nas diversas fases do seu trabalho no Território Federal do Amapá nas questões que surgirem contra a sua ação, permitindo-lhe utilizar-se, a juízo do Território, dos recursos naturais da região, como terras, águas, madeiras, lenhas, etc., que constituem servidões e utilidades necessárias ao aproveitamento das jazidas e à exploração das mesmas, da estrada de ferro e das instalações portuárias e que se encontrem em terras devolutas. Com a devida consideração pelo interesse público e sob fiscalização das autoridades competentes, a Empresa poderá dragar rios, fazer barragens, cortes e aterros e realizar quaisquer outras obras úteis à exploração das jazidas e aos transportes de minérios (Brasil, 1962:127).

E os arranjos do empreendimento ficavam ainda mais bem estabelecidos em favor da Icomi quando nos atemos para a cláusula 30ª do contrato:

Cláusula 30ª – Se, descobertas outras jazidas de minério de manganês, além das mencionadas na cláusula 27ª, cujo aproveitamento dependa da utilização dos serviços da estrada de ferro ou do porto, construídos pela Empresa, em região tributária dessa via férrea, compromete-se o Território a dar à Empresa prioridade de avaliação, estudos e pesquisas, bem como para o aproveitamento dessas jazidas, em igualdade de condições em outros concorrentes (Brasil, 1962:123-124).

Tratando-se de um contrato de direitos e obrigações, o poder público teria o direito, assim como o dever, de exigir termos mais favoráveis à sociedade amapaense. O problema que não encontramos nenhum registro que apresentasse uma tentativa do governo do TFA em barganhar melhores condições para a sociedade nos documentos analisados, tampouco os jornais ou os livros que examinaram os contratos de exploração de manganês no Amapá, revelaram uma contraproposta realizada pelo TFA e/ou pelo governo federal. Sendo assim, constatamos que no que diz respeito à sociedade amapaense o poder público teve uma postura passiva nas negociações, aceitando os termos que enviesavam o contrato para atender aos interesses do capital privado.

Se as cláusulas destacadas anteriormente ocultavam o verdadeiro sentido da exploração de manganês no Amapá, a maior parte dos meios de comunicação e das pesquisas a que tivemos acesso ignorou também a presença de um agente fundamental na nossa interpretação: a Bethlehem Steel. Um estudo mais atento seria capaz de perceber que a participação de uma grande mineradora já estava premeditada pelos dois lados: primeiro, a Icomi não era capaz de mobilizar capital e tecnologia suficiente, dada a contraposição entre seu tamanho e as exigências do empreendimento; segundo, naquele momento histórico (Guerra Fria), as grandes consumidoras de aço eram estimuladas a buscar o controle das principais fontes de minério necessárias para a siderurgia.

Quando se associou com a Icomi, a Bethlehem Steel já vinha se consolidando no mercado há quase um século, visto que iniciou os seus trabalhos em ١٨٥٧ em South Bethlehem, na Pennsylvania, tendo a laminação de ferro railroad como uma das suas principais atividades. Em 1899, já com o nome de Bethlehem Steel Company (BSC) concentrou sua produção na fabricação de geradores elétricos e placas de armadura para os navios da Marinha dos EUA. Na década de 1930, a mineradora estadunidense passou a controlar diversas usinas siderúrgicas no país, como em Los Angeles, São Francisco, Califórnia, Seattle e Washington, participando da construção de importantes obras em todos os EUA, como a ponte Golden Gate, em São Francisco, o Rockefeller Plaza e o Hotel Waldorf Astoria, em Nova York, o Merchandise Mart, em Chicago, e o edifício da Suprema Corte dos EUA, em Washington (Reference for business, 2015).

A entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial manteve os moinhos da Bethlehem Steel Company em constante movimento. Internamente, ela também fornecia aço para construir os prédios mais importantes do país, estradas, pontes, criando espaço para o crescimento da periferia da nova grande potência do globo. No decorrer da Guerra, a empresa norte-americana produziu aproximadamente 73 milhões de toneladas de aço, representando um terço do consumo da indústria bélica dos EUA. A proximidade fez com que as vendas brutas da Bethlehem saíssem de US$ 135 milhões em 1941, para US$ 1,33 bilhões em 1945, passando a ser uma gigante da indústria do aço. Com o fim da Segunda Guerra, a demanda mundial por aço não caiu, ao contrário, tornou maior do que durante o conflito bélico, face a intensificação da corrida armamentista. O aumento da demanda também foi influenciado pelo crescimento do consumo de carros e de demais bens de consumo duráveis, assim como o abastecimento das economias destruídas pela Guerra (Reference for business, 2015).

Durante a década de 1950, a Bethlehem Steel era a segunda maior produtora de aço dos EUA, tendo o controle dos recursos estratégicos, da produção e da distribuição das matérias-primas necessárias para a siderurgia. A empresa estadunidense fabricava navios, plataforma de perfuração offshore, bem como participava da produção de forjados e fundidos, controlando grande parte da distribuição de aço para a indústria doméstica de construção, ferrovias e indústria automobilística do país (Reference for business, 2015).

A Bethlehem Steel e sua posição estratégica no padrão mundial de acumulação nos anos 1950 foram ignoradas pela maioria dos estudos sobre a exploração de manganês no Amapá. Tratava-se de uma grande empresa, com capacidade política e econômica de mobilizar uma das principais potências do mundo capitalista. O poder desta corporação dos EUA em influenciar as decisões de um país na periferia do sistema foi completamente omitido. As análises que associavam a formação da joint venture entre a Icomi e a Bethlehem Steel com o empréstimo concedido pelo Eximbank à empresa brasileira eram normalmente superficiais, como foi o caso de Cunha (1962) e Drummond e Pereira (2007). Desconsideravam que a associação com a Bethlehem Steel e o Eximbank reforçava a economia de enclave que essa exploração mineral representou, uma vez que se apropriaram de grande parte da renda gerada pelo empreendimento.

É importante lembrar que dois dias após a assinatura do contrato de ١٩٥٠, Augusto Antunes (Diretor da Icomi), Glycon de Paiva (engenheiro de minas do DNPM), Janary Nunes (Governador do Amapá) e o engenheiro da Bethlehem Steel, Paul Brenner, foram à Presidência da República para solicitar à União um empréstimo no valor de US$ 35 milhões para financiar o empreendimento. Essa quantia já estava sendo negociada com o BIRD, e, em seguida, com o Eximbank, que havia feito duas exigências que interessam para a análise deste trabalho: 1ª) garantia de mercado; 2ª) o governo brasileiro deveria assumir o papel de emprestador de última instância (Leal, 1988). Na reunião, a Bethlehem Steel garantiu convenientemente a primeira das exigências, na medida em que assegurou mercado para o manganês amapaense. Acreditamos que as imposições feitas pelo BIRD definiam o sentido da exploração de manganês em Serra do Navio – a exportação de um recurso altamente estratégico para atender à demanda de um dos grandes trustes da mineração. Dessa maneira, notamos como as negociações que viabilizaram o empreendimento estudado conectavam-se muito bem aos domínios do capital internacional na Amazônia conforme sua estratégia de valorização externa. Isso porque, se uma das exigências entregava o minério amapaense para essa grande empresa, a outra garantia que, em caso de algum evento inesperado, o Estado deveria assumir o papel de emprestador de última instância, tomando a dívida do setor privado para si.

Mais uma vez devemos chamar atenção para a celeridade com que o processo ocorreu. No dia 7 de junho de 1950, vários representantes envolvidos na exploração de manganês reuniram-se na Presidência da República para discutir a necessidade de financiamento. Seis dias depois, Glycon de Paiva entrou em cena mais uma vez, como diretor da CNMM, para autorizar o pedido. Notamos, desse modo, que em menos de uma semana foram criados todos os documentos necessários para legitimar institucionalmente a exploração de manganês no Amapá. Tratava-se de uma série de documentos que estabeleciam termos precisos que resumiam o imperativo de uma economia subdesenvolvida – “o Estado assume os custos, e o capital, os lucros” (Leal, 1988:178). Em síntese, a junção dos termos do contrato de empréstimo com aquele assinado em 1950 revelava como o capital internacional foi cauteloso, submetendo os interesses da sociedade, os quais foram postos como secundários e acessórios, à sua valorização em escala cada vez mais ampliada. Típica de uma lógica de conquista presente em outros negócios da economia brasileira nesse período (Campos, 2009).

Conclusão

Seguindo critérios vantajosos à Icomi e à Bethlehem Steel, no sentido de propiciar maior valorização de vossas riquezas, o modo como a exploração de manganês em Serra do Navio foi encaminhado, ao representar um projeto de colonização do governo federal por meio da atração do capital privado, resultou em benefícios concentrados no tempo e no espaço. Apresentamos ao longo desse artigo que o novo contrato procurou assegurar todas as garantias a favor das mineradoras, deixando para elas apenas obrigações triviais que não prejudicassem seus interesses naquele local.

Drummond e Pereira (2007) buscaram comprovar que a exploração de manganês em Serra do Navio propiciou o desenvolvimento do TFA. Uma série de variáveis foi apresentada por estes autores com o intuito de provar o sucesso do empreendimento estudado. Para eles, o crescimento populacional, o aumento das vacinações, a elevação das matrículas escolares de 1º e 2º grau, a construção de conexões com a rede de fornecimento de água, esgoto e energia, o crescimento do emprego e da renda seriam elementos qualitativos que comprovam o êxito do nosso caso em estudo.

Se analisarmos, entretanto, as mesmas variáveis apresentadas por Drummond e Pereira (2007), observamos que o desempenho delas segue a lógica de uma economia de enclave, isto é, concentrada no tempo e no espaço, atendendo aos interesses do capital. Melhor dizendo, a Icomi e a Bethlehem Steel não construíram ferrovias, portos, casas e toda uma infraestrutura invejável para beneficiar a sociedade amazônica, mas sim porque elas precisavam dessa infraestrutura mínima para explorar o minério. O desenvolvimento local se anulou quando o manganês foi completamente exaurido. Constatamos que a taxa de crescimento da população no TFA seguiu o ritmo e o sentido da exploração mineral, à medida que foi caindo ao longo do tempo. Sendo assim, se os autores liberais apontam o crescimento populacional como uma variável positiva para o desempenho socioeconômico do Amapá, os seus próprios dados nos mostram o quanto estes eram centrados no tempo, visto que a taxa de crescimento da população do território que foi mais de 80% na década de 1960, reduziu-se drasticamente para 25,82% nos anos 2000.

Esse mesmo ritmo e sentido foram seguidos por outras variáveis, como o número de pessoal ocupado pela Icomi entre 1957 e 2001. No período de instalação, a Icomi chegou a empregar quase 2000 trabalhadores em Serra do Navio, uma quantia que, apesar da redução com o final da fase de construção do perímetro de mineração, da ferrovia, do porto e das vilas, conseguiu se sustentar entre 1.000 e 1.500. Contudo, quando a Bethlehem Steel desfez a associação com a Icomi diante de certas mudanças no cenário, o número de pessoal ocupado pela Icomi caiu de 1.060 para 785, em 1986, sendo que nunca mais voltou a ser representado por quatro dígitos. Após esse episódio, a variável foi diminuindo constantemente até que, em 2001, a pequena empresa brasileira empregava apenas quatro trabalhadores. A receita bruta da Icomi chegou a US$ 132,5 milhões (valores convertidos para 1994). Porém, em 1977, caiu para US$ 77 milhões, sustentando a receita entre US$ 60 e 80 milhões até 1986, quando ela reduziu drasticamente para US$ 25 milhões, oscilando entre US$ 22 e 17 milhões entre 1990 e 1997.

Em resumo, a exploração de manganês no Amapá foi um verdadeiro modelo de economia de enclave, em que grande parte da renda gerada pelo empreendimento não se irradiou pela região. Além de 96% das vendas serem de direito do capital privado, precisamos lembrar que desse total 49% pertenciam à Bethlehem Steel. Mesmo que autores como Drummond e Pereira (2007) afirmassem que não foram apenas 4% das vendas que ficaram para o TFA, como também um reinvestimento de 20% do lucro líquido, o que observamos foi que esse reinvestimento serviu muito mais para atender aos interesses da empresa privada do que os do Amapá. Tanto que a maior parte deles esteve centrada nas cidades de Serra do Navio, Santana e Macapá, sem qualquer expansão para as regiões mais afastadas do território federal.

A descoberta do manganês no Amapá representou a possibilidade de o capital internacional ter acesso a um recurso altamente estratégico em um período de redefinição do padrão mundial de acumulação. Para ter acesso à essa riqueza, a Bethlehem Steel associou-se com a pequena empresa brasileira Icomi, garantindo mercado e financiamento externo por meio do Eximbank, de modo a contribuir para que o ciclo começasse e terminasse fora do país, fluindo a maior parte da riqueza e da produção mineral para os polos industriais estadunidenses. No entanto, essa mesma oportunidade de crescimento econômico, que surgiu quando a mina foi descoberta, extinguiu-se quando todo manganês foi extraído e exportado para os EUA. Consequentemente, tivemos a redução de pessoas ocupadas pela Icomi, a infraestrutura criada para atender à exploração mineral tornou-se carcaça, e a Serra do Navio passou a ser uma cidade fantasma. Quando a Bethlehem Steel percebeu que o manganês estava acabando, rapidamente desfez suas ligações com a Icomi e o Amapá.

Referências

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