Volumen 31 Nº 3 (julio-septiembre) 2022, pp. 70-86
ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44
A estética das tribos nos festivais de música eletrônica
Priscila Cembranel, Flavio Ramos
y Micheline Ramos de Oliveira
Resumo
Os festivais de música eletrônicas e a naturalização de consumo na pós-modernidade influenciam diretamente a estética, a identidade, e as escolhas individuais e tribais. O objetivo desse artigo foi analisar a influência dos aspectos estéticos das tribos nos festivais de música eletrônica. O estudo contemplou festivais mainstream ocorridos no litoral catarinense, considerados eventos culturais e de entretenimento. Para a pesquisa, inspirada no posicionamento epistemológico pós-moderno, a etnografia foi utilizada como atitude, método e narrativa, partindo da historicidade e contemplando uma dialética que vai do subjetivo ao objetivo. A imersão no campo corresponde à observação participante utilizando as técnicas de diário de campo com apoio dos registros de imagens e vídeos. Os resultados revelam a fluidez da identidade das pessoas, o consumo modificado pelo desejo de pertencimento que se altera a todo o momento e a ausência de vínculos entre pessoas que partilham da experiência da dança e da música e que tornam-se uma única tribo, mas ao mesmo tempo sem ter vínculos profundos com ninguém nesse ambiente
Palavras-chave: Festivais Mainstream; Música Eletrônica; Estética; Consumo; Identidade; Pós-modernidade
Sociedade Educacional de Santa Catarina (UNISOCIESC). Brasil.
E-mail: priscila_cembranel@yahoo.com.br. ORCID: 0000-0002-9560-686X
Universidade do Vale do Itajaí. Santa Catarina, Brasil. E-mail: flauni@univali.br
ORCID: 0000-0002-8278-8027
Universidade do Vale do Itajaí. Santa Catarina, Brasil. E-mail: micheantr@hotmail.com
E-mail: 0000-0002-5349-9162
Recibido: 25/11/2022 Aceptado: 13/05/2022
Fhe aesthetics of tribes in electronic music festivals
Abstract
Electronic music festivals and the naturalization of consumption in postmodernity directly influence aesthetics, identity, individuality and tribal choices. The purpose of this article was to analyze the influence of the tribes’ aesthetic aspects in electronic music festivals. The study included mainstream festivals that took place on the coast of Santa Catarina state that are cultural and entertainment events. For this research, inspired by the postmodern epistemological positioning, ethnography was used as an attitude, method and narrative style, starting from historicity and contemplating a dialectic that goes from subjective to objective. Field immersion was performed by participant observation techniques using field diary, supported by image and video records. The results reveal the fluidity of people’s identity and consumption that are modified by the desire for belonging to a tribe that changes all the time, and the absence of links between people who share the experience of dance becoming a single tribe, without having deep bonds with anyone in that environment
Keywords: Mainstream Festivals; Electronic Music; Aesthetics; Consumption; Identity; Postmodernity
Introdução
A música eletrônica representada por meio de seus festivais, estruturas e rituais denota diversas práticas da cultura jovem. As tribos formadas nos próprios eventos, seja por similaridade física, vestes ou as sensações proporcionadas pela música, tornam os festivais eletrônicos um processo de “representação do eu” e de estilos que se encaixam e consolidam as relações de pertencimento.
A tribo é caracterizada por um grupo de pessoas que compartilham emoções e o gosto pela música, a qual intercala momentos de tensão, proporcionados pelos sons graves, com a sensação de alívio de tensão acumulada em um misto de explosão de sons e movimentos que agitam o público na busca por alegria e diversão (Coutinhos e Rodgers, 2006).
Segundo Fontanari (2003), práticas culturais e identitárias estéticas são mediadas por recursos tecnológicos e midiáticos, e representadas pela corporeidade estudada por Cavalcante (2005), que acrescentou com seu estudo a compreensão dos conceitos de corpo e seus sentidos para atingir o êxtase. O êxtase é tratado por Ferreira (2006) como uma experiência de transe pela imersão no ambiente sonoro onde existe uma relação entre tribos indígenas e seus rituais, e as raves e suas tecnologias na busca do transe através do DJ.
Mendes (2010), aborda as tribos nas raves como grupos de convivência jovem que vivem o momento cultural da atualidade. Nesses grupos, Abreu (2011) salienta o entrelaçamento entre a imagem das pessoas, performances e tribos globais unidas pela música eletrônica e pela internet. Assim, a autorreflexividade e a representação do “eu” nos festivais e na realidade virtual, tornam-se hábitos a serem refletidos (Polinarov, 2012).
A música eletrônica divide-se em três formas de festejar: as festas raves, os festivais underground e os festivais mainstream. Cada um deles com características que diferem desde a organização até o modo de festejar dos frequentadores. Os festivais mainstream são considerados industrializados e massificados, pois as músicas aderem ao cenário pop e toda a sua popularidade diante da mídia e da cultura jovem.
Nesse contexto de tribos, pós-modernidade e festivais de música eletrônica, o presente estudo objetivou analisar as influências dos aspectos estéticos na formação de tribos frequentadoras destes festivais. A pretensão deste artigo é colaborar com os estudos a respeito dos festivais de música eletrônica mainstream, trazendo debates relativos ao consumo, pertencimento e conexão entre indivíduos durante o ato de festejar.
Da estética às tribos nos festivais de música eletrônica
O processo tribal nas festas ocorre quando o indivíduo torna-se uma imagem a qual idealiza assumindo comportamentos e valores para ser aceito por um determinado grupo. A dinâmica social influencia o comportamento ao ponto em que pessoas passam a se relacionar com outras como se consumissem imagens midiáticas (Bauman, 2008).
Outro aspecto teórico observado é que nas tribos os membros portam-se como personagens de um enredo imaginário. Cria-se uma persona para cada situação no intuito de expor determinados elementos da subjetividade e ocultar outros (Gonçalves, 1999).
Talvez a pessoa fora do festival seja totalmente o oposto da forma como se apresentou. Nesse sentido, Guimarães Jr. (2000) atribui a esse comportamento a ideia de persona ou de avatar nos festivais eletrônicos. Isso ocorre de modo similar aos jogos de videogame, onde o jogador pode escolher signos e adornos que refletem o pertencimento à determinados grupos. Fontanari (2003) vê esse ato de montar-se para ir à festa, como o ato de ser digno para pertencer a tribo da cena eletrônica mainstream.
Transportando o que aqui é desenvolvido para o campo dos estudos organizacionais, observa-se que, para Maffesoli, “mudando o seu figurino, o indivíduo vai de acordo com seus gostos (sexuais, culturais, religiosos, por exemplo) assumir o seu lugar, a cada dia, nas diversas peças do theatrum mundi”. (2006:133). Nas diferentes organizações sociais, as características tribais podem ser vislumbradas através dos diversos papéis efêmeros e voláteis representados pelos indivíduos, substituindo a concreta noção de funções e grupos inerente à modernidade (Magnani, 2005).
Desta forma, as tribos funcionam por meio de uma lógica de redes, nas quais a conexão e a desconexão podem ser instantâneas e fugazes. Os indivíduos, por sua vez, carregam consigo através da peculiaridade da aparência (seja a roupa, adornos, indumentárias, tatuagens, piercings), os ícones de reterritorialização simbólica, demonstrando o fator de agregação e reconhecimento social, muitas vezes criando uma persona para desenvolver o sentimento de pertencer (Carvalho, 2009; Gonçalves, 1999).
Tribos e pós-modernidade nos festivais
O grande desafio para mapear a pluralidade de elementos da cena eletrônica mainstream é o fato de ter que se distanciar dela. Esse distanciamento é chamado de “estranhar o familiar” por Velho (1978). Como “nativo” tudo é natural, sendo necessário então, manter certa distância para conseguir observar o que realmente faz pertencer, quais as características e valores os frequentadores carregam e que automaticamente os faz serem aceitos entre pessoas completamente estranhas, instantaneamente.
Em relação ao que chamamos de mainstream e underground, deve existir uma consciência de que ambas as cenas são provenientes do movimento clubbing. Raramente a cena underground terá os elementos musicais e frequentadores da cena mainstream. No entanto, a cena mainstream somando algumas adaptações, abarca muitos elementos da cena underground.
Como já foi afirmado, o mainstream é vinculado com a música pop e hoje forma o que chamam de house comercial. Essas músicas são associadas ao capitalismo, ao consumo de álcool, ao código de vestimenta sugestivas e sexualizadas e à lógica de “engate” e coerção masculina (Pini, 2001).
Um contraponto, segundo Thornton (1996), é que a aura moderna atribuída à cena mainstream é associada ao gênero feminino e a cena underground ao gênero masculino. Se considerado, por exemplo, os valores dos ingressos diferenciados que beneficiam as mulheres, pode-se dizer que sim. A cena mainstream é feminina, conta com segurança e estruturas urbanas. Ao mesmo tempo, devemos destacar o fato de que as frequentadoras são utilizadas como um atrativo para o gênero masculino.
Poder frequentar a cena mainstream confere status. Esta é parte da indústria do entretenimento e pode ser objetificada por meio de roupas, adornos, maquiagens, copos, bebidas, adesivos e também por performances de dança. Logo, pode-se afirmar que a autonomia dentro do cenário depende da classe social (Thornton, 1996).
Assim, é comum em determinadas tribos, hábitos de consumo semelhantes entre indivíduos (que não são esteticamente semelhantes) como forma de serem percebidos fora do grupo (como unidade de significação). A relação de partilha entre os membros das tribos perpassa emoções, fatos, vivências e imagens servindo como referência comportamental para seus membros (Rocha, 2005).
O consumo passa a fazer parte das atividades da tribo e as novas tecnologias acabam por serem símbolos de interação social ou possibilidades de socialização (Paiva e Maffesoli, 2004). Para além dos aspectos físicos, o cenário mainstream, o consumismo por meio do mundo da moda, os efeitos visuais característicos de grandes shows e concertos de música, substâncias lícitas e ilícitas com alto valor agregado, tornam-se estilos para representação do eu e da diversidade de performances nas pistas. Os estilos subculturais foram sendo sugados pela grande cena mainstream midiatizada que, exatamente por isso, parece sempre inovar, utilizando novos signos e elementos culturais para os cenários cada dia maiores, imponentes e tecnológicos (Domingos, 2011).
Os cenários dos festivais trazem o conceito de ritual como forma de interação, na qual “símbolos, associações simbólicas, mediante gestos, ações que signifiquem sentido especial para quem os pratica num dado contexto” (Martins, 2002: 124), permitem a identificação tribal e estética dos indivíduos. Assim, o valor da ligação social de consumo representa uma faceta crítica da sociedade: a tribo pós-moderna. Essa sociedade pós-moderna tem como fator fundamental o aumento dos papéis dos consumidores, devido aos avanços tecnológicos de produção.
A grande questão levantada por Bauman (2013) é a possível desistência das características individuais em favor de uma identidade tribal. Mas seria ela segura e libertária ou apenas uma necessidade de expressão frente a indústria cultural e consumista?
No contexto da constituição das tribos, Bauman (2001) descreve que a fluidez é a qualidade dos líquidos e dos gases e que, por isso, sofrem constantes mudanças quando submetidas a determinadas tensões. Os líquidos, diferente dos sólidos, não mantêm sua forma facilmente. O que é fluído ou líquido molda-se, vaza, respinga, preenche com facilidade, sendo móvel e inconstante. A modernidade desde seu início foi um processo de liquefação, que culminou na pós-modernidade de forma que esse traço se torna mais acentuado ou basicamente uma característica social necessária à sobrevivência. Desse modo, a liquidez ganha força quando as pessoas sentem a necessidade de se libertar da sociedade imposta, podendo se mover e agir livremente.
Descrição da pesquisa
A população estudada compreendeu pessoas de 16-40 anos de idade, pessoas com roupas diferentes, roupas em cores neon, maquiagens óculos escuros, adornos corporais, piercings, tatuagens e disposição para festejar. São eventos com viés tribal com pessoas que buscam sua identidade e inclusão. A amostra compreendeu doze festivais mainstream ocorridos na região litorânea de Santa Catarina durante o período de dois anos e dois meses (10/13 a 12/18).
O método e a análise baseiam-se no método etnográfico, na observação participante e técnicas de coleta de dados descritas por meio de diários de campo. Os registros como fotos e filmagens desempenham o papel de suportar a pesquisa na descrição de aspectos estéticos, estilos e formação de tribos, já que não é possível homogeneizar o universo estudado. Para isso, os frequentadores são observados individualmente e em grupos (ou tribos), tendo em vista que são um grupo heterogêneo e fragmentado na busca da compreensão relativa à vivência de determinada cultura.
A postura da pesquisadora atem-se aos métodos escolhidos: a etnografia e observação participante. Por esse motivo, considera-se o fato de que as pessoas consomem e se interessam por aspectos estéticos. Ir a campo pedia a criação de uma persona e esta, não poderia registrar em papel os acontecimentos enquanto interagia com os nativos. Tampouco, poderia filmar os acontecimentos a todo o momento. Logo, o que era apreendido na convivência se transformava em informações escritas em diário de campo somente no dia seguinte aos eventos, quando também eram analisados os registros fotográficos, filmagens e gravações de áudios.
Nessa pesquisa etnográfica, em especial, ou mergulhava de cabeça como um ser livre de preconceitos, deixando o campo e suas informações guiarem o processo, ou engessava a pesquisa com questionários ou focus group, que até gerariam um discurso, mas estariam distantes de representar a realidade dos festivais. A observação participante foi a alternativa escolhida para a incursão em campo e demonstrou-se capaz de captar todas as peculiaridades de uma realidade como a dos festivais de música eletrônica, sem alterá-la. Pois, quanto mais “invadido” era o espaço por mídias como programas de televisão, fotógrafos oficiais ou pessoas famosas, mais “plastificadas” eram as atitudes das pessoas.
Imergindo e emergindo o tempo todo, a narrativa foi sendo construída e analisada pela proposta de Velho (1978). Como pesquisadora, fui agindo cada dia mais como nativa e muitas vezes tinha que lembrar o propósito de estar em campo. O resultado da análise de conteúdo é denso. E a discussão sobre as peculiaridades estéticas, consumo identitário e tribos nos festivais eletrônicos é subjetiva e suportada pelas teorias existentes. A análise é realizada de acordo com duas categorias surgidas dos diários de campo: aspectos formadores de tribos (consumo, estética e fantasias) e pós-modernidade relacionada ao consumo e ao ato de festejar.
Tribos e consumo
A sociedade pós-moderna subestima quanto os jovens estão sendo moldados pelo poder das ferramentas digitais, pelo consumo de cultura e mídia em geral (Kinneman, 2012).
Bertoldi (2001) alerta que as tribos da sociedade pós-moderna se alimentam de informação pessoal pela interação constante de informações que nunca param de chegar. Aplicando esse conceito à pesquisa, basta analisar a forma como as pessoas utilizam as redes sociais virtuais. Por meio das “tribos virtuais”, compostas por frequentadores de festivais de música eletrônica, é possível conseguir vários ingressos gratuitos. Além disso, quando os frequentadores participam das comunidades virtuais dos festivais que pretendem ir, descobrem novas bebidas que serão vendidas ou as novas misturas e coquetéis que estão sendo considerados bons, novos lançamentos de músicas e DJ’s (Figura 1).
Figura 1: Percepções possíveis nos grupos de redes sociais virtuais voltados aos festivais mainstream de música eletrônica
Fonte: Dados da pesquisa.
Ao entrar nesses grupos, o indivíduo descobre o horário em que o DJ tocará, como chegar até os lugares e especialmente com quem. Involuntariamente torna-se igual a eles, ainda que deseje ser diferente.
Ao chegar aos festivais que ocorrem à noite, percebe-se que os contatos são efêmeros, porém não suficientes para unir as pessoas. Na maioria das vezes, descobre-se apenas o nome de quem está dançando ao lado. Assim, a legitimação da representação de laços ocorre por meio dos objetos.
No primeiro festival, Carlos e João são parecidos. Corpos malhados, caucasianos, vestindo calça jeans e camisa polo, na faixa dos vinte anos, cordões parecidos com pingentes em forma de seta virada para baixo e tatuagens nos braços, uniram-se a outros dois participantes para dançar: Matheus e Ricardo, ambos caucasianos, malhados, usando calça jeans, regata e óculos escuro. Em três minutos surgiram mais três garotas também com as mesmas características físicas e usando óculos escuros.
A tribo se formou. Ao mesmo tempo que as pessoas ficam nela, não estão familiarizadas entre si. Tudo acontece rápido e se não prestar atenção, a formação pode mudar antes que o participante perceba. Nessa ocasião, surgiram mais duas mulheres. Eram altas, cabelos longos, tiara de flores, botas, bermudas curtas e blusas com a barriga à mostra, vinte e poucos anos. Nesse instante, Ricardo percebeu outro rapaz tentando rasgar as mangas da camiseta e foi ajudar. Uma das mangas rasgadas foi utilizada por Carlos como bandana na cabeça. Nesses poucos minutos, eram sete pessoas juntado dinheiro para comprar bebida, mas que não se conheciam.
Unidas pela estética em uma tribo? Ricardo tinha contatos e muitas pessoas conversavam com ele. Nessa hora, questionei o que unia essas pessoas, ou melhor, o que nos unia, pois eu estava junto. Depois de um tempo observando, Ricardo pingou cinco gotas de um líquido, que estava em um frasco de adoçante, na água que estava sendo consumida pelas pessoas da tribo. Era a água com «Gisele»1 o objeto que ligava as pessoas ou o poder de consumo? Independentemente do que fosse, o dinheiro que juntaram permitiu a participação de todos na tribo. Na sociedade do consumo, relações humanas são construídas de acordo com os padrões e semelhanças entre consumidores e objetos de consumo (Bauman, 2003).
Cada festival tem seu próprio código de vestimenta. Normalmente são temáticos e os frequentadores se adequam para pertencer. O segundo e o terceiro festivais ocorreram nos meses de calor no Brasil. Assim, apesar das roupas de marcas caras dos frequentadores, o estilo era praieiro e temático. As pessoas usavam fantasias leves conforme a proposta divulgada pelo evento.
O principal aspecto defendido por Bauman (2008) é que pessoas visam tornarem-se mercadorias desejáveis com a finalidade de realizar seus sonhos ou “contos de fadas”. O festival em questão se vendia com o slogan “O festival do nosso verão”. Como vitrine, nele estavam “mercadorias” que, além de roupas em estilos alternativos, utilizam óculos escuros. O “conto de fadas” é repleto de celulares que filmam e fotografam tudo, inclusive os rituais de dança de seus participantes.
O processo de consumo contempla um componente imaginário, experimental e reflexivo que se concretiza pelo consumo de mercadorias. A construção identitária, as relações sociais, os momentos familiares e as amizades, também são afetadas pelo consumismo pós-moderno. A reflexão do consumo aborda experiências sensoriais e imaginárias como atos de construção estética (Duarte, 2010).
A pesquisa de campo sustenta a afirmação do autor. O atributo social é resultado do consumismo ou, no caso das festas eletrônicas, ostentação: saltos altos, roupas de marcas famosas, homens e mulheres atraentes e exibicionistas. Perfumes importados inconfundíveis, quase sempre as mesmas fragrâncias. Independentemente do ingresso, as pessoas se agrupavam conforme o poder aquisitivo e a semelhança estética – intencional ou não. Nas pistas o brinde ocorria com cerveja e nos camarotes as bebidas caras eram trazidas pelos garçons e exibidas em brindes com direito a estourar garrafa de espumante.
O estilo de vida individual e grupal é afetado pelo consumo. A todo o momento são criadas novas soluções estéticas para sociedades culturais alternativas. O tempo todo as pessoas são bombardeadas com novas possibilidades para manter sua posição social ou afiliação social de si mesmo. Além de uma representação social, está em jogo a autoestima do indivíduo, que busca inconscientemente, tornar-se uma mercadoria vendável. O único modo de ser aceito socialmente (Bauman, 2008).
Estética
Para os festivais, abro um espaço para falar de algo estético e tribal comum aos participantes: os óculos escuros. Algumas pessoas, com óculos escuros, quebram tabus e utilizam esse acessório para realçar ou disfarçar a própria beleza. Segundo Lipovetski (1989), o uso desse objeto denota um atributo para a criação de uma persona. Não é meramente decorativo, cada escolha representa um posicionamento e uma originalidade frente aos grupos de pertencimento.
As pessoas se questionam: por que usar óculos escuros à noite? Leão, Camargo e Cavalcanti (2014) em seu artigo, que analisa a empresa Chilli Beans, comentam a existência de uma linha especializada, com “aura hedônica”, para servir ao público das festas, com cores, materiais e modelos diferenciados.
Na cena eletrônica ainda, é comum ver piercings, tatuagens, maquiagem carregada e óculos escuros baseados em conceitos de tecnologia, globalização, futurismo e internet (Arteiro e Francisco, 2007). Os óculos servem para evitar a luz, mas também podem ter outras utilidades como deturpar a visão. Isso é possível se tiver lente colorida ou ainda lente especial com efeitos que perturbam e distorcem a visão.
A iluminação é agressiva, ou talvez a pupila de quem se encontra atrás dos óculos esteja realmente alterada ou seus olhos vermelhos, ou ainda, exista o desejo de não ser perturbado. Segundo os frequentadores, quando usam óculos escuro, menos pessoas tentam interagir e mais tempo sobra para dançar. As pessoas criam e constroem suas identidades simbólicas e estéticas por meio do consumo, o qual ganhou um viés de prática cultural, produtor de sentido e possibilidade de autorreflexão.
Todas as pessoas usavam óculos escuros, especialmente a partir das quatro horas da manhã. Seja como proteção da luz (pelo uso ou não de entorpecentes), para ser aceito e reconhecido na tribo ou simplesmente satisfação pessoal. O que, inevitavelmente, torna-se uma forma de comunicação visual para a construção de interpretações sobre si como pessoa e sobre o outro (Polinarov, 2012).
Depois de alguns festivais, é possível perceber a ideia de igualdade entre indivíduos em um mesmo grupo, conceito proposto por Bauman (2008). Pois, os indivíduos de um mesmo grupo parecem desejar ter uma estética similar:
“[...]. Uma tribo se evidencia: a dos homens sem camiseta, calças e cuecas de marcas famosas aparecendo, correntes grossas e óculos escuros. Esses homens são musculosos, depilados, dançam [...]. Horas mais tarde, do outro lado da festa há um grupo de “Três Marias”, mulheres vestidas iguais e andando a passos curtos. Elas não falavam, mas geravam empatia nas pessoas que faziam fotos com elas” (fragmento de diário, Festa 2).
As relações tribais passam pela noção de estética e similaridade. Em um dos festivais, ainda que houvessem tribos que curtissem o cenário eletrônico “mainstream”, havia outro palco com atrações musicais para contemplar a cena underground. Nessa noite, em particular, duas tribos e suas respectivas “sub-tribos” misturavam-se. De um lado os frequentadores com estética “mainstream” com suas roupas justas e caras, perfumes importados, corpo a mostra e saltos altos; de outro lado, as roupas largas e tênis dos frequentadores do cenário “underground”.
Falar que eles estavam fora do estilo mainstream seria mentira, mas o elemento conforto estava nas roupas, calçados e acessórios utilizados naquela noite. Foi possível observar naquela noite, que o público que frequenta as festas underground tem uma aceitação maior a piercings, tatuagens e adornos tribais, por exemplo. E todos coexistiam em um mesmo ambiente sem problemas e vez por outra misturavam-se entre si.
A estética “mainstream” vende. Assim, os frequentadores também vestem-se para as fotos que aparecerão nas redes sociais do festival. Os registros desses eventos costumam mostrar as pessoas do camarote em momentos iniciais de seu festejar. Isso demonstra a concepção romântica e irreal frente ao desejo de poucos diante do processo de transformação social trazida pelo crescimento do capitalismo (Cavalcanti, 2008), conforme observado durante esta pesquisa:
[...] O público era diverso e as fotos dessa festa ficariam diferentes do habitual. Ao abrir a rede social haviam lá pessoas muito bem vestidas, todas do camarote. Mesmo atingindo um público, em sua maioria com outro estilo e outra perspectiva, o fotógrafo fez somente registros de pessoas com o mesmo perfil de sempre. A imagem da elite vende. Eram poucos naquela noite, mas somente eles foram registrados em fotos e vídeos” (fragmento de diário de campo).
A indústria do entretenimento transforma a cultura em mercadoria, suprimindo sua função crítica e desfazendo os traços autênticos das experiências nos eventos quando transmitem apenas uma parte da realidade (Mattelart e Mattelart, 2011).
Outro ponto a ser analisado é o uso de salto alto pelas mulheres nesses festivais. Existe um conceito implícito de poder, aceitação e adoração aos saltos. Inconscientemente, todas as mulheres cresceram experimentando os calçados de suas mães e desenvolvendo a ideia errônea de que usá-los traria satisfação sem dor. No oitavo festival, ao final da festa era possível analisar uma moça cujas pernas estavam desenhadas pelas tiras da sandália que ela usava com zíper solto e com expressão facial de dor.
Assim, quando as pessoas saem para festejar, para viver um momento hedonista e sensorial, a estética costuma prevalecer frente ao bem-estar. As pessoas não parecem questionar se a persona construída para os festivais pode ser modificada. Resultado disso é que o corpo não integra mais a individualidade, mas vive a universalidade e, por isso, deve ser cuidado para o mundo. O caráter pessoal submete-se à necessidade de um corpo novo, como uma expressão de zelo com a imagem (Diniz, Barros e Avenhago, 2015: 2). Do mesmo modo, mulheres podem usar chinelos, tênis ou sapatos confortáveis, mas é de salto-alto que elas vestem-se (O’Keefe, 1996). Ainda que pareça uma citação desconexa e arcaica, ela é a realidade de muitas mulheres. Em especial às que participam de algum festival mainstream.
E não existe nada de exótico na cena: a partir de três horas da manhã, dezenas de moças tirando seus calçados de salto alto para terem algum alívio de dor. Nesse momento, as pessoas que usavam calçados de salto-alto já estavam de chinelo ou sapatilhas confortáveis. Os saltos ficavam de lado enquanto a dança acontecia na chuva. Todos interagiam sem contato visual, cada um dançando no seu mundo e com seus pensamentos. A única possibilidade de alguém olhar para outra pessoa era para pedir desculpas caso pisasse no pé desta ou a machucasse com os movimentos de dança coletivos.
Fantasias
A estética é construída por meio da performance das práticas sociais e culturais podendo reinventar a identidade de uma pessoa ou da sua tribo (Laughey, 2006). Nos festivais, uma forma de construção estética são as fantasias dos frequentadores. Similar a um conto de fadas, é possível encontrar personagens de desenho animado, de histórias em quadrinhos, fadas, princesas e príncipes prontos para viver uma experiência lúdica proposta pela organização do evento.
No quarto festival, conversei com Hanna. Ela fazia mestrado e havia estado na edição anterior do mesmo evento. Sabia que muitas pessoas utilizavam fantasias e adereços e preparou a roupa que poderia ser, e foi, objeto para identificação e inclusão entre as pessoas da cena mainstream: um vestido de fada. Para ela, as fantasias são uma forma de fugir das frustrações obrigatórias da vida cotidiana e representam a realização de desejos. Por meio de uma simples roupa é possível estabelecer conexão com outra temporalidade e sentir felicidade independentemente da realidade. Além disso, ela explicou que as roupas dos festivais mainstream, além de não poderem ser repetidas, eram facilmente encontradas nas seções de lingerie de lojas de departamento.
Essas fantasias, que atuam como personas e formas de isolamento, são típicas dos usuários das novas tecnologias de comunicação, ainda que essas não sejam concorrentes para a convivência presencial (Lanzarin, 2000). Isso pode ser observado no ato de festejar, uma vez que as relações entre as pessoas das festas dificilmente transpõem o mundo dos festivais. Percebe-se que, ainda que existam pessoas reais por trás da performance mostrada de acordo com o interesse de cada indivíduo, quando são removidos todos os vestígios, características físicas e atitudinais daquela persona, é possível observar a vulnerabilidade.
O uso das fantasias é comum nos festivais mainstream e faz parte da performance e da persona. Durante o estudo, os diários registraram pessoas vestidas de vaca, carneiros, dinossauro, bobo da corte, etc. Do mesmo modo, havia também uma dupla de DJ’s que tinham em sua logomarca bananas e muitas pessoas usavam toucas em formato de casca de banana. Querendo ou não, isso aproximava outras pessoas.
O poder de escolha de uma estética ou representação física para a sociedade pode ser influenciada por diversos aspectos e práticas, mas passa indiscutivelmente pelo consumo que depende da coerência expressiva de cada indivíduo (Polinarov, 2012). Por isso, as fantasias demonstram ainda, coisas que as pessoas não ousam verbalizar entre estranhos.
Existe todo um cuidado, que em muitos casos, inclui a reserva de uma fantasia meses antes do evento. As pessoas comentavam que não haviam mais fantasias para alugar na região. Alguns são tão criativos que isso acaba se tornando um problema, como saliento em um fragmento de diário: “[...] ele precisava mostrar a foto no celular toda a vez que alguém pedia de que era a fantasia dele (e não foram poucas as vezes, para não dizer que não foram todas) [...]”.
Talvez as produtoras desses eventos não imaginam a grande tribo que criam. Quando se entra em um festival, as fantasias geram reciprocidade, empatia e fazem com que indivíduos tenham seus comportamentos modificados para performar como uma persona. Nesse momento, existe uma postura mais lúdica, descontraída e baseada na espontaneidade.
Formação de tribos nos festivais de música eletrônica mainstream
As tribos pós-modernas são parte da nova organização social e convivem lado a lado com seus ritos, músicas e identidade visual próprias, que acabam trazendo formas diferentes de representar o consumo de experiência (Maffesoli e Chiapparra, 2009). Consonante aos estudos de Mitchell e Imrie (2011), estudos pós-modernos apresentam uma perspectiva do consumo na sociedade onde estão inseridas as tribos. Por seu consumo, indivíduos tornam-se emocionalmente conectados pela similaridade de valores, criando uma nova comunidade com forma de expressão diferenciada.
Na cena eletrônica distingue-se primeiramente as tribos underground e mainstream. Ao olhar com alguma profundidade, pode-se observar que isso vai muito além de meras definições e que não é somente isso que se encontra nas festas e festivais. No contexto da pós-modernidade, cada tribo tem seu próprio modo de falar construído mediante partilha de valores que culminam em uma pluralidade de elementos, como descreve Maia (2005), e tornam os membros solidários uns com os outros (Maffesoli, 2000).
Conjuntos sociais possuem aspectos em comum, sendo que o indivíduo se forma a partir das relações interpessoais. Sobre valores, Maffesoli (2000; 2005; 2006) afirma que a discussão do fenômeno tribal na pós-modernidade poderia não ser percebida pela sociedade, mas a valorização do individualismo e a escolha de pessoas conforme interesses afins, já são uma realidade. Hoje, não restam dúvidas de que a formação social denominada tribos, na qual pessoas desempenham voláteis papéis, substituiu as sólidas formações da modernidade marcadas por grupos definidos, nos quais as pessoas desempenham funções também definidas e não momentâneas. A noção de tribos está presente hoje em qualquer campo da atividade social e organizacional, ainda que seu processo de constituição e funcionamento não seja totalmente compreendido pelos pesquisadores.
As tribos pós-modernas desprendem-se de afiliações, não existe comportamento homogêneo e seguimento de regras. As formas existem em uma evolução entendida como bricolagem inventiva e em reconstrução constante. As tribos não têm um tempo de início e/ou fim, seus traços modificam os indivíduos e a sua coletividade. O espaço serve para a convivência de diversas tribos, embora nem todas desejam exercer esse direito. A abstenção costuma depender da classe ou grupo social (Goulding, Shankar e Canniford, 2013).
Na busca de sua identidade, um indivíduo orientado pelo consumo pode migrar de uma tribo para outra, somente mudando seus objetos e serviços de consumo (Bauman e May, 2010). Cova e Cova (2002) definem tribo como uma rede de relacionamentos de pessoas heterogêneas que se unem através do compartilhamento de sentimentos e emoções, ações coletivas onde os membros são além de consumidores defensores de signos em comum:
[...] A diversidade era grande. [...]. O ápice foi quando um grupo de DJ’s começou tocar. A visão era de que as pessoas dançavam e se libertavam. Observando e acompanhando a energia naquele momento, um grupo de argentinos gritava “Vamos!” e cada vez que faziam isso juntavam mais uma pessoa ao grupo. Quando me dei por conta, tinha de um lado uma pessoa argentina e do outro uma americana. A música alta e aquele ritmo de pular impedia o entendimento da situação, mas apenas por estar dançando já pertencia ao grupo. Não se sabe o nome de nenhuma das pessoas, ninguém conversa [...]. (fragmentos de diário, Festa 10)
A falta de comprometimento, a dispersão (Bauman, 2001; 2003; 2008; 2013) e as características fluidas conforme comodidade, evidenciam a liquidez dos relacionamentos humanos neste contexto. Maffesoli (2000; 2005; 2006) considera esta, uma nova forma de interação e não a extinção das outras (como família ou grupo de estudantes, por exemplo). Assim, as pessoas dançam, com seus copos, óculos escuros e seguindo o básico do aprendizado por repetição: deixar em paz quem está na pista dançando, “misturar-se” a eles e interagir se estiverem receptivos.
As oportunidades de escolhas e a superficialidade das relações humanas, trazem à noção de pós-modernidade uma nova configuração das necessidades de viver em sociedade, a qual passa não somente pelo pertencimento aos núcleos modernos, mas à possibilidade de escolha das formas de relacionamento diante de interesses e afinidades: surgem as tribos.
O indivíduo é motivado pela construção de sua identidade e absorve referências de símbolos, signos, imagens e representações disponíveis no sistema de consumo - um deles é seu grupo ou tribo. Assim, quando necessidades ou desejos não são atendidos existe a sensação de desequilíbrio. Esse desconforto gera a motivação para o atendimento de seus impulsos internos. Conhecer as necessidades das pessoas pode ajudar a entender quais benefícios elas buscam em suas experiências de consumo (Retondar, 2008).
Emergiu, assim, a necessidade de buscar semelhanças que nem sempre possuem vínculos familiares ou de amizades iniciadas na vida escolar ou no trabalho, mas na forma de pensar, de vestir, de se comportar e, principalmente, na liberdade de mudar de tribo quando for conveniente. É, portanto, na liquidez das relações humanas, desprovidas de apego, obrigatoriedade, lealdade, que se defende apenas o que for conveniente quando isso for de interesse dos indivíduos.
Criam-se relações momentâneas por motivos fúteis. E assim como elas se fazem, também se desfazem. No sexto festival, por exemplo, eram proximamente cinco horas da manhã e Marcio, cabelos longos, magro e de óculos escuros, descia as escadas dançando. Duas moças que estavam na companhia dele apresentaram-se para Hanna. Elas notaram rapidamente o piercing que tinha no rosto dela e disseram: “Marcio tem um piercing igual ao seu”. Ele, que continuava dançando, colocou o cabelo para o lado e mostrou o piercing no tragus (um ponto específico na orelha) e se manteve ao lado de suas amigas e de Hanna. Foram horas dançando até decidirem ir embora. Ao ser questionada, Hanna disse que não sabia quem eram eles, mas se aproximou pelas características físicas similares às dela. Disse que se sentiu segura e confortável. “As pessoas não falam absolutamente nada, mas os olhares dizem tudo: “você não pertence a esse lugar”. Então, a estética importa sim. Sem corresponder ao padrão mínimo da grande tribo há estranhamento entre eles” (fragmento de diário).
Percebe-se assim que, apesar de efêmeros, os vínculos não são frágeis, pois são pautados por solidariedade, fraternidade, intensidade e ajuda mútua, permitindo a espontaneidade e priorizando a valorização da coletividade (Carvalho, 2009).
O momento presente é tudo o que se tem nos grandes festivais. É o momento de partilha entre os frequentadores, de interação e identificação. A fusão pós-moderna é delineada de forma que não implica uma presença plena e sim uma relação táctil. A sedimentação social e a ambiência são frágeis. Foi nesse instante que o processo de individualização ultrapassou a superficialidade social corroborando o tribalismo e impulsionando a identificação dos grupos como uma verdadeira sociedade tribal pós-moderna (Maffesoli, 2006).
Os momentos são ricos em detalhes, porém totalmente descompromissados com expectativas. Não há nenhuma interação entre pessoas, mas a celebração entre todas elas. Um exercício de introspecção e energia explodindo na pista, através das expressões faciais e corporais. Apenas adultos se divertindo como crianças divertem-se. Celebrando o papel picado que cai nos rostos e corpos sob as luzes que se modificavam a cada instante e música estilo house comercial para cantar, arrepiar, comemorar, pular, embalar ou simplesmente ver. Toda essa brincadeira é uma sexualização infantilizada, como afirma McRobbie (1994), onde luzes, efeitos, sons e fantasias remetem a linguagem da infância.
Muitas nacionalidades e nenhum problema para criar e acompanhar as coreografias feitas na hora com pessoas desconhecidas e extasiadas, com seus óculos escuros e pirulitos. Os risos à toa e outra coreografia começava. A cada DJ que subia à cabine (o palco dos festivais de música eletrônica) a vibração individual convergia e todos vibravam na mesma frequência. Ainda que muito diferentes, essas pessoas partilhavam sua relação com a música eletrônica, o espaço, a busca de sensações e apropriação de momentos (Lopes et al., 2010).
Em relação às pessoas: “[...] não importava se elas se conheciam, quando a música começava, elas se olhavam e cantavam juntas, olhando umas para as outras [...]” (fragmento de diário). As tribos podem ser hedonistas buscando prazer, aparência e a vida baseada somente no momento presente, como uma expressão da contemplação do mundo (Maffesoli e Chiappara, 2009). Nas tribos, ressurgem valores como o senso local de identificação, a religiosidade, o sincretismo e o narcisismo.
Assim, pessoas unidas em pequenos grupos pareciam sentir a música, viver o transe, recolherem-se em si mesmas e essa foi uma descoberta no universo mainstream, onde tudo, teoricamente, é definido como consumismo. Compreender que os corpos recebem e produzem sensações, significados e emoções pulsando e respirando para a aquisição de conhecimento (Mauss, 2003).
Considerações finais
Refletir sobre a estética e as características das tribos nos festivais eletrônicos é falar de indivíduos que dançam a noite toda e por todo o espaço possível. A pesquisa etnográfica evidenciou que as tribos se formam pela similaridade estética, seja esse movimento consciente ou inconsciente, e não necessariamente, pela comunicação verbal entre seus membros. Assim, as pessoas se unem em tribos nos festivais de música eletrônica mediante suas vestes com roupas de marcas caras, usam óculos escuros, fantasias e, no caso das mulheres, saltos-altos.
O poder aquisitivo para o consumo também forma as tribos nos festivais mainstream e dita a estética dos frequentadores. Pois, muitas vezes, é o consumo que media o grupo de pessoas que em silêncio e sem trocar informações, partilham momentos de fuga da realidade por intermédio do festejar pós-moderno. Assim, criam-se performances com pessoas que jamais irão saber o nome, pois elas sairão de perto antes mesmo que seja possível falar. O momento é para sentir, individualmente a coletividade dos festivais.
As tribos correspondem primeiro ao lugar onde estão os indivíduos e se estes estão acompanhados de amigos. Quando vai-se sozinho, raramente deixa-se o ambiente sem ter um novo contato para uma próxima festa. Este contato é alguém que, no mundo fora do festival, corresponda à sua tribo: das pessoas que gostam de música eletrônica mainstream.
Há nesse ambiente uma relação profunda com a fuga da rotina e da realidade cotidiana. De exercer o direito de ser “eu” da forma que sou ou de criar um “eu” diferente para cada festival. Tem relação com explorar sensações, deixar-se levar pelo momento, de enganar-se sobre poder, ostentação ou do que mais não se possa ter ou fazer fora do festival.
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1 Gisele era pseudônimo de GHB ou ecstasy líquido.