Papéis e desafios das cooperativas da agricultura familiar no processo de implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em cidades de Minas Gerais, Brasil

Isabela Renó Jorge Moreira, Alair Ferreira de Freitas, Alan Ferreira de Freitas, Renato César Cota Miranda y Almiro Alves Júnior

Resumo

Este estudo tem como objetivo compreender os desafios e os papéis assumidos pelas cooperativas e associações da agricultura familiar, nas redes de implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), em cinco municípios do estado de Minas Gerais: Belo Horizonte, Governador Valadares, Juiz de Fora, Montes Claros e Uberlândia. Para atender ao objetivo proposto, neste artigo, utiliza-se de uma abordagem qualitativa e caráter descritivo. O PNAE tornou-se, a partir da Lei n.º 11.947, de 2009, um dos principais mercados de acesso dos agricultores familiares e suas organizações coletivas (cooperativas, associações ou grupos informais). Nesse contexto, as organizações coletivas tornaram-se ferramentas essenciais que atuam em distintos âmbitos: na realização de articulações sociais e políticas, na negociação de preços e prazos de entrega, na participação em construção das Chamadas Públicas e na intermediação do processo de comercialização, pelo fato de realizarem as operações de compra e venda, representando um grupo de produtores no PNAE. No entanto, as organizações enfrentam desafios de diferentes naturezas, tanto para acessar como para ampliar o acesso ao programa, principalmente desafios organizacionais, institucionais e relacionais. Concluiu-se que, devido à importância das cooperativas e das associações nas redes de implementação da política pública, é necessário que o Estado brasileiro apoie tais ferramentas, por meio de articulações entre diversos atores envolvidos e de processos de planejamento e monitoramento da execução do PNAE e de fortalecimento do cooperativismo e do associativismo

Palavras-chave: Cooperativismo; Associativismo; Mercado institucional; PNAE; Agricultura familiar

Universidade Federal de Viçosa. Minas Gerais, Brasil. E-mail: isabela.moreira@ufv.br. ORCID: 0000-0002-3219-0078

E-mail: alair.freitas@ufv.br. ORCID: 0000-0001-6770-6030

E-mail: alanf.freitas@ufv.br. ORCID: 0000-0002-5952-2546

E-mail: almiroalves@gmail.com. ORCID: 0000-0002-7130-0735

Recibido: 12/02/2021 Aceptado: 25/04/2021

Roles and challenges of family farming cooperatives in the process of implementing the National School Feeding Program (PNAE) in cities in Minas Gerais, Brazil

Abstract

This study aims to understand the challenges and roles assumed by family farming cooperatives and associations in the implementation networks of the National School Feeding Program (PNAE) in five municipalities in the state of Minas Gerais: Belo Horizonte, Governador Valadares, Juiz de Fora, Montes Claros and Uberlândia. To meet the proposed objective, this article uses a qualitative approach and descriptive character. As of Law No. 11.947 of 2009, the PNAE became one of the main access markets for family farmers and their collective organizations (cooperatives, associations or informal groups). In this context, collective organizations have become essential tools that work in different areas: in carrying out social and political articulations, in negotiating prices and delivery terms, in participating in the construction of Public Tenders and in intermediating the commercialization process, by fact of carrying out the purchase and sale operations, representing a group of producers in the PNAE. However, organizations face challenges of different natures, both to access and to expand access to the program, especially organizational, institutional and relational challenges. It was concluded that, due to the importance of cooperatives and associations in public policy implementation networks, it is necessary for the Brazilian State to support such tools, through articulations between the various actors involved and through planning and monitoring processes for the execution of the PNAE and of strengthening cooperativism and associativism

Keywords: Cooperativism; Associativism; Institutional market; PNAE; Family farming.

Introdução

No Brasil, a pauta da alimentação escolar emergiu, no cenário político nacional, na década de 1940, com a criação do Instituto Nacional de Nutrição, que defendia a oferta de alimentação nas escolas. Na década de 1950, pela primeira vez no Brasil, foi elaborado o Plano Nacional de Alimentação e Nutrição, que se estruturava por meio de um Programa de alimentação escolar, em âmbito nacional, sob responsabilidade do poder público. Em 1979, foi criado o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que ficou conhecido popularmente como “merenda escolar”; e, em 1988, a Constituição Federal passou a considerar alimentação escolar um direito de crianças e adolescentes estudantes das escolas públicas (Peixinho, 2013; Silva, 2019).  

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma das políticas públicas mais antigas do país e, em 2009, com a institucionalização da Lei n.º 11.947, apresentou avanços significativos, como a incorporação da agricultura familiar como beneficiária desse Programa. Assim, tornou-se uma política pública de compra governamental de produtos da agricultura familiar, ao determinar que: do total de recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no âmbito do PNAE, no mínimo 30% deverão ser utilizados na aquisição de alimentos dos agricultores familiares e/ou de suas organizações (associações e cooperativas), via DAP Física ou Jurídica1.

Os programas de compras governamentais, como o PNAE, são apontados por Schmitt (2005), como um comprometimento no que se refere às políticas de fortalecimento da agricultura familiar, particularmente no que diz respeito à questão da comercialização, do abastecimento e da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Para a autora, o Estado passa a atuar no mercado de produtos agrícolas, não apenas como agente regulador de preços, mas também reforçando a autonomia dos agricultores familiares e fortalecendo sua posição perante poderosos agentes do mercado.

Para Saraiva et al. (2013) e Freitas (2017), os resultados do PNAE na agricultura familiar extrapolam a dimensão econômica, a geração de renda, e vão além da relação de compra e venda de produtos, ao fortalecer a posição dos agricultores familiares diante de outros agentes de mercado, impulsionando a autonomia desses atores. Esses resultados, também estão relacionados a benefícios socioprodutivos de diversificação das produções, de desenvolvimento rural sustentável e de aumento do poder de compra dos agricultores familiares.

Ainda que o acesso a esse mercado institucional apresente benefícios aos agricultores familiares – produtivos, econômicos, sociais –, não se pode deixar de explicitar os desafios enfrentados no acesso e no atendimento às demandas desse mercado institucional (Rozendo; Bastos & Molina, 2013; Mosmann et al., 2017). Para acessar o PNAE, muitos agricultores familiares têm se organizado coletivamente em formato de cooperativas e de associações, organizações que desempenham papel importante de articulação entre os agricultores e as entidades públicas receptoras dos alimentos (Costa; Amorim Junior & Silva, 2015; Freitas & Freitas, 2021).

Na visão de Cunha, Freitas e Salgado (2017), um dos objetivos do PNAE é estimular capacidades sociais para que as próprias organizações dos agricultores familiares sejam protagonistas de iniciativas sustentáveis. Esses empreendimentos econômicos coordenam as demandas do processo de comercialização e as relações institucionais com as prefeituras e demais entidades que compõem as redes de implementação da política pública. Nesse cenário, as cooperativas e as associações, ao integrarem diferentes famílias agricultoras, organizarem a produção e mediarem as transações comerciais, podem dinamizar o processo de venda e, teoricamente, garantir maiores volumes para os contratos de venda e regularidade na oferta de produtos. A partir dessas potencialidades, essas organizações podem acessar mercados mais exigentes e vultosos.

Apesar da importância das cooperativas e associações no mercado institucional, no campo científico, ainda é escassa a produção acadêmica que aprofunde nessa temática. Para Freitas (2017), o campo de estudos ainda carece de pesquisas que explicitem o papel das organizações coletivas no abastecimento do mercado institucional e desvelem os desafios que elas enfrentam para acessar esse mercado e serem protagonistas de políticas públicas, como o PNAE. Há uma grande demanda desse mercado por alimentos oriundos da agricultura familiar, mas pouco se sabe, com propriedade, sobre a dimensão desse acesso, especialmente em grandes centros urbanos, principais demandantes de alimentos; e, menos ainda, sobre os desafios e os papéis assumidos pelas cooperativas e associações.

A partir dessas constatações, questiona-se: (i) Como as cooperativas e associações da agricultura familiar contribuem para a aquisição de alimentos no âmbito do PNAE em municípios de médio e grande porte de Minas Gerais? (ii) Quais são os desafios enfrentados pelas cooperativas e associações da agricultura familiar para acessar e ampliar a participação nesse mercado? O objetivo deste estudo é compreender os desafios e os papéis assumidos pelas cooperativas e associações nas redes de implementação do PNAE em cinco municípios de diferentes regiões do estado de Minas Gerais: Belo Horizonte, Governador Valadares, Juiz de Fora, Montes Claros e Uberlândia.

Espera-se com este artigo contribuir para a ampliação do conhecimento a respeito dos papéis assumidos e dos desafios enfrentados pelas organizações da agricultura familiar no acesso ao PNAE. Dessa forma, busca-se dar visibilidade à participação das organizações na implementação do Programa, não pela ótica normativa, mas pela análise do fenômeno, a partir da percepção dos atores locais que executam e participam da política pública.

Referencial teórico

Para compreender o acesso da agricultura familiar no PNAE é preciso entender, primeiramente, a conceituação de mercados e, posteriormente, analisar os mercados acessados pela agricultura familiar brasileira, aprofundando discussões do PNAE como um mercado preponderante para os agricultores familiares e para seus empreendimentos cooperativos e associativos.

1. Mercados e agricultura familiar

Sociologicamente é possível definir “mercados” como construções sociais que se estruturam a partir das interações sociais de diferentes agentes. Para Nierdele (2016), os mercados são campos sociais concretos, espaços de trocas, norteados pelas estruturas institucionais subjacentes às ordens morais que legitimam as transações econômicas. Para este autor os mercados são campos regulados pelo Estado, que institucionaliza leis, normativas de cunho formal e informal, e pelos entendimentos culturais, que regem as interações entre diversos atores sociais que compõem os mercados: clientes, fornecedores e compradores.

Granovetter (2005) acredita que o ângulo de interpretação dos mercados passa a ser relacional, pois não negligencia as identidades e as relações entre os indivíduos negociantes. A concepção de Bourdieu (2005) é similar; para ele, o conjunto de elementos que a economia ortodoxa aponta como “dado legítimo” (oferta, demanda, mercado) não passa de construções sociais, além de avocar o elemento histórico, o enraizamento no passado, como artefato essencial do mercado. Assim, “as estratégias econômicas são, na maioria das vezes, integradas num sistema complexo de estratégias de reprodução, estando, portanto, plenas da história de tudo ao que visam perpetuar” (Bourdieu, 2005: 18).

Polanyi (1980) entende que a esfera econômica é o grande diferencial entre as sociedades “civilizadas” e as “não-civilizadas”. No entanto, para o autor, em todas as sociedades, os sistemas econômicos são motivados por ações não econômicas, ou seja, o que movimenta os mercados são os aspectos sociais, uma vez que os indivíduos valorizam os bens materiais conforme lhes equivalham aos seus propósitos. Nesse sentido, a “imersão”, no sentido de “enraizamento” (embeddedness), abordagem sociológica para análise dos fenômenos econômicos, torna-se um conceito fundamental para compreensão dos mercados.

No Brasil, é possível promover uma importante discussão sobre os mercados existentes para a agricultura familiar. Estudos, como Maluf (2004), relatam a importância dos agricultores familiares2 para o abastecimento alimentar do país, especialmente nos circuitos regionais de produção, de comercialização e de consumo para atender mercados locais e regionais (Maluf, 2004). Além disso, ressalta-se a importância da inserção da agricultura familiar nos mercados, principalmente na comercialização dos seus produtos (output), visando a sua sobrevivência e de suas comunidades (Schneider, 2016).

Devido à importância de refletir a inserção dos agricultores familiares nos mercados, torna-se essencial as reflexões promovidas por Wilkinson (2008). Esse autor categoriza algumas das principais formas de acesso dos agricultores familiares a mercados: (i) acesso direto a mercados privados; (ii) acesso a mercados privados por meio de atravessador; (iii) acesso por meio de adesão a regimes de integração à indústria; e (iv) acesso direto a mercados institucionais/compras pelo poder público (Wilkinson, 2008). Nesses casos, as cooperativas, associações ou outras formas de organização coletiva dos próprios agricultores também são classificadas como acesso direto, já que são organizações autogeridas e eles mantêm o vínculo com os agentes do mercado.

Wilkinson (2008) destaca que o acesso direto aos mercados vem se tornando restrito e limitado devido ao alto nível de exigências formais de inspeção da qualidade dos produtos. Quanto à figura do atravessador, sua existência se mantém, apesar de ter perdido espaço. A integração à agroindústria permanece como alternativa, no entanto, exige-se produção em escala e alto padrão de qualidade. Já as compras pelo poder público configuram-se como novas possibilidades de acesso aos mercados.

Pode-se inferir que, nos mercados convencionais, artesanais e solidários, as normas são difundidas por contratos e preços ou por relações de confiança e de proximidade; enquanto, no mercado institucional, os agricultores familiares passam a conviver com legislações específicas. Assim, cria-se condições de inserção da produção familiar no mercado institucional, proporcionando uma oportunidade de aumento da renda dos agricultores familiares, apesar de algumas limitações de acesso (Triches & Grisa, 2015; Schneider, 2016).

No Brasil, os mercados institucionais foram construídos mediante políticas públicas, resultantes de lutas de uma longa trajetória, e conquistaram um olhar mais robusto, a partir da década de 1990, ocupando, gradualmente, espaço nas discussões voltadas para as políticas públicas no país. Esse fenômeno foi impulsionado por meio de lutas protagonizadas por movimentos sociais e sindicais. A pressão proporcionada por essas ações sociais culminou em ações governamentais com foco na categoria social agricultor familiar. O desenvolvimento rural é instituído a partir de políticas públicas, que trazem influências sociais, econômicas e ambientais, além de aumento na renda e melhoria da qualidade de vida para o meio rural (Grisa & Schneider, 2014).

Segundo Schneider (2016), os mercados públicos e institucionais são altamente controlados por mecanismos ordenadores formais (leis, decretos, regras e ferramentas de controle das compras). Na visão do autor, nesses mercados públicos e institucionais, os dispositivos de regulação são totalmente contratuais, cuja fonte de institucionalização é formalizada e definem melhores meios de controle e rastreabilidade dos recursos públicos.

Dentre as políticas públicas criadas estão o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) - como programas definidos por legislações específicas. Ambos são políticas públicas de compra governamental de alimentos, especialmente voltadas para a agricultura familiar, que emergiram a partir dos anos 2000. São mercados institucionais de alimentos, nos quais o próprio Estado constrói as demandas dos produtos, orienta e controla todo o processo de compra. Na perspectiva de Nierdele (2016: 107), “Enquanto alguns mercados legitimam-se em valores que sustentam as ações dos atores dominantes no sistema agroalimentar, outros abrem a possibilidade de inclusão de atores, produtos e qualidades diferenciados”.

A participação de agricultores familiares em mercados diversos, com destaque para o mercado institucional, implica maior organização coletiva, quantidade e qualidade dos produtos ofertados, além da valorização de hábitos alimentares locais e do aumento de renda e qualidade de vida no meio rural. Nesse sentido, o acesso ao mercado institucional, apesar de complexo, pode oferecer oportunidades e benefícios para toda a comunidade. Assim, ganha maior relevância a união dos agricultores familiares, por intermédio de organizações jurídicas, em formato de associação ou cooperativa, viabilizando as atividades de produção e comercialização.

2. Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE): cooperativismo e associativismo na agricultura familiar

A criação de uma cooperativa, de produção, consumo, crédito ou agropecuária, deve ter como objetivo principal atender às necessidades dos cooperados, não possuindo finalidade lucrativa. Assim, a diferenciação entre as corporações e as cooperativas, essencialmente, está na motivação, pois, enquanto nas corporações visa-se maximizar o retorno do investimento, beneficiando seus acionistas, nas cooperativas a eficiência é medida de acordo com os serviços e benefícios auferidos pelos associados, abrangendo vantagens competitivas, sociais ou financeiras (Dobrohoczki, 2006).

As cooperativas são organizações fundamentadas na autogestão, na livre associação de pessoas e na distribuição equitativa dos resultados econômicos. Valadares (2016) caracteriza as cooperativas como um sistema complexo orientado por metas individuais, organizacionais e institucionais, tornando-se empreendimentos responsáveis por realizar intermediações mercadológicas. Para Pinho (1982), esses empreendimentos têm se tornado lugares onde os cooperados realizam suas atividades econômicas com mais eficácia, atendendo os mercados em maiores proporções.

Namorado (2005) acredita que a cooperação emerge de uma necessidade e, consequentemente, as cooperativas tornam-se úteis aos indivíduos ou grupos que, dificilmente, acessariam individualmente os mercados em grandes proporções, ou não seriam eficientes de modo a competir com as empresas. Contudo, existe a dualidade das diferentes relações exercidas entre as cooperativas com o mercado e as cooperativas com os seus cooperados. É uma dicotomia comportamental e cultural, que valoriza a doutrina, mas, ao mesmo tempo, precisa ser pragmática, não deixando de lado o seu cunho prático (Rodrigues, 1995).

Nesse sentido, o movimento representa um sistema de organização socioeconômica fundamentado nos princípios da adesão livre e voluntária, da gestão democrática e solidária, da participação responsável, da limitação de quotas-partes do capital de cada associado, da distribuição equitativa dos resultados, da confiabilidade e da transparência (Bertuol; Cançado & Souza, 2012). Portanto, é um modelo socioeconômico, fundamentado na participação democrática, na independência, na solidariedade e na autonomia dos que se unem de forma voluntária em prol de um objetivo econômico e social comum, e visto como uma ramificação dos amplos movimentos de lutas pelos interesses das classes trabalhadoras (Chayanov, 2017).

O cooperativismo, apesar de ser um modelo de atividade existente há mais de um século, tornou-se algo novo para muitos agricultores familiares que demandavam por políticas públicas em seu auxílio, mas que apresentavam, atreladas aos benefícios, dificuldades para ingresso. As cooperativas tornaram-se uma alternativa vantajosa para os agricultores familiares, propiciando-lhes sua inserção nos mercados locais, regionais e nacionais3, ampliando a possibilidade de enfrentamento da concorrência de outros segmentos empresariais (Valentinov, 2007; Chayanov, 2017).

Na agricultura familiar, o cooperativismo apresenta-se como uma alternativa de acesso a mercados a parcelas significativas de agricultores (Frantz, 2012). A partir das reflexões de Frantz (2012), é pertinente reconhecer que o cooperativismo se apresenta como instrumento de representação, organização e fortalecimento da agricultura familiar. Isso se deve tanto pela contribuição para avanços nos níveis de produção, agregação de valor, eliminação de intermediários e potencialização das economias locais, quanto pela mediação nas relações entre o agricultor familiar e as políticas públicas de compra governamental de alimentos. Santos, Campos e Ferreira (2017) compactuam com essa visão:

Observa-se a relevância do papel desempenhado pelo cooperativismo para fortalecimento da agricultura familiar, pois além de representarem uma forma de organização da produção, agregação de valor, eliminação de intermediários e potencialização das economias locais, as cooperativas passam a atuar como mediadoras entre a produção da agricultura familiar e as políticas públicas de compra institucional. (Santos; Campos & Ferreira, 2017: 223)

As cooperativas tornaram-se empreendimentos que surgiram em resposta às dificuldades encontradas nas propriedades familiares, principalmente no tocante ao alcance de escala e agregação de valor, ao baixo poder de mercado e ao descumprimento da hierarquia organizacional nas propriedades familiares, que afeta o controle e o monitoramento da produção agrícola (Valentinov, 2007).

Segundo Silva e Schultz (2017), para uma parcela considerável dos agricultores familiares, as experiências de organização coletiva são importantes na defesa dos interesses dos agricultores e das comunidades, e para muitos deles é o único caminho para o escoamento da produção. Parte dessas cooperativas trabalha na oferta de hortifrútis de boa aceitação nos mercados e, em alguns casos, beneficia produtos dos agricultores familiares com a finalidade de agregar valor e de aumentar a durabilidade dos alimentos (Silva & Schultz, 2017).

No Brasil, um marco importante para as cooperativas e associações da agricultura familiar nos mercados de oferta ocorreu com a institucionalização do PNAE, pois passou a ser obrigatório que as Entidades Executoras (EExs) comprem da agricultura familiar e de suas organizações coletivas. O ponto essencial para que os agricultores possam participar efetivamente desse mercado, individualmente ou por meio das cooperativas e associações, é que a legislação vigente dispensa o procedimento licitatório, “desde que os preços sejam compatíveis com os vigentes no mercado local [...] e os alimentos atendam às exigências do controle de qualidade estabelecidas pelas normas que regulamentam a matéria” (Brasil, 2009, art. 14).

Para participar desse mercado institucional, via Chamada Pública, o agricultor deve possuir a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) e seus produtos, se processados, precisam estar legalizados conforme as exigências sanitárias. Além disso, as organizações coletivas precisam estar com todas as documentações atualizadas. A Resolução do FNDE, n.º 26 de 2013, traz novos elementos às discussões sobre as compras da agricultura familiar para o PNAE.

O artigo 30 desta Resolução autoriza as EExs, que recebem setecentos mil reais por ano, a comprarem apenas de organizações com DAP Jurídica. Além disso, estimula o associativismo e o cooperativismo na agricultura familiar quando expõe, no artigo 25, sobre as regras para desempate das propostas de vendas. Quando houver empate, os grupos formais (organizações produtivas detentoras de DAP Jurídica) são prioritários em detrimento de grupos informais (agricultores familiares, detentores de Declaração de Aptidão ao PRONAF DAP Física) e dos fornecedores individuais.

Art. 25 Para priorização das propostas, deverá ser observada a seguinte ordem para desempate:

I – os fornecedores locais do município;

II – os assentamentos de reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas;

III – os fornecedores de gêneros alimentícios certificados como orgânicos ou agroecológicos, segundo a Lei nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003;

IV – os Grupos Formais (organizações produtivas detentoras de Declaração de Aptidão ao PRONAF – DAP Jurídica) sobre os Grupos Informais (agricultores familiares, detentores de Declaração de Aptidão ao PRONAF – DAP Física, organizados em grupos) e estes sobre os Fornecedores Individuais; e

V – organizações com maior porcentagem de agricultores familiares e/ou empreendedores familiares rurais no seu quadro de sócios, conforme DAP Jurídica. (Brasil, 2013, art. 25)

Nesse sentido, a organização dos agricultores familiares, especialmente em cooperativas, viabiliza a inserção no mercado institucional, auxilia na garantia de sua sobrevivência pela geração de renda e propicia ganhos coletivos por meio da ampliação dos mercados. É possível afirmar que os mercados institucionais de compra de alimentos e o cooperativismo e associativismo, portanto, são temas que há algum tempo caminham alinhados na perspectiva de fortalecimento da agricultura familiar.

No PNAE, para Freitas e Freitas (2021), as associações e as cooperativas têm papel importante pela atuação como elo estruturador, sendo articuladoras econômicas e realizando a mediação entre produtores e compradores, o que reduz o tamanho e horizontaliza as cadeias produtivas de alimentos. Além disso, segundo os autores, elas representam os seus associados nas redes de implementação da política pública, interagindo com outros atores sociais, como entidades de ATER, prefeituras, ONGs, sindicatos e representantes das escolas.

No entanto, ainda que haja amparo legal que estimule a criação e o desenvolvimento das cooperativas da agricultura familiar para acesso a esse mercado, existem desafios e obstáculos que podem interferir na evolução dessas organizações. As cooperativas ainda enfrentam barreiras organizacionais, são carentes quanto à assistência técnica para otimizar a produção e atender a maiores demandas dos municípios; não conseguem se adequar às normas sanitárias; encontram empecilhos para realizar a gestão econômica, financeira e estratégica da organização, principalmente na definição dos preços de venda; e possuem desafios com a logística, relacionados à entrega dos produtos por parte dos produtores, bem como da entrega dos alimentos processados ou beneficiados (Costa; Amorim Junior & Silva, 2015; Freitas, 2017; Santos; Campos & Ferreira, 2017).

Silva e Schultz (2017) acrescentam que os desafios enfrentados pelas cooperativas da agricultura familiar englobam aspectos comerciais, mas também estruturais, produtivos, de participação social e econômica dos cooperados, organizacionais e administrativos, que, se não superados, dificultam ou impossibilitam alcançar ou sobreviver em quaisquer tipos de mercado. Para Marques et al. (2014), os desafios no PNAE não estão diretamente relacionados à entrada nesse mercado, mas, sim, nas maneiras de se manter nele.

As dificuldades variam de acordo com as realidades vivenciadas em cada contexto - histórico, econômico, social, territorial e produtivo. Evidentemente, os desafios são específicos e a intensidade depende de uma série de aspectos, tais como: contexto histórico e institucional, nos quais as organizações estão inseridas; tipo de produção dos cooperados; tamanho da cooperativa; envolvimento dos cooperados e membros da diretoria; disponibilidade de recursos financeiros; e envolvimento e articulação com outros atores sociais.

Procedimentos metodológicos

Neste estudo, optou-se pela pesquisa qualitativa de abordagem descritiva. Yin (2016) aponta que as principais características da pesquisa qualitativa são: (i) estudar os significados da vida real; (ii) apresentar a opinião dos participantes da pesquisa; (iii) abordar e compreender as condições contextuais; (iv) robustecer a pesquisa com a utilização de diferentes fontes de evidências; e (v) utilizar de conceitos que auxiliam a compreensão do comportamento social estudado.  Ademais, é um estudo descritivo, visto que se busca aprofundar em detalhes, nas condicionantes e nas finalidades de um acontecimento social (Deslauriers & Kérisit, 2008).

Para atender ao objetivo proposto, foram selecionados cinco municípios do estado de Minas Gerais. Esse estado tem destaque por ser formado por 853 municípios, maior número dentre os estados brasileiros, com características regionais distintas. O estado possui mais de três milhões de estudantes matriculados e movimentou, em 2017, cerca de R$ 373,43 milhões com alimentação escolar, dos quais R$ 55 milhões foram adquiridos da agricultura familiar. Apesar de ser o segundo estado a receber os maiores montantes financeiros pelo FNDE, as compras da agricultura familiar não ultrapassaram 14,7% do total repassado no ano de 2017 (FNDE, 2018).

Os municípios mineiros selecionados para compor a pesquisa foram: Belo Horizonte, Governador Valadares, Juiz de Fora, Montes Claros e Uberlândia. A justificativa por essas opções pauta-se no fato de serem municípios de médio e grande porte, com elevado número de estudantes matriculados nas escolas municipais4, com porções territoriais rurais, restritas ou ausentes, e baixa proporção de população rural, especialmente de famílias agricultoras que comercializam seus produtos para o PNAE. O conjunto desses desafios faz com que o estudo acerca da atuação das associações e cooperativas que acessam o Programa no âmbito local seja importante e relevante (Costa; Amorim Junior & Silva, 2015).

Além das questões apresentadas, são municípios que representam a diversidade existente no estado de Minas Gerais, pois pertencem a mesorregiões distintas – Metropolitana de Belo Horizonte, Vale do Rio Doce, Zona da Mata, Norte de Minas e Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba , com características que particularizam cada um deles. Nessas regiões, são considerados municípios-polo, ou seja, subsidiam infraestrutura e acesso a serviços públicos e privados importantes que são inexistentes ou ineficientes em muitos municípios de pequeno porte limítrofes (IBGE, 2018).

Por envolver a análise de aspectos da execução do PNAE em mais de um município, esta pesquisa também se caracteriza como um estudo de casos múltiplos. A proposta de estudar casos múltiplos possibilita a comparação dos casos, tornando o trabalho científico mais robusto (Yin, 2005). Além de apresentar diferentes visões entre os indivíduos/municípios estudados, sendo um dos principais benefícios desse formato de estudo, possibilita comparar as percepções de distintos atores envolvidos e as diversas realidades em uma mesma pesquisa.

A entrevista foi o principal instrumento de coleta de dados secundários selecionado para este estudo, guiada por dois roteiros prévios de perguntas, sendo um aplicado aos gestores públicos e outro aos representantes das associações e das cooperativas. As entrevistas são classificadas, geralmente, em três formatos: estruturadas, semiestruturadas e abertas. Nesta pesquisa, utilizou-se entrevistas semiestruturadas. Para a realização das entrevistas, foram elaborados roteiros, incluindo questões principais e específicas, mas os entrevistadores tiveram liberdade para incluir novos questionamentos no decorrer das entrevistas.

Durante o período de agosto de 2019 a fevereiro de 2020, foram entrevistadas, in loco, 16 pessoas: quatro gestores públicos municipais e doze representantes das organizações econômicas da agricultura familiar. Em consonância com as diretrizes do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aplicado aos entrevistados, será assegurado o anonimato aos respondentes. Para identificá-los ao longo do texto, utilizou-se codificações, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1. Identificação dos entrevistados

Município

Representantes da Administração Pública

Representantes das cooperativas/associações

Belo Horizonte

-

Cooperativas C1 e C2

Governador Valadares

Gestor 1 (G1)

Associações A3, A4, A5

Juiz de Fora

Gestor 2 (G2)

Cooperativa C12

Montes Claros

Gestora 3 (G3)

Cooperativas C6, C7, C8

Uberlândia

Gestor 4 (G4)

Cooperativas C9, C10, C11

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Em Belo Horizonte, devido à indisponibilidade dos gestores públicos, não foi possível a realização da entrevista. Os dados analisados nesse município são resultantes de análise dos documentos disponibilizados pela prefeitura, dos dados disponibilizados pelas cooperativas e da observação participante em três reuniões com presença de representantes da prefeitura de Belo Horizonte5.

Ao todo, foram entrevistadas seis mulheres representantes das cooperativas e associações entrevistadas, sendo: três ocupantes do cargo de presidente, duas funcionárias do setor administrativo da cooperativa e uma cooperada agricultora familiar. Foram entrevistados também seis homens, sendo: um agricultor familiar e funcionário de cooperativa e, os demais, presidentes dos empreendimentos. Com relação às entrevistas aos gestores públicos, foram entrevistados: uma mulher e três homens, ocupantes de cargos de diretoria, secretária municipal e coordenador do PNAE6.

As questões discutidas nas entrevistas com representantes das organizações possibilitaram a obtenção de informações sobre o funcionamento das cooperativas e suas parcerias, explicitando o papel dessas organizações na implementação do PNAE. A partir da transcrição literal das entrevistas, foi possível agrupá-las para posterior análise e organização dos conteúdos.

Optou-se pela Análise de Conteúdo, que é composta por um “conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção destas mensagens” (Bardin, 2011: 47).

Resultados e discussões

O acesso ao PNAE pode apresentar uma série de vantagens para as cooperativas da agricultura familiar, como já foi apontado em estudo dos autores Santos, Campos e Ferreira (2017), que relataram os pontos positivos de acesso ao PNAE: estímulo ao consumo de produtos saudáveis, promoção do desenvolvimento local por gerar emprego e renda, estímulo à agregação de valor, fortalecimento da agricultura familiar e garantia de venda.

A geração de renda aos cooperados é um dos principais benefícios apontados pelas cooperativas que acessam o PNAE nos municípios de Belo Horizonte, Juiz de Fora, Montes Claros e Uberlândia. Consequentemente, há uma melhoria na qualidade de vida, como aponta a entrevistada da Cooperativa 10. Para ela, o acesso ao PNAE aumentou, consideravelmente, a qualidade de vida dos cooperados, que mensalmente recebem R$ 3.300, aproximadamente, por comercializarem nesse mercado.

Essa melhoria na qualidade de vida traz, como consequência, a valorização do trabalho dos agricultores familiares, aumentando a possibilidade de sua permanência no meio rural. Assim, o Programa contribui para a melhoria da qualidade de vida ao criar oportunidades de ampliar o consumo das famílias e o acesso a serviços, e pode, ainda, colaborar para a diminuição do êxodo rural. Na visão da entrevistada da A3, o PNAE “segura as famílias no meio rural” e “faz a gente acreditar que vale a pena viver no campo” (Entrevistada da Associação 3, 2019). Ademais, para a entrevistada representante da C1, com a geração de emprego e renda, os agricultores familiares têm demonstrado mais interesse em permanecer no meio rural para fomentar a agricultura familiar.

Apesar do consenso, em todos os municípios, da importância do PNAE para geração de trabalho e de renda no campo, cada município possui uma realidade de implementação. Em âmbito local, a operacionalização do PNAE apresenta diversas particularidades que modelam e condicionam a política pública. Por isso, pode-se dizer que as organizações da agricultura familiar encontram distintos papéis e desafios, a depender das condições encontradas em cada município.

1. Papéis das cooperativas e associações na execução do PNAE

As cooperativas e as associações assumem formas de integração diferentes de um município para o outro, o que também particulariza a influência que elas têm sobre o PNAE e se torna um fator determinante para ampliar ou para constranger o acesso ao Programa e seu impacto no mercado institucional.

Pode-se definir formas de atuação das cooperativas e das associações da agricultura familiar na implementação do PNAE, na organização produtiva, na articulação social e política e na articulação comercial. As organizações atuam como pontes das redes de implementação, agentes mediadores na política pública. As pontes têm papel de realizar intermediação comunicativa, construir novas alianças, coordenar atividades e elaborar propostas conjuntas de ações (Lotta, 2010).

Conforme apontado na Figura 1, as organizações atuam em distintos aspectos: na articulação social e política, principalmente pelo seu papel de levar as demandas e as reivindicações dos agricultores familiares até às prefeituras; nas negociações de preços e prazos de entrega; na participação de construção das Chamadas Públicas; e na mediação comercial, pelo fato de realizarem as operações de compra e venda, representando um grupo de produtores no PNAE.

Figura 1- Papéis das cooperativas e associações da agricultura familiar na implementação do PNAE

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Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

É importante ressaltar que organizações podem assumir mais de um papel, a depender: de como elas estão posicionadas na rede de implementação do PNAE; de como essa rede de implementação está estruturada nos municípios; da capacidade organizativa; e da infraestrutura disponibilizada pelas organizações. Esses papéis desempenhados pelas organizações no mercado institucional, nos respectivos municípios, são aprofundados nos quatro tópicos, a seguir.

Os entrevistados das cooperativas C1, C2, C7, C8 e C9 acreditam que o papel desempenhado pelos empreendimentos da agricultura familiar na execução do PNAE é, também, de fiscalização dos produtos que são entregues, especialmente, devido à responsabilidade de entregar alimentos com a qualidade exigida, visto que o descumprimento desse requisito pode gerar punições para as organizações. Dessa forma, os diretores e os colaboradores temem as coerções às quais estão sujeitos, caso descumpram as exigências das especificações de qualidade e de segurança, conforme estabelecido nas Chamadas Públicas.

        O entrevistado G4 concorda que a fiscalização realizada pelas cooperativas é essencial para a execução do PNAE, já que a Prefeitura dificilmente consegue acompanhar todos os agricultores familiares individualmente, havendo assim, no município de Uberlândia, o estímulo informal de adquirir apenas produtos das cooperativas do município para a alimentação escolar.

Tem hora que o produtor tem que ser exigido pela cooperativa porque se ele não está entregando, não está no nome dele o contrato do PNAE, está no nome da cooperativa [...] quem tem que cobrar dele, é a diretoria da cooperativa [...] A gente liga é para a cooperativa e não para o produtor. (Entrevistado G4, 2019) 

A representante da C10 de Uberlândia, compactua com a visão do gestor municipal. A entrevistada relata a importância das cooperativas em monitorar os produtos antes de enviar para o centro de distribuição do município, como forma de rastrear os produtos e de enviar às escolas apenas os alimentos com padrão de qualidade. Ademais, os agricultores entregam seus produtos nas cooperativas em caixas identificadas, e os funcionários da cooperativa conferem as caixas para análise da qualidade.

Essa questão é apresentada como uma das vantagens em adquirir produtos das cooperativas e das associações, pois o contato e a responsabilização são destinados às entidades e seus representantes legais, facilitando o diálogo e a resolução de eventuais problemas. O próprio agricultor familiar, na maioria das vezes, tem contato com poucos ou nenhum outro ator social importante da execução do PNAE. Assim como já observado por Cruz e Assis (2019), os processos de vendas são controlados, especificamente, pelas cooperativas e não pelos agricultores familiares de maneira individualizada.

Além das atribuições mencionadas, as cooperativas têm contribuído para o planejamento da produção, com foco na diversificação e no aumento da produção familiar para atender ao PNAE, bem como a transição para sistemas produtivos orgânicos e agroecológicos. Para a entrevistada da C1, o PNAE foi importante no âmbito da diversificação dos produtos, pois os funcionários da cooperativa interpretam que mais importante do que produzir, é saber que a produção será aceita por um mercado específico, conforme apresentado no relato a seguir.

(...) a gente tem agricultor que era voltado a plantar somente jiló, beringela e chuchu na época. Hoje ele planta cebola, cenoura, maracujá e outros. Ele fala que nem quer voltar a esse outro cultivo, é muito prazeroso porque a gente vê o agricultor satisfeito com que a gente está incentivando [...]. Hoje a gente tem polpa, corante, tem tempero, tem o docinho de banana, doce de goiaba, de acordo que a gente vê que tem possibilidade de venda e vai ajudar o agricultor. E a gente tem procurado mais produtos processados (Entrevistada da C1, 2020). 

O entrevistado da C11 concorda com esta visão, afirmando que a cooperativa precisa assumir o papel de estimular a produção de novas culturas para atender às oportunidades oferecidas pelo Programa. Para o entrevistado da C8, devido ao aumento significativo da demanda para o PNAE, a cooperativa iniciou o trabalho de incentivo à produção de folhosas e de frutas. Já na cooperativa C2, houve o incentivo para aumentar o volume das produções, visto que os cooperados estavam acostumados a plantar para o consumo, mas precisavam, nesse novo contexto, plantar para comercialização. 

Com relação ao estímulo das organizações à transição para sistemas produtivos orgânicos e agroecológicos, na cooperativa C10, a assistência técnica é realizada por um engenheiro agrônomo especialista em produção orgânica, que incentiva os agricultores a reduzir ou a suprimir o uso de defensivos químicos. Na cooperativa C7, a maioria dos cooperados tem produção agroecológica, devido à atuação de uma ONG que presta assistência técnica aos cooperados, incentiva esse tipo de produção e já se prepara para ser uma certificadora, por meio do Sistema Participativo de Garantia (SPG). As cooperativas C1, C5, C8 e C9 também incentivam os agricultores a produzirem de forma agroecológica ou orgânica, entendendo que é um diferencial e elemento de priorização no PNAE7.

O estudo de Cunha, Freitas e Salgado (2017) já apontava a importância das cooperativas para organização da logística, da comercialização e da mobilização dos agricultores familiares para participar de Programas de compra institucional, como PAA e o PNAE. Em Bezerra et al. (2013), notou-se, também, que a organização dos agricultores familiares favorecia a mediação comercial, uma vez que as associações e as cooperativas facilitavam o acesso às Chamadas Públicas e aos mercados institucionais. Neste estudo, confirma-se essa perspectiva ao investigar a realidade dos municípios analisados.

Segundo relatos de todos os entrevistados representantes das cooperativas e das associações, um dos papéis preponderantes dos empreendimentos é atuar como mediadores comerciais no PNAE. Os entrevistados apontam que as cooperativas e as associações realizam o planejamento das entregas, com base nas quantidades e na periodicidade de recebimento determinados pelas EExs, e repassam o cronograma aos associados, que recebem semanalmente ou quinzenalmente os seus produtos.

A mediação comercial realizada por cooperativas e associações também é analisada a partir da perspectiva do beneficiamento e da agregação de valor dos produtos. Após o recebimento, as organizações separam os produtos in natura, seja com apoio dos funcionários, seja dos próprios cooperados. Além disso, podem realizar o beneficiamento e o processamento dos produtos ou enviá-los a empresas terceirizadas, o que acontece em todas as organizações, exceto nas associações A4 e A5.

Na compreensão dos representantes das cooperativas C1, C2, C7 e C8, as cooperativas encarregam-se das questões burocráticas do PNAE para que os agricultores possam se responsabilizar apenas pela produção e pela gestão da propriedade familiar. Na interpretação da representante da C1: “ele [o cooperado] só tem preocupação de entregar mercadoria de boa qualidade no nosso centro de distribuição”. O acesso às Chamadas Públicas, a construção de projetos de vendas e a emissão de notas fiscais foram apontadas como funções das organizações. Ademais, os pagamentos realizados pelas EExs são direcionados às contas bancárias das cooperativas e associações, que realizam os repasses proporcionais aos associados.

A representante da cooperativa C2 explica que a organização precisou “aprender a vender os produtos dos seus associados”, uma vez que a cooperativa é a responsável por pesar, separar e entregar as mercadorias. Para essa entrevistada, cabe ao cooperado entregar os produtos, de acordo com quantidades especificadas previamente, e da “cooperativa para fora” é responsabilidade da própria organização.

A representante da cooperativa C7 apresenta uma mesma visão, visto que a atuação nos processos de venda para o PNAE é realizada pela organização. Desde as etapas iniciais de execução do PNAE, a participação em Chamada Públicas, a construção dos projetos de venda - exigidos pelas EExs - até as entregas nos centros de distribuição do município.

Em Montes Claros, por exemplo, vimos que o edital estava disponível, nós concorremos no dia da abertura dos envelopes, depois fomos convidados pra distribuição dos produtos, se a gente for contemplado, eles nos avisam por e-mail, a gente vem assinar o contrato, depois a nutricionista entra em contato com a gente e nos passa o cronograma e a gente faz as entregas no ponto da prefeitura e eles distribuem para as escolas. (Entrevistada da C7, 2019)

Apenas os entrevistados das cooperativas C8 e C12 afirmaram que parte das entregas dos produtos são de responsabilidade dos cooperados. Nos demais casos, após as entregas dos produtos, realizadas pelos associados, nas sedes ou nos galpões das organizações, a logística ocorre por frete, de forma terceirizada ou com caminhões próprios, mas sob a supervisão das organizações, até as escolas ou centros de distribuição. No município de Governador Valadares, entretanto, a logística de entrega e de distribuição é responsabilidade da prefeitura, que recolhe os produtos semanalmente nas sedes das associações.

A Figura 2, relacionada à mediação comercial, sintetiza as funções das organizações citadas pelos entrevistados e o fluxo das vendas, incluindo as entregas dos produtos diretamente nas cooperativas e associações, as entregas nas escolas ou centros de distribuição, a depender das exigências das prefeituras, e o pagamento realizado diretamente às entidades emissoras das notas fiscais.

Figura 2 - Síntese do fluxo de vendas mediadas pelas organizações da agricultura familiar

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

O fluxo de vendas demonstra que é possível diminuir algumas das atribuições dos agricultores familiares, além da produção, que é a sua atividade principal. A cooperativa, nesses casos, assume as responsabilidades quanto à agregação de valor, logística, comercialização e burocracias. No entanto, conforme apontado por Silva (2015), o cumprimento dos trâmites burocráticos depende das condições de infraestrutura e de recursos humanos oferecidas pelas organizações da agricultura familiar e dos próprios órgãos públicos, ou seja, as cooperativas e entidades públicas precisam oferecer suporte necessário para que os agricultores cumpram as adequações burocráticas, como sanitárias e de segurança.

Além dessas questões mencionadas, cabe às organizações desenvolver mecanismos de transparência e de governança para aproximar os associados dos trabalhos desempenhados no cotidiano organizacional. A participação social torna-se importante para inteirar os agricultores familiares dos processos de venda mediados pelas organizações para comercializar no PNAE. Portanto, os associados precisam ser atores ativos e participativos na gestão dos empreendimentos, participando dos espaços de deliberação das cooperativas e associações, como reuniões extraordinárias e assembleias, uma vez que são os principais ambientes de discussões e repasses aos associados.

É consensual entre os entrevistados a importância das cooperativas e associações na atuação como ponte entre a Administração Pública e os agricultores familiares. Em termos práticos, em geral, são os representantes legais da organização, por exemplo, presidentes e diretores, os responsáveis por essa mediação, representando os demais cooperados e inserindo as organizações representantes dos agricultores familiares nas redes de interação que operacionalizam o PNAE.

A mediação realizada pelas cooperativas e pelas associações caracteriza-se como organizações de representação e negociação dos agricultores, pois criam canais de diálogo entre produtores, entidades de ATER, compradores e consumidores. Conforme relatado pela Gestora 3, a relação entre uma pessoa (presidente ou diretores) que representa os cooperados e a Secretaria de Educação é estreita e o contato é direto, com realização de reuniões mensais, o que facilita o diálogo.

Com relação aos vínculos institucionais, as representantes das cooperativas C1 e C2 afirmam haver o contato de caráter institucional, com frequência esporádica, com representantes da Prefeitura de Belo Horizonte. O relacionamento entre os representantes da cooperativa e os representantes da gestão pública, normalmente, ocorre por meio de seminários sobre o PNAE e em diálogos para inserção dos produtos comumente comercializados pelas cooperativas. A Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (SUSAN) é a principal responsável pela operacionalização do PNAE municipal, instituindo normas técnicas, elaborando cardápio, gerenciando e prestando contas do Programa. É, também, o setor da prefeitura responsável pelo relacionamento com as cooperativas que acessam o PNAE em Belo Horizonte.

Segundo a representante da C1, a SUSAN entra em contato com as cooperativas, principalmente, para solicitar testes de aceitabilidade dos produtos, para inseri-los nas Chamadas Públicas e para realizar o planejamento de rotas e logística das entregas. Entretanto, a entrevistada alega que ainda há dificuldades de inserção dos produtos propostos nas Chamadas Públicas e que os preços também poderiam ser acordados com a agricultura familiar. Os representantes das cooperativas sentem a necessidade da transição de um contato menos impositivo, para um contato efetivamente participativo. A entrevistada da C2, também considera que o contato com a prefeitura é de caráter ocasional e de relações mais comerciais do que um vínculo forte, marcado pela proximidade e confiança. 

Em Montes Claros, a Secretaria de Educação é a principal responsável da prefeitura pela coordenação de todas as etapas da execução do PNAE no município. As funções da Secretaria iniciam no planejamento da compra dos produtos, alinhado com as nutricionistas e com os produtores do município, até o encaminhamento das notas para pagamento no setor financeiro da prefeitura. O contato com as associações e cooperativas que acessam o PNAE também é realizado por funcionários da Secretaria de Educação, que, segundo a Gestora 3, criaram grupos no aplicativo de mensagens WhatsApp para compartilhar as Chamadas Públicas e esclarecer dúvidas, facilitando a comunicação entre a Secretaria e os fornecedores do Programa.

Os principais contatos institucionais das associações em Governador Valadares para implementação do PNAE ocorrem entre as associações, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Agricultura e Abastecimento (SEMA) e a Secretaria de Educação (SMED). Devido ao trabalho intersetorial que é desenvolvido pela prefeitura, a Secretaria de Educação é ator importante no gerenciamento e no planejamento do Programa, enquanto a SEMA desenvolve ações diretamente com as associações para fortalecer as compras da agricultura familiar. 

No município de Juiz de Fora, segundo o Gestor Público 2, a Secretaria de Educação (SE) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária (SEDETA) exercem as ações de implementação do PNAE municipal de maneira conjunta. A Secretaria de Educação coordena o Programa nas escolas, enquanto a SEDETA se responsabiliza por inspecionar os produtos no ato da entrega, entrar em contato com os agricultores, fiscalizar o processo de execução das compras da agricultura familiar e realizar pagamentos. Dessa forma, o contato da C12, na prefeitura, é com representantes da SEDETA.

Em Uberlândia também há uma divisão intersetorial dentro da prefeitura para a execução da política pública e é destacada pelo Gestor 4 como fator que facilita a interação com as cooperativas da agricultura familiar. As relações entre a Secretaria de Educação, a Secretaria de Agropecuária e Abastecimento e as cooperativas do município são o encadeamento que faz o PNAE acontecer, cada qual, cumprindo o seu papel. A Secretaria de Educação cumpre a função de gerenciar os recursos do FNDE e de acompanhar o Programa nos estabelecimentos escolares. 

Não é atribuição da Secretaria de Educação, segundo o G4, ter contato frequente com as cooperativas, pois a Secretaria de Agropecuária e Abastecimento, por meio da Diretoria de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), é a principal responsável por realizar a mediação entre a agricultura familiar e os demais setores da prefeitura que, direta e indiretamente, estão envolvidos no PNAE. Os espaços de diálogo e interação são frequentes entre funcionários da Diretoria de SAN e os representantes das cooperativas tornam a “comunicação desburocratizada” (Entrevistado G4, 2019), analisada como um ponto positivo da descentralização operacional do Programa.

Ainda que marcante a interação entre a Diretoria de SAN e as cooperativas em Uberlândia, os representantes dessas organizações do município apontam as nutricionistas, responsáveis técnicas, como as principais burocratas representantes das Secretarias de Educação, sendo esse relacionamento frequente e de extrema importância para adequação dos cardápios, de acordo com o que é produzido pela agricultura familiar local.

Os representantes das cooperativas de Montes Claros também citam a importância das nutricionistas na rede de execução do PNAE. Segundo entrevistado da C6, as nutricionistas realizam oficinas de mapeamento da produção da agricultura familiar e reuniões para discutir orientações à execução do PNAE. No caso relatado pelo entrevistado da C8, as nutricionistas realizam levantamento semanalmente dos produtos disponíveis e, quando os funcionários ou os dirigentes da cooperativa estão com dúvidas ou dificuldades para cumprir o planejamento das entregas, eles entram em contato diretamente com a essa profissional. 

É relevante abordar a inclusão das organizações não apenas como fornecedores, que realizam mediação comercial, mas também como atores centrais no processo de construção e execução da política pública. A importância da participação dessas organizações ocorre, principalmente, pela imersão no processo de implementação. Para os representantes entrevistados nesta pesquisa, a participação facilita o acesso a informações, oferece autonomia e possibilita contato com os demais atores essenciais na implementação; além de ser efetiva para: construção de preços mais justos, prazos de pagamentos, definição de rotas de entregas e flexibilidade para trocas de produtos que sejam acordadas com a agricultura familiar.

O estudo de Santos et al. (2018) já apontava a necessidade de as cooperativas assumirem a centralidade na representação e mediação de agricultores familiares no acesso às compras públicas. Nesse sentido, Freitas (2017) concluiu que a natureza das relações sociais gera como consequência diferenças nas estruturas sociais. Ao analisar as relações sociais de dois municípios do estado de Minas Gerais, o autor constatou que as organizações cooperativas e associações assumiram papéis diferentes na execução do PNAE: enquanto as associações de um município assumiram papel de espectadores, sendo marginais na rede, em outro município, a cooperativa teve forte atuação na rede de execução da política, assumindo papel de protagonista (Freitas, 2017).

No entanto, apesar dos entrevistados relatarem a importância da participação ativa das cooperativas e associações nos processos de implementação do PNAE, não é possível afirmar, categoricamente, que essas organizações assumem papel de protagonismo, mas, sim, que elas contribuem para a dinamicidade das redes de execução do Programa. Nesse cenário, a participação das organizações exige a formação de laços de confiança e de capital social, tanto para o relacionamento com as prefeituras, como também no relacionamento com os associados e demais entidades parceiras.

Com relação à representação política das organizações, os entrevistados relataram a importância do papel de reinvindicação, desempenhado pelas cooperativas e associações, que direcionam demandas coletivas às prefeituras para solicitar preços mais elevados no PNAE. De acordo com o entrevistado da C11, em Uberlândia, por exemplo, as cooperativas participaram de reuniões com a prefeitura para discutir um acréscimo de 30% nos valores dos produtos solicitados nas Chamadas Públicas, visando subsidiar custos com embalagens e transporte.

Os representantes das C9 e C10 afirmaram que é papel das cooperativas solicitar apoio técnico e cobrar da Secretaria de Agricultura e Abastecimento recursos para fortalecer as cooperativas da agricultura familiar do município de Uberlândia. Para isso, é necessária a participação em reuniões com a prefeitura e com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). Nas reuniões com a prefeitura, conforme relatos dos entrevistados, é possível solicitar maquinários para produção de novas culturas, visando atender ao PNAE. Os representantes citaram também que, por meio de parceria firmada com a prefeitura, as três cooperativas do município de Uberlândia receberam máquinas de classificação e embalagem de ovos, produto que seria inserido nas Chamadas Públicas a partir de 2020.

Em Belo Horizonte, a representante da cooperativa C2 informou que a organização representa os agricultores familiares nos espaços criados pela prefeitura para discussões sobre a logística de distribuição dos alimentos, grande gargalo em um município de grande porte.

As organizações de Governador Valadares, Juiz de Fora e Montes Claros apresentaram visões congruentes no quesito representação política. Nesses municípios, a atuação das cooperativas e associações estão direcionadas à solicitação de melhores condições para as estradas rurais, visando melhorar o deslocamento para realização das entregas de produtos na zona urbana. Além disso, a articulação política pode ser fundamental para questionar as razões pelas quais as EExs adquirem baixos percentuais da agricultura familiar ou para esclarecer junto à prefeitura o porquê não são solicitados produtos produzidos pela agricultura familiar local nas Chamadas Públicas.

2. Desafios das cooperativas e associações para ampliar o acesso ao PNAE

Apesar de estudos apontarem a organização de agricultores familiares como mecanismo determinante para facilitação de processos das compras e, até mesmo, para obter vantagens em relação aos agricultores individuais, esse fato não é garantidor de sucesso no cumprimento dos contratos de vendas firmados, visto que somente a organização econômica com registro de personalidade jurídica não garante o desenvolvimento de capacidades e de promoção de aspectos sociais, econômicos e produtivos. Cruz e Assis (2019) acreditam que as organizações econômicas são ferramentas que facilitam o acesso e a permanência dos agricultores familiares nos mercados, porém, muitas não alcançam êxito em suas atribuições por encontrar barreiras que as tornam estagnadas frente às novas demandas.

Neste estudo, constatou-se que, de fato, as organizações da agricultura familiar encontram desafios para acessar o PNAE ou para ampliar a sua participação nesse mercado institucional. Em Belo Horizonte, por exemplo, entre 2015 e 2018, verificou-se uma variação entre 2,2% e 18,7% de aquisição de produtos advindos da agricultura familiar; em Juiz de Fora, os percentuais variaram de 4,9% a 11,4%; e em Uberlândia, houve variação entre 0,6% e 18,7%. Portanto, nesses municípios, nos anos analisados, encontrou-se dificuldade em adquirir o mínimo de produtos imposto pelo FNDE. Já os municípios Governador Valadares (em 2015, 2016 e 2018) e Montes Claros (em 2015, 2016 e 2017) ultrapassaram o mínimo exigido, entretanto, alcançar os 30% não isentou as organizações de desafios.

Segundo os entrevistados representantes das cooperativas e das associações, os desafios enfrentados para o abastecimento alimentar nas escolas são de distintas naturezas, mas estão interrelacionados. Os principais entraves apontados estão vinculados a desafios organizacionais: dificuldade com logística de distribuição dos alimentos; planejamento financeiro; acesso a crédito e fidelização dos cooperados; e a desafios institucionais: dificuldade de adequação socioprodutiva local e atrasos de pagamentos no PNAE. Além disso, foram apontados desafios relacionais, por exemplo, dificuldade de relacionamento: tanto entre as cooperativas e as associações que acessam o Programa, como também com os gestores públicos e burocratas que atuam na execução da política pública.

No Quadro 1, foram agrupados os desafios, de três naturezas distintas, mais citados pelos representantes das cooperativas e associações para participar ou para ampliar o acesso ao PNAE nos municípios. Considerou-se, como desafios organizacionais, as limitações de ordem organizacional, referindo-se à capacidade dos agricultores de se organizarem8. Os desafios de natureza institucional referem-se às limitações relacionadas à própria execução do PNAE e às ações das gestões públicas municipais. Já os desafios relacionais envolvem a dificuldade de relacionamento com outros atores essenciais para implementação da política pública.

Quadro 2. Principais desafios das cooperativas e associações

para participar do PNAE

DESAFIOS ORGANIZACIONAIS

DESAFIOS

INSTITUCIONAIS

DESAFIOS
RELACIONAIS

  • Logística de distribuição dos produtos;
  • Fidelização dos associados;
  • Gestão do empreendimento: planejamento financeiro e acesso a crédito;
  • Dependência dos recursos do PNAE.
  • Atrasos nos pagamentos;
  • Adequação da dinâmica da alimentação escolar à realidade socioprodutiva local e adaptação do planejamento produtivo.
  • Dificuldade de interação efetiva com a Administração Pública;
  • Competição e falta de diálogo entre organizações da agricultura familiar.

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

A complexa logística e os custos de distribuição foram apontados, por nove dos dozes entrevistados, como principais desafios das organizações relacionadas ao PNAE. Ademais, foram indicados, por oito entrevistados: dificuldades de aceitação dos produtos comercializados pelas organizações; respeito à sazonalidade; desafios organizacionais de dependência do PNAE para sobrevivência dos empreendimentos; e falta de planejamento financeiro e de acesso a crédito. Já o desafio relacional mais citado foi a dificuldade de interação efetiva com a Administração Pública, apontado como um dos principais desafios de seis das doze organizações estudadas. Os desafios apresentados no Quadro 1 serão discutidos nos subtópicos seguintes.

i. Desafios organizacionais

A logística de entrega dos produtos, nos centros de distribuição municipal e nas unidades escolares, foi apontada por nove representantes de cooperativas e associações, como um dos principais gargalos que se intensifica devido ao fato de as cooperativas não possuírem veículos próprios, enfrentando preços excessivos do frete terceirizado. Apenas as cooperativas C6, C7 e C11 possuem veículos próprios para a realização das entregas dos produtos. Os representantes das cooperativas C1, C2, C8, C9, C10 e C12 afirmaram que a contratação de empresas terceirizadas para distribuição dos alimentos de suas respectivas cooperativas reduzem, consideravelmente, em alguns casos, o retorno financeiro das transações e a agilidade na entrega dos produtos, pois dependem da disponibilidade de horários dos transportadores.

A dificuldade da agricultura familiar no processo logístico do PNAE também é realidade em outros municípios brasileiros, conforme relatado por Marques et al. (2014), Costa, Amorim Junior e Silva (2015) e Freitas (2017). Na visão de Costa, Amorim Junior e Silva (2015), a logística torna-se um dos principais entraves enfrentados pelos empreendimentos da agricultura familiar no acesso ao PNAE, pois o programa não prevê a remuneração dos custos com a logística de distribuição dos produtos.

A complexa logística de distribuição dos alimentos, desde as propriedades rurais até as escolas ou os centros de distribuição de alimentos, envolvem altos custos que oneram os produtos das cooperativas e associações. Até nos casos dos municípios de Belo Horizonte, Montes Claros e Uberlândia, que disponibilizam galpões que sediam os centros de distribuição de alimentos, os preços com fretes são empecilhos para cooperativas e associações que entregam os produtos em um único ponto de distribuição9.

Se não houvesse a centralização das entregas nos centros de distribuição, a situação da distribuição dos produtos seria mais problemática, pois, conforme já apresentado no estudo de Oliveira, Sousa e Silva (2013), em municípios de grande porte, a logística de abastecimento das escolas é um dos aspectos dificultosos do cumprimento do objetivo do Programa de contribuir com o desenvolvimento local, uma vez que a grande demanda e as distâncias entre as escolas acabam exigindo a aquisição dos produtos de fornecedores de outras regiões e até mesmo de grandes empresas nacionais.

Em Governador Valadares, a distribuição dos produtos da agricultura familiar é realizada pela própria prefeitura. Conforme apontaram os representantes das A3, A4 e A5, a prefeitura disponibiliza um caminhão para recolhimento dos produtos nas associações, uma vez por semana, e distribui nas escolas urbanas e rurais do município. Entretanto, segundo os representantes, os preços pagos praticados no PNAE do município são inferiores em comparação a outros mercados, com a justificativa de que é descontado o preço do frete, diminuindo o valor pago por produto.

Para o entrevistado da Associação 5, falta organização e apoio por parte do poder público, para que cada associação possa realizar suas entregas de maneira independente. Na visão dele, “falta organizar melhor a logística e a gente poderia pensar também assim, eles não precisariam ir buscar os produtos nas comunidades, a gente iria trazer até eles no nosso caminhão e eles levariam para as escolas” (Entrevistado da A5, 2019).

O pouco entendimento sobre a gestão das sociedades cooperativas ocasiona na dificuldade em contabilizar os custos e em reinvestir em infraestrutura. A dificuldade em gerenciar o empreendimento e de viabilizar economicamente a cooperativa, a falta de recursos e/ou planejamento para investimento e a necessidade de capital de giro são as principais preocupações dos entrevistados em relação à gestão dos empreendimentos.

[...] na zona rural pra gente vencer mesmo é o financiamento e até hoje não chegamos na rentabilidade que precisamos. (Entrevistada da A3, 2019)

Nossa, a contabilidade é uma das questões dificílimas das cooperativas, a gente tem pouco entendimento. (Entrevistada da C6, 2019)

Falta recursos, não é fácil, meu Deus, como é difícil [...] gente trava muito na questão do dinheiro [...] planejamento financeiro ligado a gestão é importantíssimo, e é um baita desafio que a gente vem enfrentando e ainda enfrenta ele e o planejamento produtivo, porque as duas contas que tem que fechar muito bem fechando baixo. (Entrevistado da C7, 2019)

[...] a gente passa muito apertada para a gente aumentar também junto a nossa gestão nosso capital de giro, a gente ter um capital que a gente consiga se autossustentar, em alguns períodos, né, que a gente consiga cada vez mais gerando mais investimento. (Entrevistado da C9, 2019)

As barreiras organizacionais apresentadas no estudo de Santos, Campos e Ferreira (2017) apontavam as dificuldades gerenciais das cooperativas similares às citadas anteriormente. A falta de conhecimentos gerenciais, a falta de recursos para investimento, o baixo ou inexistente capital de giro e a rigidez burocrática são fatores limitantes para o desenvolvimento e desempenho organizacional. Isso resulta na dependência de auxílio de terceiros por parte das organizações, que carecem de apoio para execução das atividades gerenciais, administrativas e contábeis.

Uma estratégia apontada é o aprimoramento gradual da gestão do empreendimento, visando aperfeiçoar a gestão financeira, reduzir os riscos das atividades, aumentar a eficiência e dar o maior retorno financeiro aos cooperados, por meio do crescimento nas vendas e da redução de custos desnecessários. Além disso, aprimorar a gestão refere-se à agilidade nos processos de venda e à transparência aos cooperados, com objetivo de preservar os vínculos, a partir da democrática disseminação de informações questões importantes para fidelização dos cooperados.

A fidelização dos associados e a atração de novos cooperados aparece como um grande desafio para aumentar o volume de produção, visando atender o PNAE em outros municípios ou mais itens das Chamadas Públicas nos municípios onde atuam. Para ampliar a quantidade e a diversidade dos produtos comercializados no Programa, as cooperativas também têm estimulado a participação dos jovens e das mulheres das comunidades, além da estratégia de convidar outros agricultores familiares de produções diversificadas a participarem das cooperativas.

Em todos os casos, percebe-se a dependência das organizações em relação ao mercado institucional para a sobrevivência financeira, já que elas não acessam outros mercados. Todos os entrevistados afirmaram que as receitas das cooperativas e associações advêm, em sua totalidade, do PNAE ou a maior proporção dela (variando entre 70% e 90% da receita total). Somente nas organizações A3, A5, C6, C7, C9 e C12, os entrevistados relataram acessar outros mercados; em alguns casos, os cooperados acessam mercados de forma individual.

A dependência de um único mercado é prejudicial para a sobrevivência das organizações, principalmente, conforme relatado, no período de férias ou quando

[...] a gente vai ficar com o PNAE e vai trabalhar em outro mercado, a gente veio acessar outros mercados simplesmente porque o PNAE para em dezembro [...] para julho ou tem alguma greve a gente prejudica muito, porque as contas não param de chegar, então a gente tem que ter uma outra segurança para poder não ficar somente nisso. (Entrevistado da C1, 2020)

O sonho nosso é a gente virar 70% de entregas no mercado convencional e se fosse só 30% mesmo para o PNAE era o que seria o saudável para a vida da cooperativa. Porque você pega aí o exemplo do PNAE, quando entra o período de férias é o período que o faturamento da cooperativa cai e é o mesmo período que a nossa produção chega toda. (Entrevistado da C7, 2019)

[...] a gente só vende 100% da comercialização via PNAE, via institucional, então assim, a sobrevivência da cooperativa depende desses Programas hoje, a gente tem intenção em um futuro próximo expandir outros mercados, mas hoje sem o mercado institucional a cooperativa nem existiria. (Entrevistado da C10, 2019)

ocorre atrasos na divulgação das Chamadas Públicas:

Os entrevistados mostraram-se preocupados com a dependência do PNAE e o acesso de agricultores familiares, individualmente, a outros mercados. Para o entrevistado 11, essa questão tornou-se um problema para a fidelização dos cooperados, ocasionando pouco envolvimento dos agricultores familiares. Quando os valores pagos pelo PNAE estão acima dos preços praticados em outros mercados, os cooperados entregam as mercadorias para a cooperativa. Caso contrário, os cooperados não assumem o compromisso de realizar as entregas semanais na cooperativa. Segundo o entrevistado, a análise dos cooperados é puramente racionalista, variando de acordo com a oscilação dos preços do CEASA.

ii. Desafios institucionais

No entanto, representantes de cooperativas e associações entrevistados relatam que, em alguns casos, há dificuldade de adaptabilidade de cardápios. Os problemas climáticos e a falta de assistência técnica desencadeiam em desafios que dificultam o planejamento produtivo e a entrega dos produtos com frequência. Para o entrevistado da C٧, alguns produtos são solicitados, mas as condições climáticas ou sazonais não permitem a entrega naquele momento. Quando os agricultores encontram dificuldade em produzir, as cooperativas e associações também ficam prejudicadas por não disponibilizarem os produtos nas quantidades necessárias para fornecimento da alimentação escolar.

Por isso que as vezes não atende os 30%, a gente não consegue organizar com o agricultor direito, a gente tem que ver a produção que às vezes colocam coisas no edital que não tá na época da fruta e como a cooperativa vai entregar? (Entrevistado da A5, 2019)

Na visão da entrevistada da C2, muitas vezes, são as próprias merendeiras que não compreendem o planejamento e as características dos produtos da agricultura familiar. Conforme apontado por ela, “tem umas merendeiras que acham que trabalhar com a agricultura familiar é difícil, justamente por conta do planejamento, não é qualquer hora que liga e nós leva 2 kg de alface. Elas estavam acostumadas com sacolão, né?” (Entrevistada da C2, 2020). Esse relato explicita uma dificuldade de aceitação dos produtos da agricultura familiar, principalmente, devido aos volumes e a frequência das entregas, e as características dos produtos.

Para a entrevistada da cooperativa C6, a dificuldade de aceitação dos produtos da agricultura familiar, por parte das merendeiras, ocorre devido ao desábito em preparar receitas com os produtos que a cooperativa oferece. Para evitar a desaprovação dos itens de difícil preparo, representantes das cooperativas do município propuseram processar, minimamente, alguns produtos, pois, além de facilitar o preparo, fomenta as agroindústrias das cooperativas.

Por outro lado, na perspectiva da gestão pública, a Gestora 3 afirma que um dos principais desafios para aquisição dos produtos das organizações do município ocorre pela dificuldade de entendimento da agricultura familiar em compreender os cardápios elaborados pelas nutricionistas. Para a gestora, tal limitação ocasiona a dificuldade na oferta pela falta de planejamento produtivo adequado às demandas exigidas nos cardápios.

Na explicação de Freitas e Freitas (2021), a dificuldade de construir e de flexibilizar cardápios, de acordo com a sazonalidade e as características socioprodutivas locais, decorrente muitas vezes da falta de diálogo entre a Administração Pública e as organizações da agricultura familiar, limitam a realização de ajustes de acordo com a produção dos agricultores, o que dificulta o planejamento produtivo e as entregas por parte das organizações. Silva e Schultz (2017) também acreditam que de fato a dificuldade de acesso da agricultura familiar ao PNAE, por exemplo, decorre da tentativa de as EExs seguirem a lógica dominante da economia de mercado, deixando de lado a realidade e a diversidade apresentada pela agricultura familiar local.

Como também apresentado por Santos, Campos e Ferreira (2017), o atraso nos pagamentos do PNAE, pelas EExs, é outro fator negativo na implementação da política pública. O pagamento é realizado pelas secretarias, com um prazo entre 30 e 60 dias. Alguns entrevistados afirmam que os atrasos nos pagamentos é um dos principais gargalos enfrentados, principalmente, por aquelas cooperativas que dependem exclusivamente da receita do PNAE para sobrevivência, conforme relata a representante da cooperativa C10:

A gente sempre cobrou no caso da prefeitura a questão de pagamento, é um gargalo que a gente enfrentou lá nos outros anos, esse ano melhorou muito, mas tem que melhorar ainda. A gente já passou alguns meses sem receber e o produtor não consegue, a cooperativa não consegue segurar sem isso [...] A gente é muito transparente com eles [cooperados], a gente já fala, esse ano eles assustaram, porque a gente já falava, gente vender para prefeitura é muito bom, preço é muito bom, receber esquece eles não preocupam com isso não e aí é poupança (Entrevistada da C10, 2019).

Na cooperativa C8, os cooperados também enxergam o pagamento do PNAE como recurso para “poupança”. Nesses casos, os cooperados precisam realizar vendas, individualmente, em feiras municipais e em mercados para sobrevivência, enquanto não recebem os pagamentos do PNAE. Já na Cooperativa 11, segundo o Presidente, houve casos em que os agricultores familiares não quiseram se associar à cooperativa pelo fato dela comercializar apenas no PNAE e, nesse mercado, “demora a receber” (Entrevistado da C11, 2019).

Os atrasos nos pagamentos agravam a situação dos empreendimentos, principalmente pela inexistência ou dificuldade em manter o capital de giro, para assegurar que os empreendimentos tenham capacidade de quitar suas despesas a curto prazo. Conforme aponta o entrevistado da Cooperativa 9, a limitação em “se autossustentar” e as obrigações dos empreendimentos podem ficar comprometidas enquanto os pagamentos do PNAE não são realizados.

iii. Desafios relacionais

Para que o PNAE funcione de maneira eficiente e eficaz nos municípios, é preciso que os gestores públicos articulem e desenvolvam parcerias e ações para colaborar com a estrutura dos agricultores familiares, de forma individual ou envolvidos com alguma organização formal da categoria. Deve-se ter clareza de que o município é o ente governamental mais próximo da sociedade e o principal executor de políticas públicas, ainda que essas tenham sido elaboradas no âmbito federal ou estadual. Tendo em vista que a maioria das organizações possuem dificuldades quanto aos conhecimentos normativos específicos de determinadas legislações, é importante que a Administração Pública seja uma facilitadora nesse processo.

Na empiria, percebeu-se, no entanto, que alguns municípios ainda encontram dificuldades em fazer articulações concretas, que favoreçam o desenvolvimento das cooperativas e associações e que contribuam para sua autonomia e protagonismo. Em Uberlândia, por exemplo, o gestor público relata que, apesar da proximidade da Administração Pública com as cooperativas do município, enfatizada pelo diálogo para construção dos preços e das Chamadas Públicas, ainda existem ações que podem ser desenvolvidas para aproximar ainda mais os atores, visando facilitar a execução do PNAE. Nesse caso, para o Gestor 4, falta um diálogo mais constante e menos imediatista. Situação semelhante foi observada em Belo Horizonte, uma vez que as representantes das cooperativas C1 e C2 afirmam haver o contato imediatista e de frequência esporádica com representantes da prefeitura.

Em Juiz de Fora, a Secretaria de Educação não desenvolve atividades voltadas para o setor da agricultura familiar além do PNAE, deixando a articulação sob responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária (SEDETA). Essa secretaria, por sua vez, encontra-se em fase de auxiliar a constituição de pequenas cooperativas no município, especialmente para “administrar a venda do leite” (Entrevistado G2, 2019), e não, necessariamente, apoiar as cooperativas já existentes nas vendas para o PNAE.

Em Governador Valadares, conforme relatado pelo representante da A5, apesar do contato frequente com membros da Secretaria que executa o PNAE, as organizações almejam participar ativamente e compreender melhor todos os processos da implementação, principalmente na definição dos preços dos produtos. Para a entrevista da A4, apesar do contato com representantes da Prefeitura, a relação é de dependência das associações, pelo fato delas encontrarem dificuldades “de andar com as próprias pernas” (Entrevistada da A4, 2019).

O Gestor 1, representante da Administração Pública municipal, confirma a proximidade com os representantes das associações do município. Entretanto, deixa claro que a relação entre as organizações e a Secretaria é de caráter tutelar, e a proximidade entre os atores tem como objetivo oferecer apoio e suporte logístico, acompanhamento jurídico e até auxílio na elaboração dos projetos de venda para o PNAE, e não necessariamente para estimular a autonomia e o protagonismo das associações.

Notou-se também a dificuldade de interação e de parcerias contínuas entre as cooperativas e associações nos municípios. Em Belo Horizonte, Montes Claros e Uberlândia, entrevistados citaram interações pontuais entre as organizações. Entretanto, o envolvimento ocorre, excepcionalmente, quando é necessário trocar informações e experiências, no caso das cooperativas de Belo Horizonte.

Em Montes Claros e Uberlândia, as cooperativas interagem, esporadicamente, apenas para divisão dos produtos e quantidades solicitadas nas Chamadas Públicas, com o objetivo de democratizar o acesso do maior número de organizações locais a uma mesma Chamada Pública do PNAE. Na visão do Gestor 4, em Uberlândia, a interação ainda existente só ocorre devido à alta competição que dificultou acesso de todas as cooperativas do município ao PNAE, no ano de 2017, quando as aquisições de duas organizações não ultrapassaram R$ 39.785,25, representando 6% do montante total repassado.

É possível notar é que o volume de alimentados demandados pelos municípios estudados são altos e devem ser entregues com regularidade (normalmente semanal). Constatou-se que as cooperativas e as associações sozinhas não dão conta de abastecer o mercado com a diversidade de produtos e regularidade que o PNAE demanda. Dessa forma, pode-se dizer que, além das vendas mediadas por cooperativas e associações, como empreendimentos econômicos que mediam o processo de comercialização, é imprescindível ações de intercooperação, com o objetivo de coordenar contratos e estruturar arranjos institucionais que possam garantir os volumes e a regularidade de oferta, consequentemente, aumentando os percentuais de aquisição da agricultura familiar nos municípios.

Considerações finais

As discussões realizadas neste artigo demonstram que as cooperativas são essenciais para operacionalização da política pública e para o fortalecimento da agricultura familiar, não só pela atuação no processo comercial ou na gestão burocrática do PNAE, mas também pela articulação com os cooperados e pelo diálogo com a gestão pública, buscando melhorias na logística, nos preços e no acesso às informações e aos recursos.

Compreendendo a importância dos papéis desempenhados por essas organizações, é necessário que as prefeituras desenvolvam estratégias para aumentar a participação da agricultura familiar no PNAE, fomentando a participação das cooperativas e associações, já que nos municípios estudados, majoritariamente, as compras da agricultura familiar são mediadas por essas organizações.

Percebe-se, nas situações analisadas, que não basta a definição de políticas públicas e o interesse da gestão pública em adquirir produtos para agricultura familiar, haja vista a gama de necessidades e carências gerenciais, econômicas, produtivas e sociais das organizações de agricultores familiares. É necessário revelar que, apesar da importância das organizações, elas enfrentam inúmeros desafios de distintas naturezas para o abastecimento alimentar. As limitações podem ser superadas por meio de articulação dos diversos atores envolvidos, como também por intermédio de processos de planejamento e monitoramento da execução do PNAE e de fortalecimento do cooperativismo e do associativismo.

É necessário pensar estratégias de apoio às organizações, uma vez que, tratando-se de cooperativas e de associações da agricultura familiar, não basta estimular a comercialização. Se não oferecer suporte necessário, não auxiliar com recursos, com apoio técnico e financeiro, para estimular a própria produção, a comercialização ficará comprometida. Além disso, incentivar a participação das cooperativas e associações no processo de execução torna-se necessário para construir e condicionar uma política pública com resultados efetivos.

Apesar da importância reconhecida por três representantes da gestão pública municipal, apenas admitir que as cooperativas e associações são relevantes na execução do PNAE, não basta. No processo de implementação, as cooperativas e as associações devem ser protagonistas, participar como ator central e levar as reivindicações e necessidades à gestão pública, aos burocratas, às instituições de apoio técnico e produtivo.

Este trabalho pretende contribuir para reflexões das próprias prefeituras e das cooperativas e associações da agricultura familiar, que podem utilizar do diagnóstico sobre papéis e desafios de distintas naturezas realizado na pesquisa, para repensar estratégias que potencializem a participação da agricultura familiar no mercado institucional.

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1 As compras dos produtos da agricultura familiar devem ser realizadas por Chamada Pública, conforme a Lei n.º 12.188 de 2010, que dispensa o processo licitatório e destaca as obrigações dessa modalidade de compra.

2 De acordo com o Art. 3 da Lei n° 11.326 de 2006, os agricultores familiares são indivíduos que praticam atividades no meio rural, atendem os seguintes requisitos: não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; e dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

3 Atualmente discute-se também a inserção de cooperativas da agricultura familiar em mercados interacionais.

4 Conforme dados do Inep (2020), segue o número de estudantes das escolas municipais: 172.950 em Belo Horizonte; 18.208 em Governador Valadares; 37.231em Juiz de Fora; 28.448 em Montes Claros; e 58.141 em Uberlândia.

5 Reuniões do projeto “Comida de Verdade nas escolas do Campo e da Cidade”, executado pela Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas de Belo Horizonte - MG.

6 As próprias organizações escolheram quais atores seriam entrevistados, a partir da disponibilidade e da aptidão para dialogar sobre o acesso ao PNAE.

7 De acordo com o FNDE, para a aquisição de alimentos orgânicos, pode-se acrescentar até 30% ao valor médio pesquisado para os alimentos convencionais.

8 Com base em Freitas (2017).

9 Cada município determina quais produtos podem ser entregues nos centros de distribuição. Em alguns casos, folhosos e produtos minimamente processados devem ser entregues diretamente nos estabelecimentos escolares.