O emaranhado social envolvido nos conflitos ambientais: proposição de análise à luz da Teoria da Produção Social

Jaqueline Guimarães Santos y Eugenio Avila Pedrozo

Resumo

Os conflitos ambientais aumentaram significativamente nos últimos anos na América Latina, especialmente no Brasil. Engendrados por diversos fatores, entre os quais destacamos a implantação de grandes projetos de infraestrutura em territórios constituídos por comunidades tradicionais, os conflitos ambientais são caracterizados pelo embate de uma ampla rede de atores que apresentam modos distintos de apropriação simbólica e material da natureza, os quais se conectam e se organizam politicamente de modos diferentes, resultando em um complexo emaranhado socionatural. Desse modo, este ensaio tem por objetivo refletir como a Teoria da Produção Social, do chileno Carlos Matus, pode auxiliar na compreensão da produção social envolvida nos conflitos ambientais. Nesse sentido, defendemos que o conflito ambiental é um jogo social de final aberto, emergido de um processo social e politicamente construído, formado por atores sociais em interação, com motivações e interesses divergentes, além de recursos de poder em disputa. Portanto, afirmamos que tanto os atores quanto as alianças se constituem e se refazem ao longo do processo político de produção social. Concluímos o ensaio com contribuições importantes no tocante aos estudos dos conflitos ambientais à luz da Teoria da Ação Social, caracterizando um avanço teórico para a área

Palavras-chave: Conflito ambiental; Atores sociais; Produção social; Jogo social

Universidade Federal de Pernambuco. Caruaru, Brasil

E-mail: jaqueline.guimaraes@ufpe.br

ORCID: 0000-0001-8455-1659

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil

E-mail: 00010312@ufrgs.br

ORCID: 0000-0002-4751-707X

Recibido: 08/03/2021 Aceptado: 14/05/2021

The social tangle involved in environmental conflicts: a proposition for analysis in the light of the Social Production Theory

Abstract

Environmental conflicts have increased significantly in recent years in Latin America, especially in Brazil. These are engendered by several factors, among which we highlight the implementation of large infrastructure projects in territories made up of traditional communities. The environmental conflicts are characterized by the clash of a wide network of actors who present different modes of symbolic and material appropriation of nature, which they connect and politically organize in different ways, resulting in a complex socio-natural tangle. Thus, this essay aims to reflect on how the Theory of Social Production, by Chilean Carlos Matus, can help to understand the social production involved in environmental conflicts. Thus, we argue that environmental conflict is an open-ended social game, emerging from a socially and politically constructed process, formed by social actors in interaction, with divergent motivations and interests, besides in dispute power resources. Therefore, we affirm that both the actors and the alliances are constituted and remade throughout the political process of social production. We conclude the essay with important contributions regarding the studies of environmental conflicts in the light of the Social Action Theory, characterizing a theoretical advance for the area.

Keywords: Environmental conflict; Social actors; Social production; Game social.

À guisa de introdução: sociedade(s)-natureza(s) e a emergência dos conflitos ambientais

Considerado como objeto empírico e teórico importante para o debate no campo das ciências sociais, o ambiente integra a interação entre sociedade e natureza – ou social e natural –, assume uma riqueza simbólica e contém a capacidade de provocar a mobilização social e organizar as representações sociais. Sendo assim, o ambiente socialmente construído “[...] torna-se foco de atração/objeção de alianças e disputas, as quais estão em constante elaboração pelos agentes sociais” (Almeida, 2016: 16). É nesse ambiente que eclodem os conflitos ambientais, resultado dos “[...] assimétricos projetos e processos de apropriação simbólica e material do mundo”, revelando as severas “[...] assimetrias estruturais, as relações de poder e dominação” (Barbosa; Fleury, 2020: 4).

O conflito ambiental emerge do enfrentamento de diferentes visões na relação seres humanos e natureza, do encontro entre diferenças culturais e intersubjetividades, da presença de heterogeneidades e de múltiplos divergentes que se constituem em diferentes visões de mundo, não sendo apenas a explicitação da diferença, mas a experiência do encontro de traços, de formas de experimentar e de pensar que não são fixas, sendo uma categoria híbrida de sociedade e natureza (Fleury, 2013; Meira; Almeida, 2018).

Os conflitos, portanto, envolvem um conjunto de atores sociais com “[...] modos diferenciados de apropriação, uso e significado do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis” (Acselrad, 2004: 24). Importa ressaltar que os conflitos ambientais reúnem uma ampla rede de atores como “[...] indígenas, ribeirinhos, autoridades políticas, ambientalistas, socioambientalistas, celebridades, instituições governamentais, organizações da sociedade civil” (Fleury, 2013: 115), que se conectam de modos diferentes no desenrolar do conflito. Desse modo, na rede, não há sentidos pré-estabelecidos, ao contrário, nelas se formam fluxos cujas articulações são heterogêneas e instáveis, o que impede escolher um ponto de vista a priori, mas, no desenrolar dos conflitos, eles são formados. Por isso, a importância de os cientistas e de as cientistas analisarem as múltiplas conexões e o descentramento de certas perspectivas ou de certos objetos de estudos (Meira; Almeida, 2016).

Na América Latina, especialmente no Brasil, são históricos os conflitos ambientais gerados pela implantação de grandes projetos de infraestrutura, assim como o desenvolvimento de diversas atividades econômicas como mineração, agroexportação, monoculturas, entre outros, em territórios constituídos por comunidades tradicionais ou minorias. Esses grupos sociais “[...] são encarados, pelos agentes públicos e privados do projeto desenvolvimentista hegemônico, como obstáculos ao processo de acumulação de capital” (Acselrad, 2013: 169).

Destarte, para se estudarem os conflitos ambientais, são necessários o reconhecimento das desigualdades de poder e os diferentes tipos de conhecimentos e racionalidades envolvidas na relação sociedade e natureza (Zhouri; Oliveira, 2012), a partir de uma análise não estruturalista. Entendendo que “os conflitos têm história”, não é possível compreendê-los considerando apenas a configuração presente da ação coletiva, uma vez que “[...] a produção de alianças, adesão a valores, criação/redefinição de identidades, não é estática; é processual” (Alonso; Costa, 2002: 126).

Assim, consideramos que a Teoria da Produção Social, do chileno Carlos Matus, é uma importante abordagem teórica capaz de melhor elucidar a natureza política e polissêmica, além das tensões envolvidas no conflito ambiental, uma vez que parte de uma abordagem processual cujo eixo central é a produção social entre atores em uma dada realidade situacional (Pinto; Misoczky; Flores, 2017).

Diante dessas considerações, nesse ensaio teórico, argumentamos que o conflito ambiental é um jogo social de final aberto, emergido de um processo socialmente construído, constituído por atores sociais em interação, com motivações e interesses divergentes e recursos de poder em disputa. Nesse sentido, o objetivo do ensaio é refletir como a Teoria da Produção Social, do chileno Carlos Matus, pode auxiliar na compreensão da produção social envolvida nos conflitos ambientais.

Por ser um estimado campo de investigação científica em consolidação no Brasil (Fleury; Barbosa; Sant’ana Jr., 2017), relevante no cenário latino-americano e crescentemente presente em vários eventos científicos das ciências sociais (Fleury; Almeida; Premebida, 2014), vislumbramos que a Teoria da Produção Social, de Carlos Matus, contribui para um avanço teórico por permitir compreender processualmente como se desenrolam as interações sociais e as relações de poder desenvolvidas no espaço social, entendendo o sistema social como um grande jogo, complexo e nebuloso, composto por atores sociais dotados de recursos de poder que mantêm relações de cooperação, competição e conflito.

É apropriado chamar a atenção para que, ao optarmos por uma abordagem teórica que enfatiza a produção social, não desconsideramos a relação seres humanos e natureza, apenas o foco de análise dos conflitos circunscreve a teia da vida social, a qual, por si só, é resultado do imbricamento entre sociedade-natureza. Portanto, trazê-la para o campo dos conflitos ambientais é pertinente e dialoga com outras abordagens já desenvolvidas, como o destaque dado por Andrea Zhouri sobre relações de poder e dominação, o próprio conceito de conflitos ambientais apresentado por Henri Acselrad – um dos principais teóricos no Brasil –, etc. Isso indica, pois, que há pontos de possíveis encontros e discussões entre as diferentes perspectivas teóricas e, por isso, há uma pertinência em trazer a discussão teórica do chileno Carlos Matus para o contexto do ambientalismo brasileiro.

Ademais, no contexto brasileiro, outros trabalhos já foram realizados (Artmann, 2000; Costa; Goulart, 2011; Pinto, 2014; Melz, 2017; Pinto, Misoczky; Flores, 2017) utilizando a Teoria da Produção Social, porém nenhum tratou do tema ora apresentado neste ensaio. Desse modo, destacamos, para além do pertencimento da obra ao nosso contexto sociopolítico, o caráter de originalidade deste trabalho.

Considerando a predominância de pesquisas empíricas no campo, este ensaio tem como contribuição principal o avanço teórico dos estudos dos conflitos ambientais à luz de uma teoria que assume a perspectiva do ator social.

Para tanto, estrutura-se em quatro seções, além desta introdução. Na seção seguinte, discutimos sobre conflitos ambientais, com ênfase nas questões sociais que moldam tais conflitos, à luz da Teoria da Produção Social, de Carlos Matus. Na terceira seção, analisamos a produção social envolvida nos conflitos ambientais, por fim, encerramos o ensaio com as considerações finais.

As questões sociais emaranhadas nos conflitos ambientais

Os conflitos se conformam a partir do imbricamento social e natural, ou seja, das relações entre sociedade e natureza. Muitas vezes, é a partir da exploração desta que os conflitos emergem, além do ambiente que os atores disputam, organizam-se e enfrentam-se. Daí a importância de estudos que busquem trazer à luz a produção social envolvida nos conflitos. Para tanto, considera-se que a Teoria da Produção Social pode ser um arcabouço teórico fundamental. Antes mesmo de nos aprofundarmos sobre ela, é necessário apresentarmos um breve contexto de surgimento da produção do Carlos Matus e suas principais influências teóricas.

Breve contexto sobre a vida e as obras de Carlos Matus

Carlos Matus nasceu no Chile, em 1931, formou-se em 1955 na Escola de Economia da Universidade do Chile e fez pós-graduação em Harvard, nos Estados Uunidos. Desempenhou importantes funções durante o governo do Presidente Salvador Allende (1970-1973) como ministro da Fazenda, presidente do Banco Central e ministro da Economia, práxis que consolidou sua ruptura com o planejamento normativo. Durante a ditadura chilena (1973-1990), foi preso e posteriormente se exilou na Venezuela, onde permaneceu até a sua morte, ocorrida em 1998. No campo da política e da gestão pública, é reconhecido como um dos mais importantes pensadores latino-americanos e um dos mais importantes do mundo em Ciências e Técnicas de Governo. Sem dúvidas, ele inovou a forma de governar e fazer política (Instituto Carlos Matus, 2020).

O economista foi um crítico do planejamento normativo e “[...] descortinou inovadora perspectiva teórica que tem repercutido fortemente nas práticas governamentais de diversos países latino-americanos” (Fortis, 2010: 4). Para tanto, estabeleceu uma ruptura epistemológica que se iniciou em fins da década de 1960 com relação ao chamado planejamento normativo, uma ruptura não apenas teórica, mas também prática, que se deu a partir da difusão de outra forma de governar na sua atuação como chefe da Divisão de Assessoria do Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social – ILPES e outras atuações ao longo do tempo (Fortis, 2010).

Assim, uma das maiores contribuições de Matus para o mundo político e governamental foi o Planejamento Estratégico Situacional (PES), uma teoria e um método de governo pensado para melhorar a capacidade de governo e a governabilidade dos dirigentes públicos, políticos e sociais, introduzindo o foco em problemas e criando capacidades para atuar em situações complexas e de elevada incerteza (Instituto Carlos Matus, 2020).

O PES “[...] conseguiu êxito ao superar o planejamento tradicional, ao ultrapassar os limites da esfera econômica para constituir-se em um planejamento para ação, ao ultrapassar também o espaço do mero planejamento, impondo gradualmente suas ferramentas como métodos de governo” (Matus, 2005: 35). Ele afirmou que o vigor do PES e seu contínuo enriquecimento dependem de desenvolvimento teórico mais profundo e de sua defesa contra as interpretações simplistas, mecânicas e amputações arbitrárias advindas de sua incompreensão (Matus, 2005).

A partir da Fundação Altadir, ainda na década de 1980, com sede em Caracas, na Venezuela, Matus difundiu o PES em vários outros países, entre os quais Colômbia, Equador e Brasil. Logo, é desde essa época que há uma receptividade das obras do autor no Brasil, sendo que sua maior difusão se deu, e ainda permanece, graças ao Instituto Carlos Matus, o qual atua há quase 30 anos no desenvolvimento e na aplicação das teorias, metodologias e ferramentas de direção e gestão estratégicas dentro do escopo das ciências e técnicas de governo. Entre as grandes obras
elaboradas pelo autor, destacamos a Teoria do Jogo Social, escrita nos últimos anos de sua vida, mas ele não chegou a publicá-la em vida. Pouco tempo depois de sua morte (1998), sua filha – Sol María Matus Mac-Niven – organizou as notas que compõem a obra e o manuscrito inalterado foi publicado nos anos 2000, originalmente em espanhol, traduzida para português e publicada em 2005 pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP) do Estado de São Paulo. Nessa obra,

ACUMULAÇÃO SOCIAL

Carlos Matus consolida um texto atualizado, os diversos espaços de construção intelectual desenvolvidos em suas obras anteriores. Aqui, a unificação temática converge para uma Teoria da Ação, elaborada a partir de duas propostas articuladas para explicar os processos de governo e de planejamento social: a Teoria das Situações e a Teoria das Estratégias Políticas
. Ambas se beneficiam com suas contribuições criativas e rigorosas, e se apresentam integradas em forma de uma Teoria do Jogo Social. A necessidade de tal teoria se acha presente em toda a sua produção anterior – ainda que não exposta com a extensão, a profundidade e o propósito unificador com o que faz nesse texto [...] (Zambrano, 2005: 9).

Logo, a Teoria do Jogo Social foi elaborada para preenchimento de uma lacuna teórica identificada por Matus ao longo de reflexões críticas no decorrer da sua trajetória política e intelectual, que, em linhas gerais, foi a necessidade de uma Teoria da Ação Social como moldura para o método de planejamento situacional. Em termos teóricos, o autor argumentou sobre a inseparabilidade dos aspectos políticos e econômicos e teve alguns princípios norteadores como: (i) a produção social como processo político; (ii) a Teoria das Organizações Públicas; (iii) a crítica da Teoria Econômica Tradicional; e (iv) os sistemas de informação para apoiar a prática do governo. Essas temáticas alcançaram diferentes níveis de desenvolvimento, mas todas se articulam e formam subespaços de uma Teoria do Jogo Social (ZAMBRANO, 2005). Desse modo, observa-se como sua formação como economista e sua atuação profissional contribuiu para a elaboração da Teoria da Produção Social, cuja base são os aspectos políticos que permeiam as relações sociais. Por isso, consideramos tratar-se de um aporte teórico capaz de elucidar a produção social que fundamenta os conflitos ambientais. Na seção seguinte, apresentamos os fundamentos dessa teoria.

A Teoria da Produção Social

Compreender que os conflitos ambientais emergem do choque entre diferentes formas ontológicas da relação sociedade(s)-natureza(s) requer uma teoria da ação social. Na Teoria do Jogo Social, Matus abre “[...] várias frentes de exploração, que vão da psiconeurobiologia à arte da guerra, dialoga com inúmeras correntes de pensamento, da fenomenologia ao marxismo, e debate com uma infinidade de pensadores, de Gramsci a Heidegeer, passando por Weber, Habermas”, entre outros. Desse modo, o autor “[...] consolida uma teoria da produção social alicerçada em uma potente teoria da ação humana e na teoria das situações” (Lima, 2010).

Para Costa e Goulart (2011), a teoria permite o entendimento de realidades sociais de uma forma processual, correspondendo a uma alternativa para análises estruturalistas da realidade. Em outras palavras, é uma teoria da ação com o foco em entender o processo de produção social envolvido nas relações entre os atores sociais. Já de início, é importante evidenciar que o processo de produção social é entendido como “[...] uma rede de práticas humanas históricas, por meio das quais os seres humanos, a partir do seu estado biológico, transformam-se em pessoas e atores, e a natureza em seu estado bruto transforma-se parcialmente em capital social.” Nesse processo, as pessoas e os atores são, ao mesmo tempo, produto e produtores e o que caracteriza esse processo é a “[...] transformação de recursos-fonte em objetos de uso, e do indivíduo, como ser biológico, em pessoa” (Matus, 2005: 275).

Como produtor social, a pessoa ou o ator cria produtos intelectuais, tais como linguagem, ciência, ideias, instituições etc. e transforma a natureza virgem em capital social. Como tal, os atores sociais são produtores coletivos de eventos sociais e, portanto, são os sujeitos da mudança situacional. Já como produto social, o ser humano é capaz de desenvolver uma conscientização crítica da realidade, mediante um processo social e político em que, na linguagem de Matus (2005), a pessoa transforma-se em um ator social que lidera outras pessoas e adquire capacidades que são produzidas socialmente. Logicamente, esse não é um processo mecânico e de tendência natural, mas envolve “[...] o uso de recursos econômicos e de poder, a aplicação de valores e de conhecimentos” (Matus, 1997: 109), além de requerer uma formação política engajada.

A produção social, por sua vez, é constituída por atores sociais dotados de imaginação e guiados por motivações pessoais e sociais, capazes de assumir condutas imprevisíveis, além de serem protagonistas refletidos e inovadores do processo de produção social. São eles os motores da mudança, aqueles que declaram as insatisfações, acumulam vontades, valores, preconceitos, ideologias, têm poder de mudança, rebelam-se contra o evitável e geram conflitos, lutam para mudar a realidade e governam no âmbito particular de seus domínios (Matus, 1996).

Nesse contexto, é importante ressaltar que “[...] o ator é participante de um jogo e um sujeito ativo que tem identidade” (Matus, 1996: 204) e pode ser “[...] uma personalidade, uma organização ou [um] agrupamento humano que, de forma estável ou transitória, tem capacidade de acumular força, desenvolver interesses e necessidades e atuar produzindo fatos na situação” (Matus, 1997: 570). Em ambos os casos, o ator social deve preencher os seguintes requisitos:

a) sua ação é criativa. Não segue leis. É singular e único como ente com sentidos de cognição, memória, motivações e força. É produtor e produto do sistema social;

b) tem um projeto que orienta sua ação, mesmo que seja inconsciente, errático ou parcial;

c) controla uma parte relevante do vetor de recursos críticos do jogo. Tem força e capacidade para acumular ou desacumular forças e, portanto, tem capacidade para produzir fatos no jogo social;

d) participa de um jogo parcial ou do grande jogo social. Não é um analista ou um simples observador;

e) tem organização estável, que lhe permite atuar com o peso de um coletivo razoavelmente coerente (ou, tratando-se da exceção aplicável a uma personalidade, tem presença forte e estável, o que lhe permite atrair, com suas ideias, uma coletividade social);

f) pode ser um ator-pessoa ou um ator-grupo, no caso de se tratar de um líder ou da direção de uma organização. É um jogador real que acumula perícia e emite julgamentos, não uma ficção analítica. É um produtor de atos de fala e de jogadas (Matus, 1996: 204).

Assim, com base nesses requisitos, Matus nos possibilita distinguir o ator social de outras categorias que se referem a grupos humanos, tal como a categoria de agente,
utilizada pela Teoria Econômica. Na Teoria da Produção Social, a ferramenta do ator social é a “ação na práxis”, sendo ele “capaz de produzir fatos políticos” que “constituem centros de acumulação e desacumulação de poder” (Matus, 1993: 25). Matus (1996) cita alguns exemplos de atores sociais, tais como: as forças sociais, os grupos de pressão organizados, sindicatos, associações de classe, órgãos de defesa regional, organizações religiosas, entre outros, os quais têm a capacidade de ação e peso coletivo no processo de produção social.

Matus (1997) tece uma analogia do processo de produção social com um jogo complexo, sendo este “[...] criativo e conflitante, tem regras e certas jogadas têm consequências predizíeis, mas muito difícil ou impossível predizer as próprias jogadas, pois elas correspondem às estratégias dos jogadores.” Em outras palavras, o jogo social é a arena onde ocorre a prática política, “[...] um meio conflituoso, competitivo e cooperativo entre os jogadores ou atores participantes” (Matus, 2005: 56). No desenvolvimento do jogo social, a realidade muda a cada momento e, a cada nova realidade, ocorre uma modificação da anterior (Matus, 1997), por isso o jogo social é “indeterminístico”, “[...] é aberto à criação de possibilidades pelo ator em situação”, compreendido por processos de final aberto, com delimitação apenas artificialmente pelo ser humano no tempo, caracterizado como uma abordagem processual (Matus, 2005: 13).

É importante destacar que “[...] cada ator avalia o jogo social de modo particular e atua segundo sua própria interpretação da realidade” (Huertas, 1996: 31-32), ou seja, para cada ator social, “[...] a realidade que habita é uma situação diferente” (Matus, 2005: 178, grifo no original). Nessa perspectiva, é importante ressaltar que o conceito de situação é central para Matus a fim de explicar a realidade, é uma alternativa ao diagnóstico tradicional
. A situação é uma apreciação do conjunto feita pelo ator em relação às ações que projeta produzir, apresenta-se como uma unidade da realidade, isto é, não se refere à totalidade de tudo, mas à totalidade relevante para a ação de um ator (Matus, 1997). Por isso, é importante definir quem explica a realidade e reconhecer que tal explicação é uma forma específica de compreendê-la em relação aos propósitos do ator e à sua situação dentro dela (Matus, 2005).

A situação é a explicação da realidade, elaborada por uma força social em função da sua ação e da sua luta com outras forças sociais. Ela refere-se ao ator da explicação, seus oponentes e aliados, suas ações, às ações de seus oponentes e aliados, assim como à realidade social construída no processo social. Essa realidade apresenta-se como dada num certo momento da formação social, mas é produto da luta constante por manter, reproduzir e transformar o sistema (Matus, 1997: 219).

É possível afirmar, portanto, que a realidade de determinado ator social jamais será igual à do outro, pois cada jogador explica a realidade por meio de uma lente particular, carregada por interesses, valores e preconceitos acumulados ao longo de sua vida, que podem ser reforçados ou atenuados na situação particular que o envolve (Matus, 1996). Em um dado contexto situacional, a distinção entre o “eu” e o “outro” significa tornar explícito o interlocutor que, em um cenário de conflito, pode ser o oponente. Desse modo, “[...] explicar a realidade em que se vive pressupõe, necessariamente, considerar o papel dos outros atores e penetrar suas explicações. Caso contrário, a explicação é incompleta, desligada de seu contexto situacional” (Matus, 2005: 184).

Nesse sentido, o processo de produção social se dá como um jogo social interativo, e os movimentos ou as jogadas são os meios utilizados pelos jogadores para alterar suas acumulações, da mesma maneira que os atores sociais alteram a situação através da ação humana. “Os jogadores são motivados por valores de acumulação, lucro, privilégio, etc. conflitantes, e sem os quais o jogo não teria dinâmica interativa. O mesmo ocorre no sistema social com as ideologias e [os] valores dos atores sociais” (Matus, 1997: 112). Embora haja as motivações supracitadas, os movimentos dos jogadores são regidos por regras fundamentais, que constituem as genoestruturas.

As genoestruturas oferecem características próprias e exclusivas a cada jogo, as quais o tornam “[...] diferenciável de qualquer outro jogo. Nelas se definem quem são os jogadores, seu número e suas capacidades de produção, ou seja, os movimentos ou [as] jogadas possíveis” (Matus, 1997: 112), isto é, proíbem e permitem, assim como inibem ou estimulam, as ações possíveis por parte dos jogadores. Desse modo, as genoestruturas são as regras fundamentais que regem o jogo, “[...] definem um espaço de variedade do possível, um espaço de potencialidades para a ação e seus resultados socialmente acumuláveis. A realidade, numa dada situação, está sempre dentro desse espaço” (Matus, 1997: 113). Matus (1997) afirma que deste espaço podem se conceber subespaços de problemas, com suas próprias regras, contudo tudo o que ocorrer nele é regido pelas regras, pelas acumulações e pelos fluxos pertinentes às regras macroconstitutivas do jogo social.

No jogo social as regras são de desigualdades, são imprecisas, nebulosas, às vezes são apenas regras de fato, e o próprio efeito das regras às vezes é ambíguo. Em todo caso, trata-se de um jogo com história, com continuidade, de modo que as vantagens conseguidas por alguns jogadores transferem-se para as regras que regem a continuação do jogo social. Por isso, as regras de fato, geralmente as mais importantes, são regras de desigualdade. Beneficiam a uns e prejudicam a outros. Naturalmente, os que se beneficiam com as regras vigentes defendem-nas com todas as forças (Matus, 2005: 305, grifos no original).

É importante ressaltar que as regras são um produto social, produzidas em um sistema competitivo entre sujeitos desiguais a regras que, por seu caráter histórico cumulativo, servem para regulamentar as vantagens adquiridas por uns em detrimento dos outros, por isso as regras do jogo são desiguais. Desse modo, “[...] no jogo social há dois tipos de jogadores: aqueles favorecidos por regras vantajosas, e aqueles prejudicados por regras desvantajosas” (Matus, 2005: 283), porém essa situação não é fixa, tanto que, a cada jogada, a realidade de jogo pode ser alterada, contudo é importante atentar-se para o fato de que o jogo só pode produzir o que é permitido por sua genoestrutura.

No jogo social, a capacidade que os jogadores possuem de produzir fatos sociais e, em seguida, convertê-los em acumulação corresponde a um processo chamado de “fenoestrutura social”. Os fatos sociais correspondem à produção humana, material ou imaterial, que podem alterar as capacidades de produção de um ator, por meio de suas acumulações, pela sua capacidade de produção de fatos políticos, econômicos, organizativos, cognitivos, etc., ou seja, são capazes de gerar fluxos de produção (Matus, 1997). Assim, os jogadores têm capacidade de produção, que “[...] primeiramente são fluxos de produção, e a seguir podem converter-se em acumulações. Se houver acumulação, elas constituem parte da fenoestrutura social” (Matus, 2005: 272).

Nesse contexto, é importante destacar que, além da fenoestrutura social, há também a fenoestrutura natural. De acordo com Matus (2005), esta última corresponde à natureza não tocada pelo ser humano, mas que produz fatos brutos como nevascas, chuvas, etc., cuja capacidade de produção está contida na fenoestrutura natural. Já a fenoestrutura social são as acumulações de fatos sociais que se fenoestruturam e geram os fluxos de produção (as jogadas). Todos os fluxos de produção provêm de capacidades acumuladas pelos atores sociais. Essas capacidades são as fenoestruturas, acumulações sociais que geram ou condicionam os fluxos de produção social (Matus, 1997). Os atores sociais, por sua vez, podem gerar acumulações que

[...] podem produzir mudanças nos fluxos de produção que alteram as fenoestruturas, e estas últimas podem abrir o caminho para a produção de fatos que alterem as genoestruturas. A estratégia consiste em percorrer uma cadeia de eventos, que começa pela produção de fatos situados dentro do espaço de nossas capacidades atuais e que têm como efeito sua ampliação (Matus, 1997: 121).

Desse modo, observamos que as fenoestruturas podem alterar as genoesturutras, ou seja, as regras fundamentais podem ser modificadas em função das acumulações que ocorrem entre os atores sociais a cada jogada. Em suma, “[...] as jogadas ou [os] movimentos dos jogadores são, em cada momento do jogo, a produção do sistema. Assim, o jogo tem regras fundamentais, acumulações e fluxos de produção” (Matus, 1997: 113), ou seja, o jogo social é constituído de genoestruturas, fenoestruturas e os fluxos de produção. É preciso mencionar que estes permitem aos jogadores acumular e desacumular recursos de poder, tais como: recursos econômicos, recursos políticos, valores, conhecimentos, recursos legais e recursos naturais incorporados, os quais podem aumentar, diminuir ou mudar de qualidade em função dos acertos no jogo social.

Nesse cenário, destacamos que as fenoestruturas (acumulações) e a produção (fluxos) existem ou se produzem constantemente dentro do espaço de produção do jogo social, enquanto as genoestruturas são as regras que determinam esse espaço, correspondem às regras básicas que regem o jogo social no processo de produção social (Matus, 1997). A Figura 1 apresenta, sumariamente, o circuito do processo da produção social.


Figura 1:

O processo de produção social

Fonte: MATUS (1997: 110).

Com base na Figura 1, podemos observar que o processo de produção social pode ser visto como um circuito em que toda produção realizada por atores sociais supõe o uso de recursos de poder, além da aplicação de valores e conhecimentos. Estes, por sua vez, podem ser revertidos ao ator social como acumulação social ou desacumulação de novos recursos de poder, possibilitando o surgimento de novos valores e a acumulação de novos conhecimentos. É importante ressaltar, conforme já mencionado, que “[...] as combinações imagináveis de todas as ocorrências possíveis de eventos estão dentro do espaço de variedade permitido pelas regras do jogo” (Matus, 1997: 117), ou seja, são determinadas pelas genoestruturas que podem sofrer alteração ao longo das jogadas no jogo social.

Matus (2005) afirma que as mudanças nas genoestruturas dependem do peso ou do poder econômico e político acumulado durante o jogo pelos jogadores interessados na sua transformação, visto que as “[...] genoestruturas são muito estáveis e suas alterações marcam as grandes mudanças” na realidade social. Desse modo, o processo de produção social produz quatro tipos de resultados:

(a) produtos-fluxos, que são fatos e objetos de uso, ou seja, coisas materiais ou imateriais, com funções atribuídas de uso terminal ou intermediário (bens, serviços, fatos, conceitos, símbolos etc.);

(b) produtos-acumulações, que são meios institucionais, de capital ou de produção, ou seja, acervos de capital social com a propriedade de produzir os fluxos (instituições, organizações, sistemas, equipamentos, máquinas, conhecimentos, valores, etc.); essas acumulações são constituídas através da fenoestruturação dos produtos-fluxos;

(c) atores e pessoas, que são fenoestruturas humanas, geradas por sua transição de
seres biológicos potencialmente sociáveis, até converter-se em atores sociais e pessoas, com um mundo interior rico, desigual e variado o ser humano [homem] como pessoa, ator e ser social, com seus atributos cognitivos, emocionais e de valores);

(d) regras, que são normas de constituição e convivência social, exigidas pela coordenação do processo de produção e do jogo social, normas essas que podem ser explícitas ou tácitas, constitutivas ou reguladoras etc. (Matus, 2005: 273, grifos no original).

Os resultados supracitados são produzidos não necessariamente em todo jogo social e na mesma proporção, dependem do contexto situacional e do que está em disputa entre os atores sociais, podendo ser jogadas conflitantes e/ou de cooperação e competição, além de que podem causar impactos nos diferentes campos e nas diferentes dimensões da realidade social. Esse processo é caracterizado por multidimensionalidades, tanto na esfera dos recursos aplicados no jogo quanto nos produtos obtidos pelos jogadores e nas consequências e nos resultados de tal processo. Logo, trata-se de uma rede de produção social complexa e indivisível, permeada por questões políticas (Matus, 1996).

Para análise das multidimensionalidades envolvidas no jogo social, é importante conhecer os atores sociais, seus interesses e suas motivações envolvidas na produção social. Evidentemente, esse não é um processo simples e fácil, contudo um olhar histórico sobre a trajetória dos atores envolvidos, observar a que grupo social pertencem e suas posições políticas podem oferecer pistas relevantes para os identificar, além de perceber suas possíveis ações no jogo social, embora essas possam mudar constantemente.

Como já mencionado, há jogadas que são de cooperação, em que os atores sociais entram em consenso e sua posição pode ser de apoio ou indiferente, porém há aquelas conflitantes, “[...] nas quais os jogadores que as promovem têm capacidade e motivação para vencer a oposição dos que resistem a elas” (Matus, 1996: 104). É impossível predizer o jogo do ator e antecipar suas jogadas, visto que suas ações são desenvolvidas ao longo do jogo social e envolvem valores, personalidade, capacidade de ação, etc. e eles têm a capacidade de se transformar a todo momento. Matus (2005) apresenta a Figura 2 que resume os vetores envolvidos no jogo social.

Figura 2: O jogo social


Fonte: Matus (2005: 287).

O jogo social envolve um conjunto de atores sociais (jogadores), cada um carregado sua fenoestrutura humana própria — pertencente ao mundo interior da personalidade (vetor de personalidade), tal como habilidades, criatividade, sagacidade, perseverança, etc. —, a qual é potenciada ou ponderada por aquilo que esses mesmos atores acumulam ou fenoestruturam em seu vetor de capacidade nas esferas econômica e política. Esses vetores, por sua vez, são capazes de orientar, direcionar ou motivar (vetor de motivação) objetivos que são estimulados ou filtrados pelo vetor de valores, produzido pelo próprio jogo social e interiorizado por cada ator. Desse modo, “[...] os jogadores produzem o jogo, e o jogo produz os jogadores (Matus, 2005: 287).

Nesse jogo, são desenvolvidos três tipos de relações, a saber: i) “do ser humano [homem] com a Natureza, em uma relação sujeito-objeto”, que dão origem à ação instrumental; ii) “do ser humano [homem] com outros seres humanos [homens], no processo de produção social, em uma relação entre sujeitos, como ocorre no jogo político, no econômico, no de comunicação e no organizacional”, que dão origem à ação social; iii) “do ser humano [homem] consigo mesmo, na criação de seu mundo interior e que abrange o mundo das ciências, o mundo dos valores e o mundo da formação da personalidade”, que geram a ação pessoal (Matus, 2005: 351, grifos no original). Dessa maneira, o jogo social combina a ação instrumental, a ação social e a ação pessoal no processo de produção social, em que o ator social se relaciona consigo, com a natureza e com os outros atores na construção da realidade.

A partir do que foi tratado sobre a Teoria da Produção Social, de Carlos Matus, é possível afirmar que ela permite a compreensão do jogo social envolvido nos conflitos ambientais, conforme será discutido na próxima seção.

A produção social envolvida nos conflitos ambientais

Como vimos, os conflitos ambientais são a materialização das contradições dos modelos de desenvolvimento, caracterizados como interações sociais que tendem a manifestar as tensões em torno dos padrões de apropriação do espaço pelos diferentes atores sociais (Acselrad, 2014). Por isso, cabe às ciências sociais compreender os conflitos ambientais, descrevendo-os, classificando-os, desvendando os significados e os interesses dos atores neles envolvidos e elucidando suas relações com as assimetrias estruturais da formação social em que ocorrem (Zhouri, 2014).

No contexto brasileiro, é observado um aumento da produção científica sobre o campo dos conflitos ambientais ao longo do tempo (Alonso; Costa, 2002; Acselrad, 2004; Zhouri, Laschefski; Pereira, 2005; Zhouri; Laschefski, 2010; Fleury, Barbosa; Sant’ana Jr., 2017; Barbosa; Fleury, 2020), o que demonstra uma consolidação desse campo de investigação. É pertinente mencionar que os estudos supracitados, em sua maioria, apresentam pesquisas empíricas de diferentes conflitos tencionados em diferentes regiões do país, porém ainda são escassos os estudos teóricos.

De modo geral, os estudos trazem à tona a problematização das relações de expropriação material e da violência simbólica decorrentes dos grandes projetos de desenvolvimento, envolvendo atores que mantêm uma relação harmoniosa com a natureza e, por outro lado, aqueles atores sociais hegemônicos que mantêm uma relação de apropriação do espaço para reprodução e acumulação do capital. Tais projetos são geradores de injustiças ambientais e, por conseguinte, da emergência dos conflitos ambientais que denunciam as contradições inerentes ao processo de desenvolvimento imposto no Brasil (Zhouri; Laschefski; Pereira, 2005; Gawora, 2014).

Nesse contexto, este ensaio teórico contribui para o campo ao proporcionar um avanço teórico a partir de uma abordagem capaz de oferecer uma análise processual de interações e disputas envolvidas nos conflitos ambientais. A proposta caminha ao encontro do que propõe Little (2006), quando afirma que, nos estudos em conflitos ambientais, é preciso explicitar os interesses em jogo dos atores sociais envolvidos seguidos por um mapeamento de possíveis interações sociais desses atores para compreender o conflito de forma holística. Atentamo-nos que, pela complexidade envolvida nos conflitos ambientais, nem sempre é possível obter esse mapeamento e uma visão holística, devido ao caráter imprevisível pertinente ao desenrolar das relações e ações dos atores em conflito.

Ademais, é fundamental lembrar que o jogo social apresenta características importantes, quais sejam: i) nele, não há começo nem término, de modo que apresenta final aberto; ii) os jogadores podem ser atores sociais ou espectadores; iii) os jogadores têm diferentes percepções dos problemas; iv) o jogo é recursivo e multidimensional, pois pode envolver “subjogos” menores que se processam em múltiplos planos; v) o jogo é difuso, não há como prever as jogadas e, por fim, vi) o jogo envolve recursos de poder compartilhado (Matus, 1997).

Assim, considerando o conflito ambiental não como movimento único e totalizante, mas com elementos operativos na dinâmica política, como categorias construídas e contestadas no âmbito de diversas práticas sociais, é importante reconhecer seu caráter político, sua natureza processual e histórica, conforme nos alertam Zhouri e Oliveira (2012). Logo, estudar os conflitos ambientais a partir dessa lente teórica é considerar que todos os atores sociais em processo de interação são dotados de recursos de poder, sendo capazes de influenciar no jogo social que, em uma jogada, podem ter uma posição favorável ao que se disputa, mas essa posição não é permanente, pois o jogo muda a cada momento. Evidentemente, tais recursos de poder se manifestam em um contexto social assimétrico e de fortes desigualdades de poder.

Desse modo, propomos uma nova forma de olhar tais conflitos, a partir de uma teoria cujo ponto de partida é o agir do ator social em situações de poder compartilhado. É fundamental destacar que a expressão “produção social”, tão importante na teoria de Matus, refere-se à coprodução, à interação. Não se refere a processos interpessoais, mas à relação entre ações. Essa teia de relações sociais que produz a realidade é, claramente, tecida ao longo da história (Pinto; Misoczky; Flores, 2017).

Por considerar o conflito ambiental um jogo de final aberto, resultante da tensão social envolvendo diversos atores sociais, com recursos de poder desiguais, que se enfrentam em busca da materialização das diferentes formas de se relacionar com a natureza, reelaboramos o processo de produção social apresentado na Figura 1 (ver na página 12), evidenciando uma reconfiguração analítica que melhor representa as dinâmicas constituídas nos conflitos ambientais. Chamamos atenção para a inserção da dimensão natural a fim de destacar as relações socionaturais que estão imbricadas em todos os processos, por isso trata-se de uma produção socionatural. A Figura 3 procura caracterizar tais relações.

Figura 3: Caracterização do processo de produção socionatural

Fonte: Elaborado pelos autores com base em Matus (1997).

Com base na Figura 3, apresentamos uma ilustração analítica de como os conflitos ambientais podem ser compreendidos à luz da Teoria da Produção Social. Eles são entendidos como um jogo aberto, complexo e nebuloso, envolvendo diferentes atores que, ontologicamente, diferem a forma de compreender a relação sociedade-natureza. Portanto, apontamos algumas contribuições da teoria para o estudo dos conflitos ambientais, a saber: i) a compreensão dos conflitos ambientais como um jogo interativo, compreendido por distintos atores sociais com perspectivas socionaturais diferentes; ii) o conflito ambiental como um jogo em constante movimento e situacional, de interações cooperativas e/ou competitivas entre os atores; iii) as relações socionaturais são regidas por regras desiguais e distintas que se chocam e podem mudar constantemente; iv) o desenrolar do conflito gera acumulações socionaturais importantes, capazes de retroalimentar o jogo, inclusive, de mudar as regras; v) a produção socionatural concebida pode apresentar diferentes dimensões, mas complementares entre si.

Para facilitar a compreensão e auxiliar o uso nas pesquisas empíricas, sintetizamos os conceitos principais da teoria. O ator social é um “jogador criativo, não submetido a condutas rotineiras e estáveis”, com objetivos no jogo, capaz de produzir jogadas, as quais são ações realizadas pelos atores com base nos recursos de poder disponíveis por eles. As acumulações, por sua vez, “indicam as capacidades de produção criadas na história do jogo”, podendo resultar em fatos sociais, e as regras do jogo “determinam o espaço de variedades possíveis” no jogo e guiam as ações dos atores. Por fim, a produção socionatural é o processo de produção resultante do jogo. Esta pode retroalimentar o jogo e mudar ao longo do tempo (Matus, 2005: 282).

Decerto, o desenvolvimento de pesquisas a partir da lente teórica ora discutida contribuirá para o avanço do debate teórico-empírico do campo dos conflitos ambientais por possibilitar uma compreensão da realidade sociopolítica de forma processual, ao contrário de análises estruturalistas da realidade.

Considerações finais

Ao contrário de uma visão funcionalista e estruturalista de conflitos ambientais, para a qual estes são tidos como apenas formas não harmoniosas da relação sociedade e natureza, é preciso problematizar o caráter político do conflito ambiental, que tenciona os modos hegemônicos pelos quais se distribuem as distintas formas sociais no espaço, expressos por meio das diferenças entre atores e projetos sociais em disputa. Desse modo, a incorporação da Teoria da Produção Social, de Carlos Matus, no processo analítico dos conflitos ambientais abre caminhos para abarcar um olhar mais amplo do emaranhado social envolvido no conflito, pois é capaz de identificar os atores sociais, suas ações e os recursos de poder que configuram os conflitos, permitindo ampliar o horizonte de análise.

Sendo assim, sabendo que os conflitos ambientais são eles próprios resultado de um processo de construção social multifacetado, mergulhado em um momento social e historicamente construído por atores sociais com relações de poder desiguais, consideramos que a compreensão do processo de produção social constitui um avanço teórico importante no campo dos conflitos ambientais, o que permite provocar reflexões e indagações formidáveis na compreensão das reconfigurações e novas relações que se constituem ao longo do jogo social envolvido no conflito.

Ademais, trata-se de um aporte teórico desenvolvido a partir das especificidades do contexto social e político latino-americano, mas pouco explorado dada a sua potencialidade. Isso indica um rico espaço de discussão e uso da teoria. Por isso, para estudos futuros, sugerimos a realização de pesquisas empíricas de conflitos ambientais emblemáticos no contexto brasileiro, como exemplo, aqueles decorrentes da implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte e do projeto da transposição do rio São Francisco, assim como em outros países latino-americanos, por exemplo, os conflitos decorrentes da mineração no Peru e na Argentina.

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