Volumen 31 Nº 3 (julio-septiembre) 2022, pp. 106-135

ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44

A concepção de movimentos cíclicos em tempos de crise pandêmica: implicações socioeconômicas da Covid-19 no Brasil

André Cutrim Carvalho, David Ferreira Carvalho y

Auristela Correa Castro

Resumo

Os ciclos econômicos possuem uma dinâmica que se manifesta no formato de ondas. A inflexão da fase de auge econômico (boom) para a fase de recessão é o momento de crise. Menosprezada por muitos, pode-se afirmar que os efeitos da crise pandêmica decorrente da Covid-19 ganharam implicações típicas de uma grande crise global, sobretudo no Brasil. Neste cenário de pandemia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a economia global foi inserida numa grave crise socioeconômica. O objetivo fundamental do presente artigo é discutir a concepção conceitual de crise e de movimentos cíclicos em tempos de pandemia de Covid-19 e as principais implicações socioeconômicas no Brasil. Para alcançar esse objetivo, o artigo fará uso de metodologia de pesquisa do tipo exploratória e qualitativa. A principal conclusão é a de que a crise pandêmica trouxe para o Brasil uma série de problemas econômicos, tais como: desemprego e alta inflacionária, porém o fato mais grave foram os problemas de ordem social, principalmente o aumento significativo da pobreza e da desigualdade social. O uso do “auxílio emergencial”, como política anticíclica e de apoio as estratificações sociais mais vulneráveis em tempos de pandemia, foi de extrema importância por ter criado um “colchão” de proteção social. Entretanto, tendo como base uma série de dados oficiais, pode-se afirmar que o governo Bolsonaro não conseguiu lograr êxito em sua empreitada para mitigar os impactos socioeconômicos da crise de Covid-19 no Brasil, muito disso por conta de uma retórica negacionista e de muita desinformação (fake news) em relação as vacinas

Palavras-chave: ciclos econômicos; crise pandêmica; movimentos cíclicos; Covid-19; Brasil

Universidade Federal do Pará (UFPA). Belem, Brasil. E-mail: andrecc83@gmail.com. ORCID: 0000-0002-0936-9424

Universidade Federal do Pará (UFPA). Belem, Brasil. E-mail: david.fcarvalho@yahoo.com.br. ORCID: 0000-0002-9161-4715

Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Santarem, Brasil. E-mail: auristelaccastro@gmail.com. ORCID: 00000-002-3979-929X

Recibido: 30/09/2021 Aceptado: 11/06/2022

The conception of cyclical movements in times of pandemic crisis: socioeconomic implications of Covid-19 in Brazil

Abstract

Economic cycles have a dynamic that manifests itself in the form of waves. The inflection from the economic boom phase to the recession phase is the moment of crisis. Disregarded by many, it can be said that the effects of the pandemic crisis resulting from Covid-19 have gained typical implications of a major global crisis, especially in Brazil. In this pandemic scenario, according to the World Health Organization (WHO), the global economy has been inserted into a serious socioeconomic crisis. The fundamental objective of this article is to discuss the conceptual conception of crisis and cyclical movements in times of the Covid-19 pandemic and the main socioeconomic implications in Brazil. To achieve this objective, the article will use exploratory and qualitative research methodology. The main conclusion is that the pandemic crisis brought to Brazil a series of economic problems, such as unemployment and high inflation, but the most serious fact was the social problems, mainly the significant increase in poverty and social inequality. . The use of “auxílio emergencial”, as a counter-cyclical policy and to support the most vulnerable social stratifications in times of a pandemic, was extremely important for having created a “mattress” of social protection. However, based on a series of official data, it can be said that the Bolsonaro government was unable to succeed in its endeavor to mitigate the socioeconomic impacts of the Covid-19 crisis in Brazil, much of it due to denialist rhetoric and a lot of disinformation (fake news) about vaccines.

Keywords: economic cycles; pandemic crisis; cyclical movements; Covid-19; Brazil

Introdução

De início, se sabe que a economia capitalista é uma economia imanentemente instável pela sua própria natureza, de forma que essa instabilidade pode resultar, de maneira súbita e violenta, em uma crise econômico-financeira, como se tem conhecimento histórico das muitas crises pelo mundo, à saber: o crash de 1929 nos Estados Unidos; a crise da borracha no Brasil entre 1910 e 1920; as três grandes crises do petróleo do Oriente Médio para o mundo em 1973, 1979 e 1991, respectivamente; a crise subprime, também nos Estados Unidos, em 2007-2008; e, recentemente, a crise pandêmica decorrente da Covid-19 no final de 2019, que segue em curso em 20221.

Em breves linhas, o fenômeno da “crise” pode ser compreendido como um processo de ruptura estrutural, que ocasiona uma importante modificação comportamental, além de uma série de drásticas alterações no desenvolvimento de um determinado evento, sistema ou matéria. Este conceito inclui, dentre outros, uma condição de crise social, política, financeira e econômica.

Na prática, a crise em uma economia capitalista representa, apenas, o momento da inflexão do boom de prosperidade para a recessão. Isso é assim porque a crise gera uma sequência de movimentos intermitentes que são chamados de ciclos econômicos e seguem, grosso modo, uma determinada sequência cíclica de recessão, depressão, estagnação, recuperação, expansão e prosperidade.

Do ponto de vista histórico e dependendo do viés literário referente ao conceito, porém, uma crise financeira pode remeter a um aspecto da crise econômica, ou seja, a crise financeira pode estar diretamente associada a uma crise econômica. Este conceito inclui outras crises já investigadas no âmbito das ciências econômicas como, por exemplo, as crises de superprodução.

Estas ponderações iniciais são importantes para demonstrar a dinâmica das flutuações cíclicas nos níveis de atividade econômica e sua relação com as expectativas dos agentes, que são desenvolvidas em função da formação de hipóteses sobre eventos futuros, ou seja, de acordo com a possibilidade de que um evento futuro ocorra. Contudo, existem sequências múltiplas e variadas de probabilidades relacionadas a ocorrência de determinados eventos na economia, que dependem de variáveis e informações que ainda não foram alcançadas pela não possibilidade de sua mensuração como, por exemplo, uma catástrofe natural; ou mesmo a disseminação de um vírus como o da Covid-19.

A aproximação desses conceitos, em conjunto com níveis de incerteza econômica, podem ajudar na explicação sobre os estímulos que induzem a formação de expectativas dos agentes e levá-los a impulsionar ou desestimular a produtividade. Há, de certo modo, uma referência à psicologia econômica que admite uma relação próxima ao comportamento e tomada de decisões econômicas pelos indivíduos e instituições para a alocação de recursos, preços ou consumo.

No Brasil e no mundo, pode-se afirmar que a crise da Covid-19 (novo Coronavírus) foi menosprezada por muitos, sobretudo por parte da classe política, que fizeram (e continuam fazendo) uso de retórica negacionista, anti-vacina e de muita desinformação (fake news). Nesse contexto, pode-se afirmar que os efeitos da crise pandêmica decorrente do novo Coronavírus ganharam implicações típicas de uma grande crise global, sobretudo no Brasil.

Na obra clássica: Can “It” Happen Again? Essays on Instability and Finance, escrita no ano de 1982 por Hyman Philip Minsky, o referido autor faz a seguinte pergunta (provocação): “Isso” – uma grande Depressão – pode acontecer de novo? Minsky tinha razão, pois a grave crise pandêmica, decorrente do novo Coronavírus, continua provocando grandes mazelas sociais e econômicas pelo mundo, sendo disseminada por meio de novas variantes como a variante alfa, beta, gama, delta, ômicron e lambda, só pra citar algumas.

Nesse contexto, pode-se constatar que a crise pandêmica já não é mais um problema de saúde-sanitária, pois tornou-se uma grave crise econômico-financeira. Isso posto, o objetivo fundamental do presente artigo é discutir a concepção conceitual de crise e de movimentos cíclicos em tempos de pandemia de Covid-19, além de enumerar e as principais implicações socioeconômicas desta crise pandêmica no Brasil. Para alcançar esse objetivo, o artigo fará uso de metodologia de pesquisa do tipo exploratória e qualitativa

Desta forma, o presente artigo foi estruturado em quatro tópicos, além dessa introdução. No tópico seguinte são apresentados os conceitos e definições acerca dos movimentos cíclicos nos níveis de atividade econômica; além disso, uma (re)leitura interpretativa sobre as crises nas economias capitalistas contemporâneas é devidamente desenvolvida e explicada; bem como o papel da eficiência marginal do capital e das expectativas na dinâmica dos ciclos econômicos que são debatidos; no terceiro tópico –e mais importante– são apresentadas as principais implicações socioeconômicas da crise pandêmica de Covid-19 no Brasil; e, por último, as considerações finais.

Os movimentos cíclicos nos níveis de atividade econômica: entendendo conceitos e definições

Os ciclos de uma economia possuem uma dinâmica distinta, pois manifestam-se em forma de “ondas” e atuam tanto nas atividades produtivas quanto nas atividades financeiras. O termo “movimento cíclico” descreve uma dinâmica em torno da economia capitalista que transcursa de modo a variar, alternando em direção ascendente e descendente quando atinge o seu auge de expansão, com características de efeitos cumulativos positivos e negativos.

Um movimento cíclico significa, então, que os níveis de atividade econômica progridem e desenvolvem-se em direção ascendente procedido das forças econômicas que, até então, são suficientes para mantê-los em constante evolução produzindo efeitos cumulativos positivos, até certo ponto onde, invariavelmente estas forças expansivas enfraquecem e gradativamente vão cessando, partindo para um equilíbrio e, por conseguinte, para uma reversão de energia, onde as forças econômicas, atingido seu limite máximo de expansão, começam a declinar dando lugar à efeitos cumulativos negativos que conduzem em direção descendente.

As flutuações cíclicas, portanto, são caracterizadas por ondas de expansão, recessão, contração e crise e, no geral, se repetem com frequência no decorrer do tempo. Nas palavras de Keynes:

Por movimento cíclico queremos dizer que, quando o sistema evolui, por exemplo, em direção ascendente, as forças que o impelem para cima adquirem inicialmente impulso e produzem efeitos cumulativos de maneira recíproca, mas perdem gradualmente a sua potência até que, em certo momento, tendem a ser substituídas pelas forças que operam em sentido oposto e que, por sua vez, adquirem também intensidade durante certo tempo e fortalecem-se mutuamente, até que, alcançado o máximo desenvolvimento, declinam e cedem lugar às forças contrárias. (1996:293, grifo nosso)

Para Keynes (1996), do ponto de vista gráfico, as ondulações parecem ultrapassar um momento repentino de crescimento (movimento ascendente) ao encaminhar, de maneira (quase) automática, imediata e instantânea, para o período de enfraquecimento, inflexão e, posteriormente, declínio (movimento descendente); quando na realidade existe certa regularidade e duração nesta fase, assim como também na fase de depressão.

Carvalho observa que: “os ciclos econômicos podem ser vistos como uma série de movimentos intermitentes que seguem, por muitas vezes, uma determinada sequência cíclica passando pela fase de recessão, depressão, estagnação, expansão e prosperidade” (2015:754). No Gráfico 1, por exemplo, é possível depreender que o ciclo econômico envolve momentos de expansão e crescimento desenvolvidos nas fases de recuperação da atividades econômicas e nos períodos de prosperidade.

Gráfico 1. Dinâmica cíclica da economia

Fonte: Carvalho (2019).

O período de prosperidade representa o momento em que a economia está em frequente processo de evolução e em um patamar elevado de sua natureza capitalista como, por exemplo, na produção, no emprego, no consumo ou nos investimentos. Esse período pode prolongar-se até alcançar o seu auge, também chamado de boom de prosperidade onde, em seguida, ocorre uma ruptura levando às fases de contração e declínio.

Essa transição do período de prosperidade para a fase de recessão, como se vê através do Gráfico 1, é o momento em que se designa a crise. Para (Keynes, 1996), o fenômeno da crise é uma das características do ciclo econômico. Assim, como assegura (Carvalho, 2014), o momento da ocorrência de uma crise é proporcionado através da inflexão do período de auge econômico para o período de recessão.

Em outras palavras, uma crise na economia capitalista ocorre no momento da transição da fase de prosperidade para a fase de recessão, portanto no período do boom da prosperidade2. Após ser consolidada a crise, inicia-se o período de recessão rumo à depressão com possibilidades da economia estagnar ou se recuperar, movendo-se novamente o ciclo de expansão em direção ao auge da prosperidade. Keynes esclarece este momento da seguinte forma:

(...) para que a nossa explicação seja adequada, devemos incluir outra característica do chamado ciclo econômico, ou seja, o fenômeno da crise — o fato de que a substituição de uma fase ascendente por outra descendente geralmente ocorre de modo repentino e violento, ao passo que, como regra, a transição de uma fase descendente para uma fase ascendente não é tão repentina. (1996:294, grifo nosso)

De modo geral, a recessão é o momento de mudanças negativas, em que se vê a diminuição do ritmo da economia (contração) e seu iminente declínio em função da materialização de algum evento que acarretou numa crise do sistema econômico, ocasionando uma diminuição nos níveis de investimentos, retração econômica por parte da produção e consumo, dentre outros fatores. Exemplo: a crise de 1929, a crise subprime em 2017-2018 e, mais recentemente, a crise pandêmica decorrente da Covid-19.

A depressão, por sua vez, configura-se em um agravamento das variáveis já citadas no período de recessão, levando a uma redução significativa nos níveis da atividade econômica e intenso desemprego, como se vê nas altas taxas de desemprego no Brasil. Desta forma, quando estes níveis de atividade econômica começam a crescer e expandir, ocorre então o período de “recuperação”, que consiste em um determinado momento em que a economia se restaura e suas variáveis passam a ser controladas e reerguidas. Para Carvalho:

(...) o agravamento da crise rumo à recessão é percebida através da queda da arrecadação tributária devido à redução do nível da atividade econômica, dispensa de trabalhadores porque os empregadores não conseguem arranjar dinheiro para a folha de pagamento dos salários ou porque receiam de que suas mercadorias não sejam compradas na quantidade e preços necessários ao atendimento dos seus custos e margem de lucros. Até os melhores ativos financeiros veem seus preços caírem e os mercados de bens e serviços ficam caóticos quanto pelas vendas e preços bem reduzidos de forma que tudo isso acaba contribuindo para uma violenta contração da economia. (2014:110)

Uma das características utilizadas como parâmetro para melhor identificar um período de boom ou depressão na economia, é através da avaliação do Produto Interno Bruto (PIB), principal indicador macroeconômico. O PIB é a medida padrão do valor monetário de todos os bens e serviços produzidos dentro da fronteira de uma nação para um dado período de tempo, geralmente de um ano, e inclui todos os valores monetários de bens e serviços tanto do setor privado quanto do setor público.

O PIB é a principal variável macroeconômica que mede o desempenho da economia de uma nação, mas não é a única. Outras medidas, a exemplo da taxa de desemprego, da taxa de inflação e dos déficits orçamentários e comerciais, são também importantes para medir outros fenômenos da economia, sobretudo em tempos de prosperidade ou crise.

Em tempos de pandemia decorrente do novo Coronavírus, os economistas do mercado financeiro estimaram a queda do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, no ano de 2020, em 5,11%. Em contra partida, o Banco Mundial previu uma queda de 8% e o Fundo Monetário Internacional (FMI), um tombo ainda maior, na faixa de 9,1%; para o ano de 2022, segundo analistas do mercado financeiro, há uma projeção de crescimento (pífio) em torno de 0,36%.

As crises e ciclos econômicos podem ser considerados como uma circunstância, disposição ou condição da economia, já que possuem uma complexa relação no que diz a respeito ao movimento que o capital realiza. Nota-se com isso que os ciclos econômicos são inerentes a economia capitalista e podem surgir de características, conjunto de elementos e períodos diferentes, além de causas e origens diversas.

Apesar da característica cíclica de movimentação ascendente e descendente, os ciclos econômicos não se manifestam em intervalos propriamente regulares, ou seja, eles não possuem natureza periódica invariável. Para Carvalho, quanto às flutuações nos ciclos das atividades econômicas, elas podem ser caracterizadas da seguinte forma:

As flutuações dos negócios econômicos nas economias capitalistas são de muitas espécies e têm causas múltiplas. Algumas são súbitas, isoladas, descontinuas e de curta ou média duração; enquanto isso, outras são prolongadas e causadoras de mudanças estruturais na economia. Outras possuem uma dinâmica própria que se manifesta em movimentos ondulatórios chamados de “ciclos econômicos”. Estes tendem a cobrir a economia como cujas consequências produzem, em geral, mudanças estruturais ao longo do tempo. Essas sumárias observações revelam que os ciclos econômicos são apenas umas das diversas formas de flutuações que podem encontrar-se nas atividades econômicas e financeiras. (2014:96)

Estey (1965 apud Carvalho, 2014:97), em seu livro sobre “Ciclos Econômicos”, classifica as flutuações em quatro categorias: “tendências seculares, flutuações estacionárias, flutuações cíclicas e flutuações esporádicas”. Carvalho (2014:97, grifo nosso), contudo, procurou em Keynes e a sua teoria da crise geradora do ciclo econômico compreender outros aspectos nos seguintes termos:

No Capítulo 22 da Teoria Geral (TG), Keynes desenvolve suas “Notas sobre o Ciclo Econômico”. Como nos capítulos anteriores Keynes tinha demonstrado como o princípio da demanda efetiva, ex ante, determina, numa economia fechada, o volume de emprego efetivo, ele resolveu integrar no âmbito da sua teoria geral o fenômeno do ciclo econômico. Keynes reconhece a grande complexidade do ciclo econômico, e para sua completa explicação procura utilizar todos os elementos de sua teoria geral: especialmente as flutuações da propensão a consumir, do estado de preferência pela liquidez e da eficiência marginal do capital que desempenham suas funções na dinâmica cíclica. Mas, a natureza essencial do ciclo econômico e, sobremaneira, sua regularidade de ocorrência e duração são devidas ao modo como flutua a eficiência marginal do capital. Neste sentido, o fenômeno do ciclo econômico da economia capitalista deve ser considerado como o resultado de uma variação cíclica na eficiência marginal do capital, embora complicado e com frequência agravado por variações que acompanham outras variáveis importantes do sistema econômico no curto prazo. Os teóricos dos ciclos econômicos, em geral, procuram desdobrar os movimentos cíclicos em fases: ascendente (recuperação, expansão e auge), descendente (recessão e depressão) e, entre os movimentos ascendentes e descendentes, quando a economia atinge o auge, a crise. (2014:97, grifo nosso)

Ele prossegue:

Por movimento cíclico, Keynes entende o desenvolvimento do sistema econômico em direção ascendente, quando as forças econômicas que o impelem para cima adquirem, inicialmente, impulso e produzem efeitos cumulativos positivos recíprocos (recuperação), mas que na sequência perdem gradualmente a sua potência até que, num dado momento, essas forças expansivas tendem a ser substituídas pelas forças que operam em sentido inverso e que, por sua vez, adquirem também intensidade e fortalecem-se reciprocamente, até que, alcançado o máximo de expansão econômica, declinam e cedem lugar aos efeitos cumulativos negativos que o impelem para baixo no sentido descendente de uma recessão ou mesmo de uma depressão como um estado mais fundo do vale. (2014:97-98, grifo nosso)

Em uma economia capitalista, deste modo, tanto o movimento ascendente (de prosperidade) quanto o movimento descendente (de depressão) são de natureza cumulativa. Nestas condições, como adverte Keynes:

Todavia, por movimento cíclico não queremos dizer simplesmente que essas tendências ascendentes e descendentes, uma vez iniciadas, não persistam indefinidamente na mesma direção, mas que acabam por inverter-se. Queremos dizer, também, que existe certo grau reconhecível de regularidade na sequência e duração dos movimentos ascendentes e descendentes. (1996:294, grifo nosso)

Schumpeter traz à baila importante contribuição sobre o assunto quando diz que:

A ubiquidade dos fatos podem nos levar a conclusões de que cada ciclo econômico constitui uma unidade histórica que não pode ser explicada senão mediante uma análise histórica detalhada de numerosos fatores que concorreram em cada caso. Dito de outra maneira, para compreender os ciclos econômicos deve-se adquirir experiência histórica, do modo como o aparelho econômico reage ante tais perturbações, suficiente para se analisar as razões pelas quais o conhecimento dos fatos passados tem uma importância prática transcendental, e em alguns aspectos da maior relevância, capaz de aumentar o acervo do conhecimento atual por acréscimo aos nossos conhecimentos acumulados com o tempo apenas de forma lenta. Por outro lado, como o conhecimento avança a reboque dos fatos, sobretudo com relação ao ritmo das mudanças nos preços e nos lucros e também nas suas magnitudes absolutas, o esforço de integração de todas as variáveis que causam as perturbações cíclicas não é uma tarefa fácil. (1956:18, tradução nossa apud Carvalho, 2014:95)

Para Estey, os ciclos econômicos:

(...) são manifestações reais de flutuações da atividade econômica geral que surgem do conjunto de flutuações relacionadas entre si de numerosos ciclos específicos. No que tange à duração, os ciclos econômicos podem ser: ciclos pequenos de duração curta em média de 40 meses. Estes são, às vezes, chamados de ciclo de Kitchin; os ciclos médios cuja duração varia entre três a cinco anos são, às vezes, chamados de ciclo de Juglar; os ciclos de longa duração de seis a dez anos são chamados de ciclos de Schumpeter; e, por fim, os ciclos de “ondas longas”, com duração de quarenta a cinquenta anos, chamados de ciclos de ondas longas de Kondratieff. (1965 apud Carvalho, 2014:96)

Na prática, a dinâmica dos ciclos econômicos acontece de modo que os ciclos de menor duração possam ocorrer no interior dos ciclos maiores subsequentes. Logo, dentro dos ciclos de maior duração considerados ondas longas de Kondratieff podem ocorrer os ciclos de ondas médias de Juglar e, por último, os ciclos de ondas curtas de Kitchin podem ocorrer no interior dos ciclos de Juglar3.

Foi visto que para desenvolver a sua teoria da crise no capitalismo moderno, Keynes (1996) começou o seu entendimento pelas últimas etapas da expansão e pelo início repentino e violento da crise, isto é, no ponto de viragem – o auge – correspondente a máxima expansão (do boom) que despenca para o início da recessão. Na prática, “quando o boom de prosperidade da economia se aproxima do auge, então se desenvolve um acentuado contraste entre os diferentes empresários quanto ao grau de confiança e as expectativas dos rendimentos esperados de novos investimentos”, argumenta Carvalho (2014:106).

Neste caso, várias empresas, provavelmente a maioria, estarão lucrando nesse período mais do que em qualquer outra etapa anterior do ciclo de prosperidade da economia, tal como se vê na crise pandêmica atual pelo mundo e no Brasil. Por outro lado, muitas dessas mesmas empresas terão compromissos de pagamento de dívidas pendentes como seus credores bancários.

Além disso, uma minoria importante, pelo menos de algumas grandes empresas, passa a vislumbrar a perspectiva de uma queda de lucros. Desse modo, quando mais intensa se torna a dinâmica do ciclo de prosperidade, maior será o aumento desse grupo de empresas ameaçadas pela expectativa de uma queda na eficiência marginal do capital. Nesse contexto, é apenas uma questão de tempo para que essas condições reversas, de queda no lucro corrente e esperado, engendradas endogenamente pelo próprio ciclo de prosperidade, conduzam algum ajustamento radical.

Sobre isso, Carvalho afirma:

Esse declínio dos lucros das empresas resulta em consequências mais graves que a não realização dos dividendos esperados pelos acionistas. Isso é assim porque a expectativa de queda da eficiência marginal do capital dos novos investimentos levanta dúvidas quanto à segurança do pagamento das dívidas pendentes dos empresários que tiveram reduzidos os seus lucros correntes e receiam que o mesmo possa ocorrer – dada a incerteza e o arrefecimento da confiança otimista dos empresários sobre as expectativas dos rendimentos prospectivos no futuro –, com os lucros esperados. (2014:106, grifo nosso)

Mitchell (1984), importante estudioso da teoria dos ciclos econômicos, alerta para o fato de que o crédito econômico baseia-se essencialmente nos valores capitalizados dos lucros atuais e esperados, e, no auge da prosperidade, o crédito pendente é ajustado às grandes expectativas próprias dos períodos (de prosperidade) em que a atividade é intensa, os preços são altos e os homens de negócios (empresários) mostram-se otimistas.

Entretanto, a perda de confiança dos homens de negócios dada à incerteza e o rebaixamento das expectativas quanto aos rendimentos prospectivos dos novos investimentos no futuro acabam reduzindo a intensidade do otimismo até então mantido, como se vê na atual crise pandêmica. Nesse ambiente, o aumento da demanda por novos créditos bancários e o atraso do pagamento dos créditos pendentes acaba levantando dúvidas (risco de seleção adversa e risco moral no sentido do que apregoa o economista Joseph E. Stiglitz), quanto ao futuro dos negócios por parte dos banqueiros. Conforme salienta Carvalho:

Essa desconfiança dos emprestadores acaba se refletindo na elevação da taxa de juros e no aumento da margem de segurança (incluindo o risco do credor e do devedor no sentido de Keynes), o que acaba reduzindo os valores capitalizados dos lucros atuais e esperados de determinadas empresas, sobretudo àquelas com dívidas pendentes. Quando os próprios lucros das empresas começam a oscilar, as expectativas dos rendimentos prospectivos no futuro (e, portanto, da eficiência marginal esperada dos novos investimentos) declinam. Neste contexto, os credores mais cautelosos ficam com receio que a contração do preço de mercado das empresas que lhe devem dinheiro não permita uma margem de segurança adequada para a liquidação das dívidas vencidas. Como consequência, os bancos começam recusar a prorrogação de prazos de pagamentos de créditos pendentes de empréstimos antigos para as empresas que não podem evitar a queda nos seus lucros, e também passam a pressioná-las no sentido de resolverem o pagamento de suas dívidas pendentes. (2014:106-107)

Outro aspecto relevante diz respeito a curva da eficiência marginal do capital4, o que, segundo Keynes (1996), depende não apenas da abundância ou escassez existente de bens de capital duráveis e do custo atual da produção dos bens de capital duráveis, mas também das expectativas correntes relativas ao futuro dos rendimentos prospectivos dos bens de capital.

Com efeito, no caso dos bens de capital fixo, é natural e razoável que as expectativas de longo prazo sobre o futuro desempenhem um papel preponderante na determinação da escala dos gastos de investimentos industriais que os empresários julgam recomendáveis novos investimentos. Apesar disso, como orienta Keynes (1996), as bases de informação e conhecimento atuais para definir tais expectativas são muito precárias no sentido de que, como são baseadas em indícios variáveis e incertos quanto ao futuro, às expectativas de longo prazo estão sujeitas as variações repentinas e violentas manifestas na bolsa de valores.

Desta forma, para explicar o fenômeno da crise, Keynes enfatizou que a taxa de juros tende a subir sob o efeito da maior demanda por moeda, tanto para fins de transações econômicas quanto para fins especulativos no mercado financeiro. Segundo Carvalho:

Por certo, algumas vezes, a taxa de juros monetária pode se tornar um fator de agravamento da crise, se a taxa de juros sobe muito, e talvez, ocasionalmente, de provocar o desencadeamento dela. Para Keynes, entretanto, a explicação mais normal, e por vezes a essencial, da crise não é primordialmente uma elevação da taxa de juros monetária, mas um repentino colapso da esperada eficiência marginal do capital. (2014:100)

Assim, pela sucinta descrição da trajetória do boom de prosperidade até o auge, o próprio processo cumulativo da prosperidade traz, em última instância, as condições que levam a perda de confiança otimista, que se reflete numa queda vertiginosa da eficiência marginal do capital de novos investimentos, e o início da liquidação dos imensos créditos empilhados.

Assim sendo, para Carvalho (2014), pode-se afirmar que no curso dessa liquidação de débitos, o auge do boom de prosperidade é absolvido pela crise econômica e financeira. Como salienta Carvalho:

Para explicar a sua teoria da crise do capitalismo moderno dos países avançados, Keynes parte das últimas etapas da expansão, isto é, da fase de euforia de um crescimento econômico sustentado em um estado de confiança otimista quanto ao futuro promissor. Entretanto, na fase inicial da expansão, os processos cumulativos que intensificam a prosperidade, também ocasionam uma lenta acumulação de tensões de toda ordem, dentro do sistema econômico, tensões essas que, em última análise, destroem insidiosamente as condições em que a prosperidade se sustenta. Entre essas condições se encontra o aumento gradual dos custos das atividades econômicas. O declínio dos custos indiretos por unidade produzida cessa depois que as empresas fabricantes já receberam todas as encomendas dos investidores que podem atender com as máquinas e os equipamentos de capital que dispõem. (2011:101)

Portanto, as crises econômicas e financeiras estão associadas com a dinâmica dos ciclos econômicos. De tal modo, como aponta Kindleberger (2000), a dinâmica dos movimentos de contração e expansão, sobretudo às proximidades do auge do boom, devem ser descritas, em seus traços gerais, como complementos necessários à compreensão das crises que terminam transformadas em manias, pânicos e crashes.

Uma (re)leitura interpretativa sobre as crises nas economias capitalistas contemporâneas

Uma vez iniciado o processo de liquidação de dívidas, está se amplia rapidamente, em parte porque a maioria das empresas devedoras convocadas pelos credores para saldar seus compromissos vencidos passam a exercer igual pressão sobre seus próprios devedores; e em parte porque a cadeia de cobrança de dívidas vencidas conduz a certo desespero nos devedores que não podem cumprir seus compromissos levando a inadimplência daqueles bastante endividados, o que aumenta o risco dos credores não receberem pelo menos os seus juros.

Nesta fase de liquidação de dívidas, apesar de todos os esforços das partes interessadas para manter em segredo esses fatos, as notícias começam a se espalhar e outros credores são alertados criando uma onda de boataria de difícil controle. Enquanto ocorre esse reajuste financeiro nas carteiras dos agentes, o problema da realização de lucros sobre as transações correntes fica dependente de outro problema mais vital ainda: evitar a onda de insolvência das empresas devedoras e os prejuízos em cadeia dos credores.

Isso é assim porque os gestores das grandes empresas concentram suas energias na solução dos seus passivos pendentes e na busca de fontes de recursos alimentadoras dos seus fundos financeiros, ao invés de concentrarem todos os seus esforços para recuperar ou ampliar as vendas dos seus produtos. Como consequência disso, o volume de novas encomendas de bens capital cai rapidamente. Isto significa que os fatores que estavam turvando e rebaixando as expectativas dos rendimentos esperados no futuro e, portanto, da eficiência marginal esperada de novos investimentos em certos setores da atividade econômica são, a partir de agora, reforçados e ampliados por este estado de liquidação de dívidas.

Mesmo considerando que a grande maioria das empresas endividadas consiga atender seus compromissos de pagamento das suas dívidas, a natureza das atividades econômicas é transformada e o estado de confiança otimista começa a produzir sinais de arrefecimento. O cume da expansão do boom dá lugar à contração, ainda que, inicialmente, sem uma mudança abrupta e violenta.

No entanto, como chama atenção Kindleberger (2000), ainda assim não se verifica uma epidemia de pedidos de falências, nem corridas aos bancos do público, tampouco interrupções espasmódicas do curso normal das atividades econômicas. No extremo oposto dessas crises moderadas, contudo, encontram-se as crises agudas que degeneram em crashes e pânicos. Sobre isso, Carvalho et al. lembra que:

No Brasil, desde o início da crise de saúde-sanitária, provocada pelo novo Coronavírus, o Presidente Bolsonaro tem incutido no imaginário do povo brasileiro um trade off desnecessário, que envolveu de um lado a “saúde” da economia e do outro a saúde da população. Talvez por desconhecimento, esquece o Presidente que muitas das decisões econômicas adotadas por agentes do mercado, em especial o setor empresarial, investidores e, também, os próprios trabalhadores que são, também, consumidores, estão ocorrendo em um ambiente de incerteza, instabilidade político-institucional e, principalmente, de risco de conflagração. (2020:147)

Nesse contexto, o “crash” de uma economia pode estar relacionado ao colapso dos preços dos ativos; ou a falência de uma importante grande empresa; ou, ainda, de um grande banco, que arrastam outras empresas e bancos com que eles mantêm alguma relação econômica, financeira ou comercial. O “pânico”, sob outra perspectiva, é um medo súbito sem “causa aparente”, mas que pode desencadear uma corrida aos bancos e ativos menos líquidos para ativos mais líquidos. Para Kindleberger:

Uma crise financeira pode ser produzida por qualquer um desses fenômenos ou pelos dois que podem surgir em qualquer ordem, ela caracteriza-se pela elevação súbita da percepção de risco pelos bancos e outras instituições financeiras, com efeitos sobre a oferta de crédito, solvência dos bancos e liquidez da economia. (1989:26, tradução nossa)

Ou seja, uma crise financeira pode envolver um ou ambos, não importando em que ordem ela se manifesta. Porém, como pontua Carvalho:

(...), quando o processo de liquidação de dívidas atinge um elo fraco da cadeia de créditos fornecidos, e a falência de uma grande corporação ou de um grande banco espalha um alarme irracional causador das manias, isto é, da perda do senso de realidade ou de racionalidade que atinge a histeria ou insanidade em massa no público decorrente da “onda de boatos” de falências, que se propagam com uma força sem controle entre a comunidade empresarial, os bancos comerciais são repentinamente forçados a enfrentar uma dupla tensão: um aumento acentuado na demanda por novos empréstimos e na demanda por devolução de depósitos bancários. (2014:09)

Se, como ocorreu nas grandes crises financeiras dos EUA mais recentes, muitos empresários solventes não conseguissem novos empréstimos no sistema bancário nacional, nem mesmo a uma taxa de juros alta – caracterizando um racionamento do crédito e de emissões de novas ações pelo receio do risco de seleção adversa e do risco moral – e se os depositantes não conseguissem receber o seu dinheiro de volta integralmente, o alarme do crash financeiro se transformaria em pânico, como ressaltam Stiglitz e Greenwald (2004).

De fato, a restrição de pagamentos por parte dos bancos resulta na oferta de bonificações sobre a moeda corrente, no açambarcamento de dinheiro e no uso de vários substitutos legais do dinheiro, isto é, de ativos financeiros líquidos, além do surgimento de inovações financeiras.

A recusa dos bancos em expandir seus empréstimos aos tomadores, sobretudo àqueles mais necessitados no momento de crise, acaba forçando a adoção de uma política de contração do crédito e, por conseguinte, a subida da taxa de juros muito acima do seu padrão de normalidade, o que ocasiona suspensões forçadas de novos contratos, pedidos de falência de várias empresas e, também, problemas de ordem socioeconômica como falta de renda para consumo, inflação, desemprego e pobreza.

No entanto, se os bancos comerciais procurassem atender ambas as demandas (de fornecimento de empréstimos e de retiradas de depósitos), ou se os bancos centrais atuassem de pronto como emprestadores de última instância, então seria provável que a onda de boataria cessasse e a crise poderia ser abortada antes que fosse alcançado o estado de pânico.

Todavia, se nenhuma dessas ações não se concretizarem, então o governo é “convocado” à intervir com medidas de política fiscal, monetária e cambial para tentar estancar e impedir o agravamento da crise de ordem econômica e social, bem como a sua consequente trajetória de recessão caminhando para uma profunda depressão. Na visão de Carvalho:

(...), o agravamento da crise rumo à recessão é percebida através da queda da arrecadação tributária devido à redução do nível da atividade econômica, dispensa de trabalhadores porque os empregadores não conseguem arranjar dinheiro para a folha de pagamento dos salários ou porque receiam de que suas mercadorias não sejam compradas na quantidade e preços necessários ao atendimento dos seus custos e margem de lucros. Até os melhores ativos financeiros veem seus preços caírem e os mercados de bens e serviços ficam caóticos quanto pelas vendas e preços bem reduzidos de forma que tudo isso acaba contribuindo para uma violenta contração da economia. (2014:110)

Mas, por qual motivo o período de expansão acaba se esgotando? Na verdade, do lado do financiamento do investimento, à medida que está em curso um avanço da fase de expansão na direção do boom, não só aumentam os custos de mão-de-obra como resultado da escassez da força de trabalho, sobretudo da mão-de-obra qualificada e eficiente, como também o aumento da demanda por crédito, que acaba elevando a taxa de juros. Não obstante, quando a taxa de juros sobe em relação ao passado recente, o consumo aumenta em consonância com a propensão marginal a consumir, produzindo uma onda de investimentos secundários em capital circulante e um aumento eventual no nível de consumo.

Além do mais, em algumas das indústrias produtoras de bens de capital fixo, os fabricantes podem se encontrar em um mercado de vendedores (com a demanda excedendo a capacidade produtiva) e os mais otimistas entre eles – ou seja, aqueles que possuem forte animal spirit e que continuam muito confiantes que a demanda durará mais tempo – passam a dar ordens para aquisição de equipamentos de capital que ampliem as suas capacidades instaladas. Keynes (1996) chama de animal spirit uma espécie de impulso espontâneo – a tendência natural de conduta do indivíduo, empresário, investidor, capitalista, de querer agir, independente dos riscos e incertezas daquela ação. Para Keynes:

(...) Provavelmente a maior parte das nossas decisões de fazer algo positivo, cujo efeito final necessita de certo prazo para se produzir, deva ser considerada a manifestação do nosso entusiasmo — como um instinto espontâneo de agir, em vez de não fazer nada —, e não o resultado de uma média ponderada. (1996:169-170, grifo nosso)

Na fase última do boom, enquanto a expansão continua com certa estabilidade sustentada, a maioria dos novos investimentos oferece um rendimento corrente que não é insatisfatório para os empresários. A partir desse momento, como diria Keynes:

(...), a desilusão chega porque surgem dúvidas quanto à confiança dos empresários sobre as expectativas relativas ao rendimento esperado, talvez porque o rendimento corrente dê sinais de baixa na medida em que os estoques de bens duráveis (de consumo e/ou de investimento) produzidos recentemente aumentem regularmente. (1996:296)

Se, além disso, a crença racional do empresário-investidor for de que os custos de produção correntes são mais elevados do que poderão vir a ser no futuro, está será mais uma razão à baixa da eficiência marginal do capital corrente. Uma vez surgida à dúvida sobre o que poderá ocorrer no futuro, essa suspeita propaga-se rapidamente como um vírus de elevado poder de contaminação em massa.

Além do problema da capacidade ociosa, devido à continuidade dos investimentos, pode-se encontrar um limite financeiro na oferta dos fundos financeiros? Sim! uma elevação na renda nacional poderá causar uma ampliação da demanda por dinheiro “empurrando” para cima a taxa de juros. Uma drenagem muita rápida “sugará” os depósitos financeiros, de maneira que, depois de certo tempo não muito longo, os fundos financeiros para os tomadores de empréstimos não serão suficientes e, consequentemente, irão cessar de efetivar os novos projetos de investimentos.

Cabe destacar que uma explicação como está é plausível quando se discute o auge numa parte do comércio internacional. De fato, um auge relativo como esse ocasiona dificuldades na balança de pagamentos de uma nação que o experimente, e devem ser corrigidos através da restrição do crédito de acordo com política monetária tradicional das taxas de juros bancárias. Porém, quando o auge se difunde igualmente para todos as nações, tal como tem acontecido com a crise da Covid-19, de forma que se pode tratar a economia mundial como uma economia fechada, é difícil imaginar o porquê das instituições financeiras terem que conter o boom de prosperidade devido à possibilidade de uma bolha financeira estourar, como defende Robinson (1959).

O papel da eficiência marginal do capital e das expectativas na dinâmica dos ciclos econômicos

As causas das flutuações da atividade econômica podem ser de inúmeras razões e conter efeitos multiplicadores negativos para a sociedade. No entanto, as explicações para os diversos colapsos estruturais da economia, crises e recessões, transpassam pelas escolas econômicas que atribuem diversos motivos, natureza, origens e efeitos.

Em meio aos distintos economistas teóricos que buscaram entender e explicar as causas e características das crises, o britânico John Maynard Keynes foi, sem sombra de dúvida, um dos autores dentre os mais influentes que contribuíram para a ciência econômica, motivaram governos, o meio acadêmico e a opinião daqueles que apoiam seus sistemas de ideias nas literaturas da filosofia política e da ciência social aplicada.

Isso é assim porque a interpretação dos ciclos econômicos é extremamente complexa. Segundo Keynes: “O desenvolvimento desta tese exigiria antes um livro que um capítulo, além de necessitar uma análise minuciosa dos fatos, (...)” (1996:293). Para Keynes:

(...) o caráter essencial do ciclo econômico e, sobretudo, a regularidade de ocorrência e duração, que justificam a denominação ciclo, se devem principalmente ao modo como flutua a eficiência marginal do capital. Na minha maneira de ver, o ciclo econômico deve, de preferência, ser considerado o resultado de uma variação cíclica na eficiência marginal do capital, embora complicado e frequentemente agravado por modificações que acompanham outras variáveis importantes do sistema econômico no curto prazo. (1996:272)

Ou seja, dentre diversas causas que afetam o sistema econômico, John Maynard Keynes procurou destacar as transformações e oscilações na eficiência marginal do capital que representam, basicamente, a sua instabilidade ou o modo de como esta variável flutua. Sobre o papel das expectativas em meio à crise, Keynes (1996) procurou entender a função da curva de eficiência marginal do capital que depende de uma série de outros fatores, principalmente de aspectos que envolvem – direta e indiretamente – expectativas futuras. Keynes faz a seguinte observação:

Vimos antes que a eficiência marginal do capital depende não apenas da abundância ou da escassez existente de bens de capital e do custo corrente da produção dos bens de capital, mas também das expectativas correntes relativas ao futuro rendimento dos bens de capital. Consequentemente, no caso dos bens duráveis, é natural e razoável que as expectativas do futuro desempenhem um papel preponderante na determinação da escala em que se julguem recomendáveis novos investimentos. Como vimos, porém, as bases para tais expectativas são muito precárias. Fundadas em indícios variáveis e incertos, estão sujeitas a variações repentinas e violentas. Ora, para explicar a “crise”, temos enfatizado que a taxa de juros tende a subir sob o efeito de maior demanda de moeda, tanto para fins de transações como para fins especulativos. Algumas vezes este fator pode, certamente, representar um papel de agravamento e talvez, ocasionalmente, de desencadeamento. Creio que a explicação mais normal, e por vezes a essencial, da crise não é primordialmente uma alta taxa de juros, mas um repentino colapso da eficiência marginal do capital. (1996:294-295, grifo nosso)

Keynes continua:

As últimas etapas da expansão são caracterizadas por expectativas otimistas relativas ao rendimento futuro dos bens de capital suficientemente fortes para compensar a abundância crescente desses bens, a alta de seus custos de produção e, provavelmente, também, a alta taxa de juros. É próprio da natureza dos mercados financeiros organizados, sob a influência de compradores em sua maioria ignorantes do que compram e de especuladores mais interessados nas previsões da próxima mudança de opinião do mercado do que numa estimativa racional do futuro rendimento dos bens de capital, que, quando a decepção advém a um desses mercados otimistas em demasia, e super abastecidos, as cotações desçam em movimento súbito e mesmo catastrófico. Além disso, o pessimismo e a incerteza a respeito do futuro que acompanham um colapso da eficiência marginal do capital suscitam, naturalmente, um forte aumento da preferência pela liquidez e, consequentemente, uma elevação da taxa de juros. Nestas condições, o fato de a queda da eficiência marginal do capital ser frequentemente acompanhada por uma elevação da taxa de juros pode agravar seriamente o declínio do investimento. O essencial, porém, de tal estado de coisas reside, não obstante, na queda da eficiência marginal do capital, especialmente no caso das categorias de capital que, no curso da fase anterior, mais contribuíram para os novos investimentos. A preferência pela liquidez, exceto nas suas manifestações associadas ao aumento da atividade comercial e da especulação, só começa a aumentar após o desmoronamento da eficiência marginal do capital. (1996:295)

Fica claro, pelo exposto, que a não possibilidade de sustentar níveis de expectativas elevadas decorre, como visto em Keynes, por não haver conhecimentos suficientes e informações necessárias para estabelecer um certo estado de confiança no processo de tomada de decisão. Estas questões remetem, também, a não possibilidade de atribuir confiabilidade nas perspectivas de mercado e cenário político-econômico em ambientes repletos de incertezas em relação ao futuro.

Nas palavras de Keynes (1996:295, grifo nosso):

É isto que, de fato, torna a depressão tão intratável. Posteriormente, um declínio de taxa de juros será de grande auxílio para a recuperação e, provavelmente, uma condição necessária da mesma, mas, de momento, o colapso da eficiência marginal do capital pode ser tão completo que nenhuma redução possível de taxa de juros baste para o contrabalançar. Se a redução da taxa de juros constituísse por si mesma um remédio efetivo, a recuperação poderia ser conseguida num lapso de tempo relativamente curto, e por meios mais ou menos diretamente sob controle da autoridade monetária. Isso, porém, não costuma acontecer, não sendo fácil reanimar a eficiência marginal do capital, tal como a determina a psicologia caprichosa e indisciplinada do mundo dos negócios. É a volta da confiança, para empregar a linguagem comum, que se afigura tão difícil de controlar numa economia de capitalismo individualista. Este é o aspecto da depressão que os banqueiros e os homens de negócios insistem, com razão, em enfatizar, e ao qual os economistas crentes na eficácia de um remédio “puramente monetário” não dispensaram a atenção que merece. Isto me faz alcançar o ponto a que quero chegar. A explicação do elemento tempo no ciclo econômico, o fato de que em geral tem de decorrer um lapso determinado de tempo antes que se inicie a recuperação, deve ser procurada nas influências que governam a recuperação da eficiência marginal do capital. Há razões dadas, primeiro, pela extensão da vida útil dos bens duráveis em relação ao ritmo normal de crescimento em certa época e, segundo, pelas despesas correntes de conservação dos estoques excedentes, que explicam por que a duração do movimento descendente deve ter uma magnitude que não é fortuita, que não flutua entre, digamos, um ano agora, e dez anos a próxima vez, mas antes evidencia determinada regularidade situada entre, digamos, três e cinco anos. (1996:295, grifo nosso)

Cabe destacar que Keynes utilizou outros elementos para melhor exemplificar a dinâmica cíclica de uma economia capitalista, tais como: estado de preferência pela liquidez e flutuações da propensão a consumir. Keynes, citando passagem da sua Teoria Geral, afirma:

Qualquer flutuação no investimento, não compensada por uma variação correspondente na propensão a consumir, resulta, necessariamente, numa flutuação no emprego. Portanto, dado que o fluxo de investimento está sujeito a influências bastante complexas, é muito improvável que todas as flutuações, tanto as do próprio investimento como as da eficiência marginal do capital, sejam de caráter cíclico. (...) Todavia, no caso dos ciclos econômicos típicos da economia industrial do século XIX, considero que haja certas razões definidas para que as flutuações na eficiência marginal do capital tenham tido características cíclicas. Essas razões não são, em si mesmas, novas, mesmo como explicações dos ciclos econômicos. (...). (1996:294)

Outro aspecto assaz importante, que pode passar desapercebido em um primeiro momento, é que um declínio substancial da eficiência marginal do capital tende, também, a afetar negativamente a propensão marginal a consumir, já que tal situação provoca uma baixa considerável no valor do mercado de títulos. Essa baixa nos preços dos títulos no mercado financeiro exerce uma influência depressiva sobre a classe dos rentistas que acompanham de perto a variação dos preços dos seus títulos (securities) resultantes dos investimentos na bolsa de valores, em particular quando aplicam dinheiro emprestado de terceiros na compra de outros títulos e ações.

Assim, como discute Carvalho (2014:123) “(...) a propensão marginal a consumir dos rentistas talvez dependa mais das flutuações de alta e de baixa do valor de seus investimentos no mercado financeiro do que do estado do fluxo dos seus rendimentos na forma de dividendos.”

Portanto, uma vez iniciada a crise, se nada for feito principalmente por parte do Estado, a tendência é de que a mesma se propague aprofundando uma recessão que rapidamente poderá alcançar o “fundo do poço”, isto é, numa grande depressão. Isso ocorre porque o fenômeno da crise, em um sentido mais amplo, tem dois momentos: 1º) O da sua emergência; e 2º) O do seu desenvolvimento envolvendo duas fases bem típicas: a recessão e a depressão.

O ciclo recessivo, no que lhe concerne, cobre um tempo relativamente curto, dependendo da ação do governo, da política bancária e da recuperação da perda de confiança da maioria dos empresários. Neste sentido, por mera facilidade expositiva, é conveniente, às vezes, chamar todo o tempo de duração do ciclo ascendente como ciclo da prosperidade, e o ciclo descendente como ciclo depressivo. Como ensina Carvalho:

A recessão marca o ponto de flexão (reversão) durante o qual as forças endógenas que produzem a contração sobrepõem-se, finalmente, às da fase de expansão. Seus sinais visíveis são a liquidação de dívidas no mercado de valores, tensão no sistema bancário e alguma liquidação de empréstimos e o início de queda dos preços dos bens e serviços. Há uma queda nas encomendas de bem de capital aos fabricantes e nos contratos de construção de moradias, bem como o abandono de numerosos novos projetos de investimento. Os primeiros sinais da recessão são a redução no ritmo da produção e das encomendas de bens de investimentos à indústria produtora de bens de capital. (2014:112-113)

Do ponto de vista econômica, fica evidente que a queda dos preços na bolsa de valores representa o sinal dramático do advento da recessão. Essa baixa, sem dúvida, deve-se, em grande parcela, à verificação por parte dos investidores financeiros de que os lucros correntes e esperados não podem mais se manter e do reflexo dos especuladores que perdem a confiança no futuro e deixam de apostar contra o mercado.

Além disso, parte do desespero de alguns é devido as vendas daqueles que desejam fortemente “safar-se” o quanto antes da situação de crise do mercado financeiro; e, parte, também da pressão dos bancos que emprestaram dinheiro e foram usados na compra de securities, especialmente dos corretores de fundos financeiros. No fim, os capitais emprestados no mercado de valores à vista também passam a ser exigidos pelos credores quando a pressão dos negócios sobre os fundos aumenta intensamente.

Nestas circunstâncias, a queda nos mercados de valores não só antecipa a baixa dos preços e dos lucros, mas também ajuda a reproduzi-la. A característica de um período de contração, no qual se apresenta a recessão, é a redução geral do nível da atividade econômica, pois há uma queda na produção de bens e serviços e no nível de emprego. Na prática, essa queda é geral em toda atividade econômica, porém ela ocorre de modo não uniforme.

Isto significa que alguns setores, como o comércio varejista, são relativamente pouco afetados no começo. Enquanto isso, as indústrias de transformação, mineração, construção civil e de transporte são àquelas mais atingidas, em particular a indústria produtora de capital instrumental (maquinaria e equipamentos de capital), tal como aconteceu na pandemia de Covid-19 no Brasil.

Com o mercado de valores mais fraco, as grandes empresas de capital aberto que haviam pensado em crescimento das suas unidades industriais mediante o financiamento de investimento de ampliação, através da venda de novas emissões de ações ou de debêntures, se retraem e conservam esses papéis em suas carteiras e, portanto, fora do mercado financeiro.

Essa fragilidade financeira reduz o crédito e faz com que os bancos comerciais estejam pouco dispostos a aumentar, ou mesmo manter, o volume de empréstimos que vinham concedendo. Na realidade, a onda cumulativa de liquidação de negócios e dívidas, que toma conta do mercado monetário e financeiro, é o prelúdio de uma recessão mais ou menos prolongada que pode assumir a forma de um crash ou pânico.

Se o início de uma recessão for alcançado por uma transição ordenada, embora não menos nociva, se poderá ter uma crise na forma típica de um crash. Contudo, se o começo da recessão for acompanhado por uma excitação financeira explosiva, então uma crise de pânico poderá ocorrer dependendo, em parte, dos surtos das crises pretéritas, em parte, dos incidentes e acidentes na forma de choques externos no momento da crise, sobretudo na maneira como afetam o estado de confiança dos agentes, e em parte da forma como reage a organização do sistema financeiro formado pelo Banco Central e o sistema bancário, como aponta Estey (1965).

Um pânico inesperado, violento e sem controle pode desaguar numa grave depressão. O final do pânico é, geralmente, seguido da reabertura de inúmeras empresas que foram forçadas a suspenderam a entrega de sua produção encomendada durante os meses de pressão mais intensa. Essa reativação da produção pode estar baseada no acabamento das encomendas já recebidas dos investidores demandantes, mas não totalmente executadas, durante o ciclo de expansão precedente, ou no esforço de vendas para comercializar os grandes estoques acumulados de capital líquido, que já se encontram em seus depósitos junto com as mercadorias já encomendadas e ainda não acabadas.

Mais grave ainda é a contração da demanda dos investimentos por habitações residenciais à indústria da construção civil. Isso é assim não só pelo efeito devastador que provoca na própria indústria de construção civil, mas também pelos efeitos deletérios causados em toda a extensão da cadeia produtiva que compõe o denominado complexo industrial da construção civil.

Na prática, diante do estado de depressão, são poucos os indivíduos ou empresas que estão dispostos investir seu próprio dinheiro (ou dinheiro do crédito bancário com taxas de juros elevadas e dificuldades burocráticas de toda ordem) em novos empreendimentos habitacionais, pelo menos enquanto perdurar o estado do ciclo depressivo e o nível de preços estiver declinando.

A contração do nível da atividade macroeconômica, como resultado de todas as retrações da demanda de várias mercadorias, é de natureza cumulativa, visto que qualquer redução do emprego causa uma redução na demanda por bens de consumo em geral, e toda queda na demanda por bens de consumo (bens de consumo duráveis e bens de consumo não-duráveis) comprime a demanda de outras atividades econômicas e comerciais, o que acaba afetando e desencorajando o animal spirit dos investidores por novas encomendas de bens de investimento (instalações industriais, máquinas e equipamentos de capital).

Tal situação produz um impacto social e econômico muito grande através do aumento da taxa de desemprego, com novas demissões de trabalhadores na indústria produtora de bens de investimento, reduzindo a demanda por bens de consumo. Verifica-se, deste modo, que a variável chave que melhor explica os ciclos econômicos é o investimento, pois este contribui para a recuperação econômica na fase de depressão quando se torna escasso; e para a recessão na fase de expansão quando se torna abundante. Para Kalecki:

(...). A ampliação do equipamento de capital, isto é, o aumento da riqueza nacional, contém a semente de uma depressão no curso da qual a riqueza adicional se comprova ser apenas potencial. Porque uma parte considerável do capital permanece ociosa e somente torna-se útil na próxima recuperação. (1977, [1935]:26-27)

Nesta situação, tem-se um dos mais notáveis paradoxos da economia capitalista em tempos de crise. Entretanto, se isso é assim, então o que deverá ser efeito para se impedir uma recessão ou facilitar uma recuperação econômica de forma mais rápida possível? De acordo com o pensamento clássico e liberal, em um regime de laissez-faire, deve-se esperar que o mercado restabeleça o equilíbrio.

Por outro lado, para o já citado John Maynard Keynes, Michal Kalecki, entre outros, é possível iniciar um processo de recuperação econômica fazendo uso dos múltiplos instrumentos de política econômica que o Estado dispõe, como meio de mitigar a crise e prestar apoio as estratificações sociais mais necessitadas do país, como o Brasil fez por meio do “auxílio emergencial”. Conforme Carvalho et al.:

No Brasil da crise atual do novo Coronavírus, desde abril de 2020 o Decreto 10.316 alterou a guinada de austeridade que o país vinha seguindo, e regulamentou o uso e distribuição do “auxílio emergencial”. O auxílio emergencial consiste em um benefício mensal de R$ 600,00 para as famílias de baixa renda cadastradas em programas sociais do governo, trabalhadores informais e intermitentes, autônomos, microempreendedores individuais e desempregados. (2020:152, grifo nosso)

Se vê com isso que o Estado brasileiro, por meio do Governo Federal, institucionalizou esse mecanismo como forma de movimentar a economia e, por conseguinte, criar uma espécie de “colchão de proteção social em virtude da grave crise social que o Brasil enfrenta.

Principais implicações socioeconômicas da crise pandêmica de Covid-19 no Brasil

A pandemia causada pela Covid-19 acabou gerando um choque macroeconômico muito grande no Brasil, nos Estados Unidos e em quase todos os lugares do mundo. Essa grande crise afetou o lado da oferta e da demanda da economia dos países. Do lado da oferta, a produção de bens e serviços foi temporariamente interrompida e as cadeias de produção globais foram severamente rompidas; pelo lado da demanda, essa crise colocou uma pressão negativa tanto sobre o consumo quanto sobre os investimentos.

O choque causado pela pandemia do novo Coronavírus de um certo modo coincidiu com o apogeu de uma tendência secular de divergência crescente entre a evolução dos preços bens e serviços e os preços das ações e, deste modo, uma crescente incapacidade dos preços de produção para validar os preços das ações. O aumento frágil dos choques no equilíbrio das empresas tornou a economia particularmente vulnerável até mesmo a pequenas quedas nas vendas de mercadorias e queda dos preços das ações.

Os efeitos da crise do Novo Coronavírus incidiram, desta forma, através de duas vias: a macroeconômica e a de saúde causada pela pandemia do novo Coronavírus. Entretanto, como se trata de uma crise econômica estrutural combinada com uma grave crise da saúde pública, não é provável que o estímulo em gastos de investimento seja realmente capaz de evitar uma grave retração no futuro, até porque um aspecto da fragilidade financeira está relacionado ao alto endividamento das famílias brasileira.

No passado, segundo dados do IPEADATA, os indicadores macroeconômicos apontaram uma tendência de queda da taxa anual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a partir de 2013, igual a 3,20% e uma taxa anual de PIB igual a menos 4,06% em 2020. Esses mesmos indicadores mostraram que taxa anual de desemprego começou a subir, a partir do ano de 2013, para 7,15% e alcançou 14,7% em 2020; a taxa de inflação anual de 10,7%, no ano de 2015 caiu para 2,95% em 2017, depois voltou a subir de 3,75% em 2018 até alcançar a magnitude de 4,52% em 2020. Ademais, as previsões para o final de 2021 foram, em sua maioria, de uma taxa de crescimento do PIB igual a 4,8%; taxa de crescimento do desemprego igual a 14,7%; e taxa de inflação, medida pelo IPCA-5, igual a 4,83% como são apresentados na Tabela 1 e no Gráfico 2, respectivamente.

Tabela 1. Evolução das taxas dos indicadores macroeconômicos do Brasil: 2000-2021

Ano

Taxas Anuais de

Crescimento do PIB (%)

Taxa Anuais do

Desemprego (%)

Taxas Anuais da

Inflação (%)

2000

4,39

10,25

5,97

2001

1,39

10,06

7,67

2002

3,05

9,88

12,53

2003

1,14

10,48

9,30

2004

5,76

9,73

7,60

2005

3,20

10,21

5,69

2006

3,96

9,23

3,14

2007

6,07

8,93

4,46

2008

5,09

7,79

5,90

2009

-0,13

9,05

4,31

2010

7,53

8,17

5,91

2011

3,97

7,29

6,50

2012

1,92

6,73

5,84

2013

3,20

7,15

5,91

2014

0,50

7,54

6,41

2015

-3,55

9,63

10,67

2016

-3,28

12,56

6,29

2017

1,32

12,72

2,95

2018

1,78

12,32

3,75

2019

1,41

11,92

4,31

2020

-4,06

13,50

4,52

2021(*)

4,8%)

14,70

4,83

Fonte: IPEADATA. (*) Previsão.

Gráfico 2. Taxas anuais de crescimento do PIB, do Desemprego e da Inflação: 2000-2020

Fonte: IPEADATA.

Para além das questões econômicos, os milhares de óbitos causados pela crise pandêmica da Covid-19 expuseram as péssimas condições de vida, de deterioração das relações socioculturais e a organização deficitária dos serviços de assistência à saúde no Brasil. Carvalho et al. desferem contundente crítica quando lembram que:

(...) a ausência de capital social básico e infraestrutura socioeconômica do passado, agora cobra o seu preço ao revelar velhas anomalias no presente como, por exemplo, a inexis-tência de estrutura médica nas capitais e interiores do país; ou hospitais públicos e particulares quase entrando em colapso por excesso de pacientes, falta de leitos e medicação, entre outros problemas. Como visto, a falta de percepção democrática por parte do staff do Governo Federal, em particular do próprio Presidente Bolsonaro, reflete um negacionismo desnecessário com implicações negativas até hoje. Na realidade, o problema da busca por uma explicação plausível para a crise atual é muito mais importante do que aquela associada tão somente à crítica dos erros cometidos pelos policy makers, que esqueceram-se das lições do passado, os quais defendiam a ideologia de eficiência dos mercados e do Estado mínimo. (2020:162)

Percebe-se, como indicam Carvalho et al., que a crise atual guarda sérias e graves implicações soocioeconômicas:

De fato, essa pandemia vai muito além nos seus efeitos e consequências por caracterizar-se como sendo uma crise de cunho social, que não escolhe classe, mas reverbera com muito mais intensidade na camada mais humilde, pobre e vulnerável de um Brasil historicamente desigual. Ao leitor despercebido, é preciso incluir nesta lista de pessoas desfavorecidas outros grupos que estão sendo duramente castigados pela Covid-19 no Brasil, tais como: indígenas, povos da floresta, comunidades ribeirinhas, quilombolas, entre outros que o notoriamente excluídos, seja no meio urbano ou rural, por questões de gênero e raça. (2020:162)

A Tabela 2 revela a distribuição por “número de casos acumulados”, “incidência de casos” e “óbitos” em decorrência da Covid-19 nas grandes regiões e unidades federativas do Brasil no ano de 2020.

Tabela 2. Número de Casos Acumulados, Incidência de casos e óbitos por Covid-19, segundo as Grandes Regiões e as Unidades Federativas do Brasil: ano 2020

Discriminação

Casos

Óbitos

Casos

Acumulados

Incidência de casos/mil hab.

Total

Óbitos/

100 mil hab.

Brasil

7700578,00

3664

195411

93

Norte

860671

4670

18061

98

Acre

41689

4727

796

90

Amapá

68361

8083

926

109

Amazonas

201574

4684

5295

128

Pará

293802

3415

7199

84

Rondônia

95999

5402

1822

103

Roraima

68710

11343

787

130

Tocantins

90536

5756

1236

79

Nordeste

1901857

3332

47825

84

Alagoas

105091

3149

2496

75

Bahia

494684

3326

9159

62

Ceará

335992

3679

9993

109

Maranhão

200959

2840

4506

64

Paraíba

167062

4158

3680

92

Pernambuco

222993

2333

9666

101

Piauí

143179

2840

4506

64

Rio Grande do Norte

118353

3375

2993

85

Sergipe

113544

4939

2492

108

Sudeste

2697725

3053

89463

101

Espirito Santo

249260

6203

5087

127

Minas Gerais

546884

2583

12001

57

Rio de Janeiro

435390

2522

25600

148

São Paulo

1466191

3193

46775

102

Sul

1634682

4553

22180

74

Paraná

418323

3659

7973

70

Rio Grande do Sul

451912

3972

8917

78

Santa Catarina

494447

6901

5270

74

Centro-Oeste

875643

5373

22180

74

Mato Grosso do Sul

134750

4849

2347

84

Mato Grosso

179704

5157

4467

128

Goiás

309112

4404

6805

97

Distrito Federal

252077

8360

4263

141

Fonte: BRASIL (2020a, 2020b).

Isso acontece porque o nível de desigualdade de renda, o desemprego e a inflação, acabaram contribuindo para a propagação da Covid-19 entre todas as pessoas que moram no Brasil, independente da estratificação social, sexo, raça ou etnia. Na realidade, essa crise demonstrou que as estratificações sociais pobres (e extremamente pobres) do Brasil estão mais suscetíveis às doenças infectocontagiosas e, destarte, mais propensas a desenvolver infecções graves causadas pelo Covid-19, que podem levar a hospitalização e ao óbito.

Sobre isso, Hordge-Freeman e Chagas oferecem a seguinte contribuição:

O Brasil é o maior e mais populoso país da América do Sul, com uma população de aproximadamente 210 milhões. A população negra constitui a maioria dos habitantes do país, representando 51,1% da população total. Por outro lado, os Estados Unidos possuem uma população total de 328,2 milhões, sendo que a parcela negra representa apenas 12,1%. Uma comparação entre esses países pode, inicialmente, parecer incomum, especial- mente porque historicamente esses países foram retratados como modelos contrastantes de raça e racismo. Por exemplo, um sistema de classificação racial e as leis de Jim Crow nos EUA, muitas vezes, foram justapostas ao contexto de mistura de raças, e as manifestações veladas e sofisticadas do racismo no Brasil. No entanto, o impacto contínuo da pandemia de COVID-19 no Brasil e nos EUA sugere que, embora existam diferenças, as comunidades negras em ambos países apresentam condições sociais semelhantes, tornando-as muito mais vulneráveis ao vírus do que suas congêneres nacionais. (2020:01 apud Carvalho et al., 2020:163)

Cabe ressaltar que as estratificações sociais mais pobres e vulneráveis também possuem maior probabilidade de sofrer perdas de emprego e significativo declínio em sua condição de bem-estar. Na prática, o que se vê é que a crise pandêmica no Brasil acabou afetando a condução das políticas socioeconômicas e de saúde-sanitária destinadas ao combate da pandemia, muito disso em decorrência do comportamento e da retórica negacionista do atual governo.

Essas, por sua vez, deveriam estar atentas e sensíveis às desigualdades sociais, mas acabaram por exacerbar preconceitos e tendências históricas para as diferenças sociais, de gênero e raça e, desta forma, o aumento do tempo de duração da dupla crise instaurada no país: 1º) A crise causada pela queda no crescimento do produto (PIB), que provocou aumento do desemprego e incremento considerável da taxa de inflação; e 2º) A expansão da transmissão de Covid-19 em todos os estados e municípios pelo vasto território brasileiro.

Além disso, a crise da Covid-19 impôs custos enormes à sociedade brasileira, que vão desde o alto e crescente número de óbitos até a perda de emprego. A “conta”, que já começa a ser paga, parece alta e com grandes custos sociais. No entanto, em vez de ser compartilhada igualitariamente, essa conta está sendo paga de uma forma altamente desproporcional, como de praxe, pelos estratos sociais mais pobres e vulneráveis da sociedade brasileira.

O preço da desigualdade social na saúde é bem conhecido para os brasileira. Uma relação clara tem sido demonstrada repetidamente entre determinantes sociais - tais como renda, educação, ocupação, classe social, sexo, raça e etnia – através da incidência e severidade de muitas doenças infecciosas no Brasil. Esta associação é muito válida para doenças respiratórias infecciosas como Influenza, SAR, e, é claro, a Covid-19.

As consequências deste desequilíbrio são particularmente catastróficas quando há uma carga de doenças com forte associação em relação aos determinantes sociais e fatores de risco clínicos para doenças respiratórias como as doenças crônicas. De outro ponto de vista, a magnitude da pobreza e da extrema pobreza aumentaram também os riscos dos indivíduos contraírem tais doenças, em especial em um país que permanece com essa mácula histórica, como é o caso do Brasil. Nas palavras de Carvalho et al.:

(...) a pobreza não está associada exclusivamente a privação de um bem pela ausência de oportunidade de emprego para obtenção de renda, mas também à incapacidade da obtenção das necessidades básicas por direito de cidadania numa democracia. Por isso, as capacidades adquiridas pelos cidadãos não se referem apenas ao acesso pela via do mercado a bens materiais ou imateriais, mas também a sua inclusão social, política e comunitária no território onde residem as pessoas pobres. (2019:06)

A Tabela 3 mostra a evolução desse grave problema social no Brasil: o da pobreza e da pobreza extrema no Brasil.

Tabela 3. Evolução da Pobreza e da Extrema Pobreza no Brasil: 2000-2021

Ano

Proporção da

Pobreza (%)

Proporção da

Extrema Pobreza (%)

Número de Pessoas Pobres

Número de Pessoas

Extremamente Pobres

2000

35,2

15,5

575732

243378

2001

35,1

15,2

589632

255208

2002

34,4

14,0

587012

238623

2003

35,8

15,2

618141

262427

2004

33,7

13,2

601323

235771

2005

30,8

11,5

560324

208892

2006

26,8

9,5

490049

173153

2007

25,4

9,0

467062

165040

2008

22,6

7,6

419284

140329

2009

21,4

7,3

400660

135976

2010

19,9

6,8

372106

126852

2011

12,4

6,3

343552

117726

2012

11,4

5,3

303508

110812

2013

10,5

5,5

286985

104525

2014

9,2

4,2

258885

81912

2015

10,8

6,3

236578

53458

2016

11,8

5,8

252942

53549

2017

11,2

5,8

267542

44643

2018

11,2

6,5

225683

39794

2019

10,4

10,9

136893

29988

2020

14,6

12,4

267435

17845

2021(*)

12,8

9,1

278253

19313

Fonte: IBGE. (*) Magnitudes acumuladas até o mês de setembro de 2021.

Desta forma, a questão dos gastos sociais para a população brasileira que vive em estado de pobreza e vulnerabilidade social deve assumir um papel central na formulação, monitoramento e execução de políticas e programas sociais, principalmente em tempos de pandemia, pois precisam urgentemente de um “colchão” de proteção social, o que, a priori, só pode ser concedido pelo Estado.

No ano de 2018, segundo dados do IBGE (2020), a proporção da pobreza no Brasil era de 11,2%, o equivalente a 225.686 pessoas em estado de pobreza; já a proporção de brasileiros vivendo na extrema pobreza alcançou o patamar de 6,5%, o equivalente a 39.794 pessoas extremamente pobres. Os dados da Tabela 3 revelam, ainda, que desde o ano de 2019, um nível significativo da população brasileira adentrou nas estratificações sociais mais carentes, inclusive uma parte da classe média

Em 2020, a taxa de pobreza foi de 14,6%, o correspondente a 267.435 pessoas pobres no Brasil e 12,4% pessoas extremamente pobres, o equivalente a 17.845 pessoas. Em setembro de 2021, a taxa de pobreza no Brasil foi de 12,8% e a taxa de extrema pobreza de 9,1¨%, como constata a Tabela 3.

O aspecto alarmante da desigualdade de renda pessoal é quantificado através da medida do bem-estar. O bem-estar é composto pela renda das famílias, que é derivada do trabalho remunerado (renda monetária básica); dos benefícios sociais totais dados às famílias, menos as contribuições fiscais de governos; do valor dos serviços de aluguel de casas alugadas pelos seus proprietários; de uma anuidade baseada na riqueza líquida de natureza não residencial; da expectativa de vida das pessoas e das taxas de retorno dos ativos financeiros líquidos (renda derivada da riqueza).

Há ainda um valor monetário que é atribuído aos gastos das famílias com as atividades produtivas realizadas dentro da casa (atividades domésticas) e que não são negociadas no mercado. Tais atividades não são contabilizadas no PIB, mas contribuem para o bem-estar dos indivíduos. Essas atividades domésticas são: o cuidado infantil, a cozinha, a limpeza e o cuidado dos idosos.

Além disso, há razões suficiente para acreditar que os efeitos à saúde pelo fato de serem socioeconomicamente desfavorecidos vão muito além dos fatores de risco clinicamente reconhecidos. A população brasileira, em sua maioria sem plano de saúde, tem menor probabilidade de procurar um tratamento inicial, restando recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) como única alternativa.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é reconhecido como uma das políticas públicas mais inclusivas praticadas no Brasil. O sentido último dos sistemas universais de saúde, como o SUS, deveria ser responder às necessidades de saúde da população, não apenas por meio de uma rede integrada de serviços estruturados dentro do setor, mas sobretudo por políticas públicas intersetoriais, subordinando os demais interesses do mercado, dos provedores, da indústria a essas necessidades, sustenta Bousquat et al. (2021).

O Brasil, na verdade, possui um sistema de saúde pública que se reinventa inteligentemente em cenários adversos, particularmente em conexão, capilaridade e integração de serviços e ações de saúde contra o novo Coronavírus e outras doenças de natureza pandêmica. No entanto, a crise pandêmica acabou congestionando os corredores dos postos de saúde em consequência do número insuficiente de enfermeiros, médicos e especialistas – como infectologistas e pneumologistas – disponíveis nas quantidades necessárias para atender os(as) brasileiros(as) contaminados(as) pelo vírus da Covid-19.

Em termos globais, deste modo, duas observações podem ser feitas sobre as políticas macroeconômicas em um ambiente de crise pandêmica. A primeira é a de que é fácil entender por que a fragilidade financeira dos países emergentes em crise costuma ser perpetuada através dos efeitos de feedback entre os fluxos de demanda e oferta dos bens e dos ativos financeiros, e dos seus impactos nos balanços das corporações; a segunda, diz respeito aos efeitos da pandemia ter gerado uma dupla crise inter-relacionada: uma macroeconômica e outra de saúde com dimensão global. No caso da economia brasileira, com a expansão da pandemia de Covid-19, tudo indica que o status da grande ou pequena empresa permanecerá inalterada.

Entretanto, a política econômica de cunho liberal adotada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, visando a retomada do crescimento econômico da economia brasileira por meio do mercado, mostrou-se simplesmente ilusória. Isso acontece porque a história da economia brasileira tem destacado a importância do Estado como ator responsável pela reversão da crise em direção a recuperação da economia brasileira.

No âmbito das políticas anticíclicas, o emprego de políticas monetárias costumava ser de extrema importância para evitar o colapso dos bancos e do próprio sistema financeiro. Contudo, como foi visto, a política monetária do Banco Central brasileiro não foi suficientemente forte para lidar com a crise pandêmica.

De fato, taxas de juros baixas não necessariamente impulsionam o aumento os gastos privados com bens de consumo e bens de capital. Além disso, a redução da taxa de juros não produziu tanto impacto sobre a liquidez, pois os bancos privados não estavam dispostos a fornecer liquidez necessária na medida em que o risco do emprestador aumentou consideravelmente na pandemia.

Em contra partida, a política fiscal adotada pelo Brasil se mostrou uma ferramenta tão necessária em tempos de crise pandêmica, pois conseguiu atender, mediante dois objetivos políticos urgentes: a mitigação da pobreza e do desemprego. Nestes termos, a política fiscal deve ser formulada em torno de dois programas: 1º) Um programa de gastos governamentais; e 2º) Um programa fiscal governamental.

Assim, o aumento da demanda agregada, isto é, a totalidade da demanda por setor de uma economia, como consequência de políticas anticíclicas, pode ser obtido por meio de uma política fiscal de aumento dos gastos governamentais, como realizado pelo Brasil, sobretudo através do auxílio emergencial; já o aumento da participação relativa dos gastos públicos deve ser dirigido à fornecer acesso para a alimentação e a saúde das pessoas de estratificações sociais mais pobres e vulneráveis, além da garantia de licença por doença direcionada aos trabalhadores e trabalhadoras que, por várias razões, foram contaminados pela Covid-19.

No início de março, a expectativa do Ministro Paulo Guedes para 2020 era de crescimento real do PIB em cerca 2,1%. Mas essa expectativa de crescimento do PIB nominal para 2020 não se realizou como esperado. Ao contrário, a deterioração do cenário nacional e internacional, agravada pela pandemia de Covid-19, contribuiu para a mudança das expectativas sobre o início da recuperação da economia brasileira, o que parece estar longe de acontecer, pelo menos para o primeiro semestre de 2022.

Por isso, mesmo em tempos de crise pandêmica, o investimento de capital público em infraestrutura econômica (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, usinas hidrelétricas geradoras e distribuidoras de energia elétrica, telecomunicações, etc.) e em infraestrutura social (construção de escolas, universidades, hospitais e postos de saúdes, etc.), que propiciam efeitos multiplicadores de renda e efeitos de externalidades positivas para as atividades privadas, continuam servindo de grande estímulo para a economia.

Nota-se que os indicadores econômicos apontam para taxas de crescimento econômico baixas, taxas de desemprego elevadas e taxas de inflação altas. Todas as atenções do governo federal hoje estão sendo direcionadas para reduzir os efeitos das duas crises que estão afetando diretamente as condições de vida da população brasileira: a crise socioeconômica e a crise de saúde pública em decorrência da pandemia.

Carvalho et al. afirma:

(...), a falta de percepção democrática por parte do staff do Governo Federal, em particular do próprio Presidente Bolsonaro, reflete um negacionismo desnecessário com im- plicações negativas até hoje. Na realidade, o problema da busca por uma explicação plausível para a crise atual é muito mais importante do que aquela associada tão somente à crítica dos erros cometidos pelos policy makers, que esqueceram-se das lições do passado, os quais de- fendiam a ideologia de eficiência dos mercados e do Estado mínimo. (2020:163)

Logo, tendo como base tudo que foi relatado no presente trabalho de pesquisa, sobretudo nos dados oficiais, pode-se afirmar que o atual governo não logrou êxito em sua empreitada para mitigar os impactos socioeconômicos da crise de Covid-19 no Brasil, muito disso por conta de um discurso extremamente negacionista em relação as vacinas.

Considerações finais

No Brasil, o índice de mortalidade por conta da Covid-19 tem apresentado significativa redução, sobretudo após a vacinação. Desde o início da crise pandêmica, a economia passou a emanar sinais característicos de uma recessão com baixas projeções de crescimento, alto desemprego, inflação e aumento da pobreza social.

A Covid-19 no Brasil provocou uma série graves problemas, tais como: diminuição expressiva dos investimentos; redução considerável da produção industrial, queda significativa da geração de empregos e, evidentemente, uma projeção de lucro muito aquém do planejado. Fora que a crise pandêmica escancarou velhas anomalias de ordem social, sobretudo em termos de pobreza e desigualdade social com o retorno da insegurança alimentar (fome) para os brasileiros de estratificações sociais mais vulneráveis.

O auxílio emergencial, como política anticíclica, foi de extrema importância no processo de sustentação econômica do Brasil, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, por ter criado um “colchão” de proteção social diante da pandemia de Covid-19. No atual estado de letargia da economia, deslocando-se de uma desaceleração para uma recessão, o agente anticíclico recomendado não pode ficar restrito apenas a falação de mensagens otimistas em um ambiente de incerteza, mas sim através da ação do Governo Federal, por meio de políticas fiscais ativas de gastos de investimentos públicos, para permitir que o efeito multiplicador se faça sentir nos gastos de investimentos e, sobretudo, no consumo privado.

O aumento da magnitude da pobreza social no Brasil, em tempos de crise pandêmica, provocou um verdadeiro esmagamento das habilidades para produção, constituindo um problema econômico fundamental nas economias acometidas pelo Covid-19, em especial Norte e Nordeste. Se na ausência de um forte ataque, de forma a conduzir igual oportunidade de trabalho via programas sociais de combate à pobreza e o desemprego, uma solução, via mercado, poderá resultar em fracasso por razões óbvias.

A pobreza, em tempos de pandemia, tem duas fontes: o desemprego e a desigualdade de renda. Nestes termos, pode-se afirmar que a desigualdade social no Brasil é de fato um problema estrutural, pois a pobreza não está associada exclusivamente a privação de um bem pela ausência de oportunidade de emprego para obtenção de renda, mas também à incapacidade da obtenção das necessidades básicas por direito de cidadania numa democracia.

Isso é assim, pois na perspectiva multidimensional a pobreza não se resume apenas à insuficiência de renda, mas privações habitacionais, de saneamento básico, energia elétrica, iluminação das ruas, educação, saúde e inserção no mercado de trabalho. De fato, a pobreza social, que conduziu ao pauperismo uma parcela significativa da população brasileira, tornou-se dramática e visível em tempos de crise pandêmica.

A principal conclusão é de que as flutuações das atividades econômicas surgem de múltiplas causas cumulativas e interativas entre si. As fases de um ciclo econômico podem ocorrer não necessariamente obedecendo uma ordem tradicional: expansão, boom, crise, recessão, depressão, estagnação e recuperação. Basta ver o comportamento da crise pandêmica em nível global e em termos de Brasil

Portanto, para que a tendência de recuperação socioeconômica possa se consolidar no Brasil, é imperativo a realização de grandes investimentos públicos e privados visando principalmente a formação do capital humano criador de inovações tecnológicas e organizacionais capazes de propiciar o sucesso econômico (em termos de lucro e de renda agregada dos demais fatores de produção) dos empresários da indústria em geral e, em particular, da indústria de transformação principal responsável pela introdução das inovações tecnológicas criadoras de novos mercados.

Referências

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Documentos Oficiais

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1 Em linhas gerais, a Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo Coronavírus (SAR-COV-2), que ataca as vias respiratórias e provoca uma série de complicações clínicas com amplas possibilidades, quando não devidamente tratada, de óbito, sobretudo em pacientes com mais de sessenta anos e/o outros com algum tipo de comorbidade.

2 O boom de prosperidade é um termo usado na linguagem das ciências econômicas para designar um período de expansão rápida e abrangente em meio à atividade econômica.

3 Maiores explicações em Estey (1965:20-29).

4 Na nota de rodapé do seu livro Teoria Geral, Keynes (1996:294) observa que, quando o contexto não apresenta qualquer possibilidade de equívoco, “é quase sempre certo mais conveniente escrever “a eficiência marginal do capital” (entre aspas) quando se quer apontar “a curva da eficiência marginal do capital”.