Espacio Abierto Cuaderno Venezolano de Sociología Vol.27 No.2 (abril - junio, 2018): 233-258


Vulnerabilidade às mudanças ambientais globais: as estratégias da agricultura familiar na região do Alto Guaporé (MT), Brasil

Heitor Kirsch* y Eduardo Filipi**


Resumo

A finalidade desse trabalho é demonstrar que a capacidade que os indivíduos ou grupos sociais possuem para produzir respostas no sentido de contornar e/ou superar as barreiras, quando expostos a situações que podem comprometer sua capacidade de garantir a subsistência familiar, são bastante heterogêneas, mesmo em ambientes similares. Os fatores sociais podem constrange-la, ou mesmo facilitá-la, de maneira muito mais decisiva que a exposição e o comportamento dos fatores naturais envolvidos nos processos de adaptação às mudanças ambientais contemporâneas. Portanto, a capacidade de reagir ou se adaptar dos indivíduos a novas situações buscando reduzir sua vulnerabilidade, sobretudo daqueles que residem em espaços rurais, é o resultado objetivo da ação vinculada à experiência cotidiana, na interação que ele consegue produzir entre os sistemas natural e social e pressupõe a existência de processos de aprendizagem individual e/ou coletiva. Para demonstrar essa característica, foram identificadas as principais estratégias de subsistência mobilizadas pelos agricultores familiares na região do Alto Guaporé, no sudoeste do estado de Mato Grosso, Brasil. O estudo, realizado junto a um universo empírico de cinquenta e um entrevistados, em cinco municípios, revelou que o funcionamento do quadro institucional pode induzir e/ ou condicionar de maneira decisiva a capacidade dos indivíduos


Recibido: 25-10-2017 / Aceptado: 05-01-2018

* Universidade do Estado de Mato Grosso. Pontes e Lacerda, Brasil.

** Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil. E-mail: heitor.kirsch@gmail.com edu_292000@yahoo.com.br


em mobilizar os arranjos e as formas de produção utilizadas para garantir a reprodução familiar. Portanto, a correta identificação do seu funcionamento e de sua diversidade cumprem um papel importante para a determinação da vulnerabilidade.

Palavras-Chave: Adaptação; Agricultura Familiar; Mudança

Ambiental.


Vulnerability to global environmental changes: the strategies of family agriculture in the Alto Guaporé (MT) region, Brazil

Abstract

The purpose of this paper is to demonstrate that the capacity of individuals or social groups to produce responses to cope with and overcome barriers, when exposed to situations that may compromise their ability to guarantee family subsistence, are quite heterogeneous, even in similar environments. Social factors may constrain it, or even facilitate it, in a much more decisive way than the exposure and behavior of the natural factors involved in the processes of adaptation to contemporary environmental changes. Therefore, the ability of individuals to react or adapt to new situations seeking to reduce their vulnerability, especially those residing in rural areas, is the objective result of the action linked to daily experience, in the interaction that it can produce between the natural and social system and presupposes the existence of individual and / or collective learning processes. To demonstrate this characteristic, we identified the main subsistence strategies mobilized by family farmers in the Alto Guaporé region, in the southwestern state of Mato Grosso, Brazil. The study, carried out with an empirical universe of fifty-one respondents in five municipalities, revealed that the functioning of the institutional framework can decisively induce and / or condition the individuals’ capacity to mobilize the arrangements and forms of production used to guarantee family reproduction. Therefore, the correct identification of its functioning and its diversity play an important role in the determination of vulnerability.

Keywords: Adaptation; Family Farming; Environmental Change.


Introdução

Ao longo dos últimos anos, várias evidências vêm confirmando que a atividade humana é a principal geradora da insustentabilidade no equilíbrio dos componentes do meio natural, pelo menos no que diz respeito aos últimos 50 anos (GLECKLER et al., 2012). As simulações futuras em relação a uma mudança dessas dinâmicas, usualmente, são estimadas em função da observação de sua flutuação, comportamento e variação habitual ao longo de, pelo menos, os últimos 150 anos (ALLEN et al., 2000). Todavia, como observam Norberg et al. (2012), os modelos mais utilizados possuem limitações sérias. Eles quase sempre omitem e ignoram as mútuas influências de processos importantes, como a evolução e a competição natural em termos de mudanças na biodiversidade, ou seja, as interações entre espécies e suas adaptações evolutivas e seus impactos sobre os serviços ecossistêmicos. As modelagens em que se estimam cenários e incorporam o comportamento futuro das tendências socioeconômicas, possivelmente, são ainda mais carregadas de incertezas e de subjetividade (QUIGGIN, 2008; SCHNEIDER,2002). Portanto, qualquer modelo de simulação é tão somente uma expectativa e não extrapola a condição de ser apenas um panorama possível, uma probabilidade.

Essa confiabilidade restrita nas simulações futuras tem sido apresentada por alguns estudiosos como uma barreira importante na produção de respostas mais eficazes ante as transformações que ocorrem nos fatores ambientais. Isso é motivado pela percepção que a erosão de inúmeros serviços ecossistêmicos deverá ocorrer especialmente nas regiões mais pobres do mundo, em que o crescimento da população, a pobreza, a poluição da água e do ar, as desigualdades de acesso às oportunidades e aos serviços sociais entre classes e gêneros tornam sua população altamente suscetível a tais transformações. Portanto, a questão do entendimento dos atributos de sua vulnerabilidade é fundamental na capacidade de produzir respostas que tenham como finalidade a diminuição do desajuste existente entre as populações diante das mudanças no ambiente.

O objetivo desse trabalho é demonstrar, a partir de evidências empíricas colhidas junto aos agricultores familiares na região sudoeste do estado de Mato Grosso, no Brasil, que sua correta identificação envolve as ações e as escolhas, coletivas e individuais, mobilizadas para enfrentar ou adaptar-se às mudanças ambientais contemporâneas. Para tanto, é preciso avaliar e compreender adequadamente os processos sociais e econômicos que moldam e condicionam tais respostas adaptativas (FOLKE et al., 2002). Ou seja, as decisões das pessoas são julgamentos que ocorrem não somente em função do cenário futuro provável das condições dos fatores naturais. Fatores econômicos, políticos, culturais e institucionais, altamente imprevisíveis, têm influência direta e determinante sobre as avaliações e as escolhas de ações para se adaptar às mudanças ambientais (ADGER et al., 2009).

Para demonstrar que ações que tenham como objetivo diminuir o risco e os perigos dos eventos que atingem diretamente os sistemas humanos precisam envolver aspectos tanto da vida econômica e social quanto dos sistemas naturais, esse trabalho foi organizado em cinco seções, sendo que essa primeira, tem caráter introdutório. Na seção a seguir, é discutida a pertinência de uma abordagem teórica e analítica onde há uma relativização dos riscos e dos perigos da exposição física ao meio natural, atribuindo-lhes uma importância


marginal enquanto fatores que induzem às situações de vulnerabilidade da população. Na terceira seção são apresentados os procedimentos metodológicos mobilizados na investigação. Na seguinte, são analisadas as principais estratégias mobilizadas pelos agricultores no sentido de garantir a subsistência familiar e como os fatores sociais, econômicos e institucionais influenciaram nessas escolhas. A última é destinada para as considerações finais.


Interpretações sobre vulnerabilidade e suas implicações

Delimitar a noção de vulnerabilidade tem se convertido em uma temática cada vez mais decisiva quando o objetivo é avaliar e compreender adequadamente os fatores condicionantes das respostas adaptativas ou de resistência dos indivíduos e grupos sociais às mudanças ambientais (TURNER II et al., 2003). Isso porque, além de ser largamente empregada, os seus sentidos muitas vezes se intercalam e até mesmo diferem, expressando concepções opostas (O’BRIEN et al., 2007).

Em geral, o uso maisntream do conceito faz referência a um perigo latente ou a um fator de risco externo a que um sistema ou um indivíduo está, ou possa vir a estar exposto. Além disso, tal noção de vulnerabilidade ainda compreende que há um fator de risco interno, correspondente ao potencial de perda que possa ocorrer ao sujeito ou ao sistema exposto durante essa possível mudança. Em outras palavras, em tal entendimento, se busca uma maneira de mensurar, ou seja, expressar e representar matematicamente a probabilidade de haver uma alteração na estabilidade, quando da ocorrência de uma mudança, com una certa intensidade, em um lugar específico e durante, ou a partir, de um determinado tempo. A vulnerabilidade, em outras palavras, está ancorada em uma representação estatística preditiva da predisposição ou da susceptibilidade física, econômica, política ou social que um grupo de pessoas possuem em serem vitimadas, e, portanto, sofrerem algum tipo de dano, no caso da ocorrência de um fenômeno desestabilizador de origem natural, ou antrópica.

Raynaut (2006), todavia, faz uma observação importante que remete a uma compreensão distinta dessa e alinhada com a que norteia essa investigação. Para ele, há uma distinção que precisa ser observada quando se faz menção à vulnerabilidade: existem diferenças em relação aos fatores que geram o risco e o estado dos indivíduos e das populações diante deles. Para tanto, ele mobiliza duas noções: as condições e as situações. Enquanto a primeira faz referência a tudo aquilo que se impõe de maneira objetiva às vontades individuais, a noção de situação se vincula à singularidade que resulta de um processo de interação constante, entre as condições objetivamente existentes, e a maneira como as pessoas conseguem agir e/ou reagir, conscientemente ou não, em relação a elas em momentos de crise ou de transformação.

Um dos argumentos importantes dessa vertente teórica é baseado no fato de que a capacidade de enfrentar ou, eventualmente, absorver o impacto de uma ameaça com o mesmo potencial de danos físicos é diferenciada entre os indivíduos ou grupos de uma mesma localidade, ou então, podem até mesmo existir e funcionar diferentemente em contextos variados. Portanto, a capacidade de enfrentar ou se adaptar a novas situações


é resultado de um processo interativo de aprendizagem social entre os indivíduos e as instituições e o seu ambiente biofísico (SMIT; WANDEL, 2006). Desse modo, o conjunto das informações sobre os cenários futuros dos potenciais riscos ou consequências é importante em termos restritos.

O essencial é se debruçar sobre os processos que caracterizam uma situação de vulnerabilidade em seus componentes sociais, econômicos e institucionais, visto que eles moldam e espelham as condições para a produção das respostas frente aos processos de mudanças do ambiente. Assim, a construção de qualquer medida mensurável para determinar a vulnerabilidade é inócua, pois o mais importante é identificar da trajetória de tendência dos fatores que a condicionam e a modelam (KELLY; ADGER, 2000). Nessa perspectiva, o entendimento de vulnerabilidade é essencialmente um estado situacional. Portanto, ela pode sofrer variações, ou mesmo transformações, em função da ligação que se estabelece entre os recursos que as pessoas ou grupos conseguem mobilizar e o conjunto de oportunidades que elas efetivamente possuem em sua prática cotidiana para responder a uma situação de crise (ELLIS, 2000). Em outras palavras, há um entendimento associado à abordagem da capacitação (capability) desenvolvida por Sen (2001).

Em termos teóricos, há um deslocamento ontológico importante sobre a centralidade da ação humana. No uso tradicional do termo há uma posição em que sua vulnerabilidade é definida exclusivamente por elementos que lhe são externos. Nela os ajustamentos são promovidos pelos indivíduos de uma maneira sequencial e unidimensional, à medida que se tenha conhecimento e ciência satisfatória das dinâmicas dos fenômenos sustentados em modelos de projeções futuras de lapsos temporais dos componentes biofísicos da natureza. Ao passo que para a vertente que assume que vulnerabilidade é um estado situacional, as pessoas assumem uma postura de ação ativa, a capacidade de produzir respostas as situações críticas ou novas é resultado da aprendizagem coletiva, ou seja, de uma ação reflexiva vinculada à experiência prática e o seu ambiente biofísico, mas, submetida a influência da variedade de instituições que operam no local (EAKIN; LEMOS, 2010; GUPTA et al., 2010).

É preciso esclarecer que o entendimento da noção de instituições aqui desenvolvido está relacionado com as regras legais formais, as normas sociais informais e as crenças culturais que regem o comportamento e a forma como os indivíduos e organizações interagem (NORTH, 1990; OSTROM, 2000). Na verdade, alguns autores têm apontado que, além da importância das políticas e instituições formais, é preciso observar que as normas sociais e culturais informais, também afetam o modo como um indivíduo, uma família ou uma comunidade é capaz de responder ante a situação que possa implicar vulnerabilidade (DANIELS; ENDFIELD, 2009; ERIKSEN; LIND, 2009). Portanto, a identificação do funcionamento das instituições informais e formais e sua diversidade cumprem um papel importante para a determinação da vulnerabilidade.

Por fim, ainda cabe esclarecer que, embora algumas regras e normas sejam relativamente estáveis e não facilmente alteradas, não se sugere que todos processos que regem a interação humana com as instituições sejam imutáveis ou rígidos (GUPTA et al., 2010). Essa característica de uma certa invariabilidade pode ser uma propriedade importante justamente por ajudar na redução das incertezas, auxiliando e orientando


a construção das expectativas dos indivíduos sobre os outras nas ações para evitar as situações de vulnerabilidade (NORTH, 1990).


O cenário da investigação e seus caminhos

A região do Alto Guaporé, localizada no sudoeste do estado de Mato Grosso, no Brasil, limita-se em uma faixa de fronteira com a Bolívia. Uma das suas particularidades é fato de apesentar a ocorrência de aspectos naturais de três importantes biomas brasileiros: o Pantanal mato-grossense, o Cerrado e a Floresta Amazônica. Além disso, é divisor natural das bacias hidrográfica dos rios Paraguai e do Amazonas. Seu clima predominante é o tropical continental e presenta temperaturas média anuais próximas aos 24°C. O relevo, formado por superfícies onduladas e inclinadas, possui altitudes que variam entre 600 metros a 200 metros. Composta pelos municípios de Pontes e Lacerda, Vila Bela da Santíssima Trindade, Nova Lacerda, Conquista D’Oeste e Vale de São Domingos, cobre uma área total de 31.487,812 km², onde reside uma população de 67.774 habitantes, segundo censo a contagem populacional realizada em 2010 (IBGE, 2010).


Figura 1 – Localização geográfica do local do estudo na região do Alto

Guaporé (MT), Brasil.



Fonte: Elaborado pelo autor (2017).


Como se percebe, em termos proporcionais, é uma região ainda escassamente povoada, ainda que possua um histórico de ocupação bastante antigo. Na realidade ela ocorreu de modo mais intenso somente a partir da segunda metade do século XX com os fluxos migratórios motivados pela abertura das rodovias que ligam a região com a capital do estado de Mato Grosso e com a porção meridional da floresta amazônica, atraídos pela oportunidade de trabalho nas fazendas que exploravam a madeira, e se estenderam até o final da década de 1980.

Uma das características importantes para se compreender adequadamente os desdobramentos que ocorreram no processo de ocupação nessa época está relacionado com a fragilidade do funcionamento do aparato institucional estatal. Isso fez com que inúmeras áreas fossem objeto de contestação que envolviam a disputa pela titularidade entre latifundiários e percebendo a fragilidade de mobilização coletiva desses, visto que geralmente residiam em outros estados, acabou por incitar um movimento que resultou na ocupação de várias delas, sobretudo as improdutivas, por parte de grupos de “sem terras”, recém-chegados na condição de migrantes. Esses, em sua maioria, eram originários das regiões noroeste do estado de São Paulo e sul de Minas Gerais e, em menor número, do nordeste sul-mato-grossense, locais onde, tradicionalmente, a pecuária é uma atividade produtiva economicamente bastante importante.

Além disso, a recorrente ausência de registros formais de titulação fundiária nesse período fez com que os posseiros também estimulassem outros membros da própria família, ou conhecidos próximos de sua localidade de origem, a adquirirem, desses invasores, lotes próximos aos seus ou na mesma área. A oportunidade de saírem de uma condição de empregado rural ou mesmo a possibilidade de acessaram lotes maiores aos que possuíam em seu local de origem em razão do baixo preço das terras à época, são apontados como fatores que motivaram essa dinâmica de ocupação. Portanto, os processos de ocupação e/ou de invasões de terras fazem parte da formação da agricultura familiar nessa região. Atualmente, pouco mais de 72% dos estabelecimentos rurais se enquadram nessa categoria, segundo o último Censo Agropecuário (IBGE, 2006), cuja principal atividade produtiva ainda é a pecuária bovina.

Mas, é preciso salientar que tais processos também impactaram na forma de ocupação da terra na região, provocando uma profunda transformação no ambiente natural. Um primeiro aspecto que precisa ser observado é que em locais que são divisores de águas e que sofreram uma ação antrópica de substituição em suas áreas florestadas, há uma tendência de redução significativa de precipitações, induzindo a diminuição da vazão dos rios na escala da bacia hidrográfica. (COE et al., 2009). Marengo (2004) observa que tal mudança nos níveis e regimes pluviométricos já foi registrado inúmeras vezes ao longo da segunda metade do século XX na região Amazônica. Adicionalmente, ainda, estudos demonstram que em decorrência dos aumentos na descarga na estação chuvosa e na sua carga de sedimentos, a ocorrência de períodos maiores e mais frequentes de secas tendem a ocorrer com maior frequência (DAVIDSON et al., 2012). Um segundo ponto a ser sublinhado é que a ação de delimitar uma área, seguida pela derrubada da mata para iniciar o plantio da roça e a construção de um local de moradia para assegurar a posse


sempre foi entendida como um investimento por parte dos agricultores em toda área da Amazônia Legal.

Porém, esse desmatamento inicial representava apenas uma etapa do processo da transformação antrópica do ambiente. Ele consistia em uma estratégia típica utilizada pelos migrantes em áreas de fronteira agrícola em virtude do conhecimento limitado dos ciclos e das dinâmicas naturais do local, que seguia com a introdução de pastagens destinadas à pecuária bovina extensiva (FERREIRA; SALATI, 2005). Pelo fato de ser pouco dispendiosa, em razão do emprego do sistema de corte-queima e consistir num sistema de produção bastante comum em localidades com terra barata disponível e exigir pouco preparo para o solo e demandar ínfimas restrições associadas ao relevo, a pecuária bovina sempre foi uma atividade econômica com grande importância em termos econômicos (RIVERO et al., 2009).

Portanto, como vamos demonstrar adiante, as estratégias de subsistência mobilizadas pelos agricultores familiares na região do Alto Guaporé (MT), em face de um cenário de mudanças em seu ambiente local, visavam adaptar-se ou enfrentar as transformações do contexto social e institucional, e que, por consequência, afetaram os usos da terra e provocaram uma mudança nos fatores ambientais. Para demonstrar tal influência, foi utilizado um conjunto de instrumentos para a coleta de dados que tivessem como principal contribuição possibilitar uma visão ampliada acerca do contexto onde a pesquisa está inserida. Se privilegiou uma adaptação da tipologia apresentada por McCarthy et al. (2001). Para eles, a habilidade para se produzir respostas adequadas é condicionada pelas condições existentes no ambiente para lidar com as consequências. Há, desta feita, a tentativa em mostrar como os diferentes fatores condicionam e, em última instância, modelam as situações de vulnerabilidade.

Para tanto, foram consideradas, enquanto categorias de análise, as estratégias mobilizadas nos processos de ocupação, da infraestrutura, do acesso disponível aos mais diferentes serviços públicos, as práticas produtivas desses agricultores e as formas de uso e de apropriação do meio natural. O principal motivo está na observação de que uma combinação particular da qualidade e da disponibilidade destes elementos pode assumir e representar bases explicativas distintas para caracterizar uma situação de vulnerabilidade.

Nas observações de campo se privilegiou identificar, por meio de um roteiro de perguntas semiestruturadas, a maior diversidade possível de estratégias produtivas desenvolvidas, ou, aquilo que Ploeg (1994) define como “estilos de agricultura”. Já para a definição do universo empírico, composto por cinquenta e um agricultores familiares, optou-se por uma escolha do tipo não probabilístico intencional. Ele consiste numa opção não aleatória do universo empírico, pois, pressupõe que os indivíduos sejam escolhidos propositalmente por serem identificados e avaliados previamente como possuidores de elementos ilustrativos do universo a ser investigado (RICHARDSON, 2009; CRESWELL, 2010). Para complementar essa etapa, as informações julgadas como importantes e relevantes, ou ainda, que de algum modo pudessem auxiliar na compreensão das condições que podem levar a uma situação de vulnerabilidade, foram realizadas anotações de aspectos observados e não contempladas pelo roteiro da entrevista, geralmente


colhidas das conversas informais ou então de comentários de pessoas não entrevistadas formalmente, como outros membros da família ou vizinhos.


A agricultura familiar e suas estratégias

Historicamente, a produção animal, sobretudo a bovina, se estabeleceu desde o processo de ocupação da região como a atividade agrícola mais importante em termos de estratégia produtiva. Todavia, a diversificação observada ao longo dos anos gerou um mosaico social muito mais complexo e seguramente a tornou menos vulnerável em sua capacidade de adaptar-se ou enfrentar as mudanças ambientais contemporâneas. Obviamente que esse julgamento não pode ser tomado enquanto um aspecto generalizado a todos os seus componentes. Isso poderia ser interpretado como uma tentativa de simplificar e homogeneizar, padronizando a diversidade e a complexidade, não somente das trajetórias dos projetos individuais, como também das mútuas influências exercidas pelo conjunto de fatores que modelam a vulnerabilidade e a resiliência dessas famílias. Ao mesmo tempo, poderia igualmente sugerir uma avaliação enviesada de um processo adaptativo que, supostamente, ocorreu de modo mecânico ao responder a um processo de estímulos e restrições externas.

Desse modo, a análise da vulnerabilidade dos agricultores familiares foi realizada observando-se a utilização de quatro lógicas de práticas produtivas distintas para garantir a sua subsistência: uma primeira, composta por onze famílias, utilizam a bovinocultura de corte, ou seja, a mesma utilizada no período de ocupação, obviamente que em um contexto e em condições completamente distintos. Uma segunda lógica, agrupa quatorze famílias de agricultores. Esses promoveram uma adaptação no sistema produtivo ao optar por um padrão misto entre a pecuária bovina destinada ao corte e a leiteira. Já a terceira, contempla os que adotaram a atividade pecuária leiteira como fonte de subsistência para garantir a reprodução econômica e abrange o maior contingente de agricultores, vinte e uma famílias, no total. Por fim, uma quarta lógica, composta por cinco famílias, agrupa as que optaram pela diversificação produtiva, combinando práticas agrícolas e não agrícolas São as características que configuram a vulnerabilidade desses grupos de agricultores que passamos a analisar a seguir.


A reprodução da lógica baseada no uso da pecuária de corte

Formada por propriedades quase todas bastante extensas, ao serem comparadas às demais, as pessoas desse grupo de famílias optam por viabilizar sua subsistência com a mesma lógica produtiva utilizada no período da ocupação da área, ou seja, a criação de gado bovino de corte. É formada, em sua grande maioria, por agricultores de primeira geração. Estão, quase todos, na propriedade desde a primeira metade da década de 1990, ou mesmo antes, e encontram-se em uma condição de estabilidade econômica bastante variada. Em boa medida, isso está associado ao tamanho das terras que possuem para o desenvolvimento da atividade nas propriedades.


É composta por indivíduos que apresentam uma idade que chega aos 75 anos, ou próximos a esse limite, onde geralmente apenas o próprio casal mantém o domicílio na propriedade. Para realizarem as atividades que demandam o emprego mais intensivo de força de trabalho, como o manejo do gado bovino em épocas de vacinação, precisam recorrer a contratação eventual de mão de obra externa apenas de maneira eventual. Ou então, acabam mobilizando a ajuda de algum dos membros da família, sobretudo entre os agricultores que residem em locais mais afastados. Esses, geralmente mantém ao menos um dos filhos com alguma propriedade rural próxima, que não somente facilita a colaboração em família, como também é apontado como uma condição que melhora a forma de uso de manejo das pastagens. É bastante usual, principalmente nos meses de maior estiagem, eles deslocarem parte do rebanho às áreas de pastagens vizinhas nas propriedades dos filhos, diminuindo assim as taxas de lotação e contornando uma possível redução na oferta alimentar de pastagens encontrada pelos animais criados de maneira extensiva, criando alternativas às limitações impostas pelo sistema natural.

Ao mesmo tempo que a característica de apresentarem uma idade mais avançada é uma condição que os limita e fragiliza em desenvolver todo o conjunto das atividades, sua vulnerabilidade é mitigada por receberem recursos de transferência de programas sociais, como a previdenciária rural. Os benefícios sociais que programas como a aposentadoria rural cumprem no combate à pobreza rural já são relativamente bem reportados a partir dos vários estudos feitos no Brasil (DELGADO; CARDOSO JR., 2000). Evidentemente que não se está insinuando que a condição e capacidade de responder positivamente às mudanças do ambiente para esse grupo de famílias esteja condicionado a esse tipo de benefício. O objetivo é demonstrar sua importância para a manutenção cotidiana dessas pessoas, visto que a renda obtida com a pecuária de corte não oferece uma remuneração que esteja disponível imediatamente para fazer frente a alguns tipos de gastos, na medida em que ele obedece um intervalo relativamente longo em termos de retorno monetário. A reversão do montante de recurso financeiro investido para servir de mecanismo de reprodução material pode estender-se, em alguns casos, a um período que pode chegar entre dois a três anos, após a sua aplicação inicial.

Portanto, é com a renda da aposentadoria rural que arcam com compromissos essenciais no sentido de viabilizar a reprodução econômica familiar. Isso inclui o seu uso na aquisição de parte dos gêneros utilizados na alimentação diária, até o pagamento de despesas eventuais com remédios não supridos pelo serviço público de assistência médica. Como se observa, ela cumpre a função de servir como uma “fonte estratégica” que financia uma parte significativa das atividades cotidianas das famílias dos agricultores que a recebem.

A vulnerabilidade desses agricultores também está diretamente relacionada com os mecanismos envolvidos no processo de conquista e posse da terra. Como todos são migrantes de outras regiões brasileiras, chegaram motivados e estimulados pela possibilidade de se tornarem donos de uma área de terra, até então, escassamente aproveitadas em termos de exploração econômica. Todavia, tais “aquisições” geralmente não seguiram os trâmites legalmente preconizados e eram geralmente apenas pactuados verbalmente com os demais ocupantes. Como não havia qualquer segurança jurídica para comprovar a regularidade de sua situação fundiária, isso os deixava bastante vulneráveis


no seu direito de garantia da posse diante da ação de alguns setores do Estado, sobretudo os ligados ao sistema judiciário e à segurança pública.

A estratégia encontrada para superar tal adversidade foi o de organizarem-se coletivamente na defesa dos interesses comuns, sobretudo para aqueles que se localizam em áreas mais afastadas dos centros urbanos. A participação efetiva em organizações de mobilização coletiva, independentemente do seu caráter ser formal ou informal, favoreceu o estabelecimento de relações de reciprocidade e sobretudo de confiança mútua, tanto que é apontado como decisivo para que ocorressem a melhoria nas condições de trafegabilidade das estradas e no acesso à rede de energia elétrica. Todavia, se esse fator melhorou a resiliência desses agricultores em períodos mais longínquos, atualmente parece assumir uma conotação de importância menor. Os relatos apontam que essa mudança de postura está associada a uma percepção de que há poucos riscos envolvidos em continuarem desenvolvendo a atual atividade com a finalidade de garantir as condições de vida julgadas como adequadas para a reprodução econômica da família.

Contudo, o estabelecimento e a inserção em redes de relações sociais para troca de conhecimento, que a participação em associações propicia, são identificados por estudiosos como Adger (2003), como fatores importantes na avaliação da capacidade adaptativa dos agricultores. Ele argumenta que a gestão e a forma de uso dos serviços ecossistêmicos produzidos pelo meio natural de um local são fortemente dependentes das redes e dos fluxos de informações que os indivíduos e grupos conseguem mobilizar e fazer circular no processo de reprodução social e material nesse espaço, sobretudo quando esses são migrantes. Dito de outra maneira, ele sugere que a forma de ação e mobilização coletiva local é, em muitos casos, um determinante central para que se consiga lidar adequadamente, ou não, com as mudanças que ocorrem no ambiente.

Outro aspecto que influencia na análise da vulnerabilidade dessas famílias encontra ressonância nas observações realizadas por Abramoway et al. (1998). Buscando proteger a propriedade da necessidade de um processo de subdivisão futura, há várias situações em que se promove uma espécie de “estímulo” para que os filhos, sobretudo do sexo feminino, migrem para os centros urbanos, abrindo a possibilidade de eleger um entre os filhos/ herdeiros como seu sucessor. Há a percepção entre os agricultores que uma subdivisão no tamanho da propriedade poderia dificultar a manutenção da reprodução econômica familiar. Em outras palavras, colocaria em risco os resultados obtidos o longo dos anos de trabalho e superação de dificuldades.

De fato, a preocupação manifestada pelos agricultores é, em alguma medida, procedente. Ao se dividir a propriedade e continuar com a criação de gado bovino de corte, haveria uma dificuldade maior para alcançar uma condição ideal que garanta a subsistência familiar. Há algumas razões bastante práticas para isso. Como ela é realizada de modo extensivo à pasto, em que não é adotada muita tecnologia, para ser sustentável economicamente, geralmente demanda uma área disponível maior, quando comparada aos demais sistemas de produção na bovinocultura.

Todavia, há uma dificuldade crescente para incorporar novos espaços, sobretudo em locais mais próximos aos centros urbanos. Em virtude de sua facilidade de acesso e


de comunicação, essas passaram também a ser disputadas por aqueles que Kirby et al. (2006) denominaram de “proprietários ausentes”, elevando seu preço significativamente ao longo da última década. Como o manejo de áreas descontínuas tendem ser mais difícil e oneroso, essa condição acaba por tornar-se um fator que limita os agricultores em sua capacidade de viabilizar sua atividade produtiva. Em outras palavras, uma possível redução no tamanho da propriedade em razão da divisão num processo de transmissão hereditária e a dificuldade de ampliar a área disponível para viabilizar sua lógica produtiva, podem ser apontados como condições que incrementam a situação de vulnerabilidade desses agricultores.

Portanto, ao continuarem mantendo inalterado um sistema produtivo, que embora possa ter sido eficiente e estratégico no processo de ocupação, demonstra a reprodução de um comportamento que consegue introduzir apenas melhorias incrementais. Não há uma revisão de pressupostos tradicionalmente arraigados, dinâmica que Pahl-Wostl (2009) descreveu sendo um circuito simples de aprendizagem. Essa condição inibe os processos de adaptação e pode levar a situações extremamente frágeis, mesmo diante das pequenas perturbações. O principal motivo é que neste contexto, as instituições e organizações são altamente inflexíveis, podendo sofrer de uma espécie de rigidez patológica aos processos de inovações humanas, incluindo as institucionais (ALLISON; HOBBS, 2004).


A transição da pecuária de corte para o leite

Nesse grupo, que envolve quatorze famílias de agricultores, a pecuária de corte passa a dividir espaço com a leiteira. Há, nitidamente, uma trajetória envolvendo uma adaptação na estratégia utilizada para garantir a subsistência familiar, e que tem como resultado, uma considerável diversidade e heterogeneidade nos fatores e nas condições que modelam sua vulnerabilidade. Portanto, analisar e avaliar sua capacidade de adaptar-se é uma tarefa consideravelmente mais complexa nesse caso.

Como possuem propriedades bastante inferiores às do grupo analisado anteriormente, há uma percepção bastante nítida, entre eles, de que depender exclusivamente da pecuária de corte para continuar suprindo de maneira satisfatória as necessidades consideradas como básicas pela família, seria inviável. Ou seja, ainda que alguns agricultores desse grupo sejam migrantes de regiões com forte tradição na atividade leiteira e tivessem o domínio necessário para desenvolvê-la, a dificuldade e as restrições das condições de infraestrutura disponível impuseram uma trajetória que, por um longo tempo, fez predominar um arranjo percebido por eles como insustentável. Portanto, o que fica bastante evidente é que o desencadeamento na mudança do comportamento, enquanto resposta adaptativa mobilizada pelos agricultores em sua forma de uso e exploração do meio natural foi, e ainda está, fortemente atrelado ao contexto de restrições impostas pelo meio social.

Eles observam que o acesso às políticas públicas especialmente destinadas à agricultura familiar, implementadas ao longo das últimas duas décadas, foram significativamente importantes para viabilizar uma reorientação na prática produtiva de introdução da atividade leiteira. Aliado a isso, a melhoria na estrutura de trafegabilidade nas principais vias rodoviárias rurais e a ampliação no acesso à rede de energia elétrica, fomentadas por


inciativas públicas que se destinavam ao incentivo e ao estímulo na criação de alternativas econômicas à produção agrícola local, também são lembrados como fatores primordiais na introdução dessa atividade. Porém, há de se ressaltar que essas condições ainda são bastante heterogêneas. Em outras palavras, há várias localidades onde o estado de conservação das estradas ainda restringe as possibilidades de acesso e de escoamento da produção em vários momentos ao longo do ano, o que as torna um aspecto importante a ser considerado na análise da vulnerabilidade, sobretudo as que ligam as propriedades mais distantes aos centros urbanos.

Segundo Lindoso et al. (2014), a localização e as condições de acesso às propriedades onde residem as famílias de agricultores são elementos que devem ser considerados quando se analisa sua vulnerabilidade. Aquelas localizadas em áreas rurais que muitas vezes poderiam ser consideradas como marginais, estão expostas a um maior isolamento, o que as faz raramente serem visitadas e/ou conseguirem acessar os serviços oferecidos pelos especialistas em extensão rural. Como muitas vezes o acesso às linhas de financiamentos mais favoráveis ao desenvolvimento da agricultura familiar requer a elaboração de um projeto que demanda o suporte e o domínio de um conhecimento técnico específico em sua apresentação para a concessão do crédito, essa condição de isolamento pode implicar em uma substancial restrição na capacidade de adaptação desses agricultores.

Se nas propriedades da lógica produtiva baseada na pecuária de corte havia um dinâmica em que apenas o casal, idoso, residia na propriedade, a condição demográfica de constituição familiar dos agricultores dessa lógica em termos de moradia revela uma dinâmica distinta daquela. As situações em que há um compartilhamento do local de residência com algum dos filhos do casal, ou então, uma transferência da titularidade e gestão na propriedade com objetivo de garantir a presença de algum deles, não é algo incomum. Como a atividade leiteira demanda uma quantidade de força produtiva maior, a presença desses conduzindo e/ou auxiliando aos mais antigos nas atividades cotidianas é apontado também como um dos fatores que ajudaram no processo de introdução de mudanças em rotinas e novas práticas produtivas, com um arranjo não mais baseado exclusivamente na pecuária de corte.

Além disso, a participação ativa em espaços como os sindicatos de trabalhadores rurais e/ou associações de produtores rurais, se constituiu em um importante instrumento nesse sentido. Os dados de campo sugerem que nesses locais há o compartilhamento do conhecimento tradicional enraizado no local e/ou trazido de sua origem e sua reelaboração cria um efeito sinérgico que faz com que se desencadeie o surgimento de novas atividades e de habilidades até então praticamente ausentes. Como consequência direta, abre a perspectiva de uma paulatina conversão de boa parte deles para a pecuária leiteira. Em outras palavras, é possível perceber, muito mais do que uma condição estática de presença mista de atividades, o desenvolvimento de um processo de transição de uma para outra, com a introdução de novas rotinas, tanto nas práticas quanto na organização das atividades produtivas desenvolvidas no interior da unidade familiar. De maneira especial essa revisão e reformulação dos antigos pressupostos na maneira de organizar a atividade produtiva se manifesta de modo mais evidente nas propriedades onde há uma presença de agricultores mais jovens ou naquelas em que esses auxiliam os mais antigos.


É evidente que pelo fato de conseguirem mobilizar alguns fatores que reforçam a sua condição de adaptabilidade diante das transformações do ambiente, não significa automaticamente que não esbarrem em barreiras que podem incrementar sua situação de vulnerabilidade. Uma primeira limitação importante está justamente nos mecanismos utilizados para a conformação do plantel do rebanho bovino para iniciar a passagem de um sistema para o outro.

Como a grande maioria das propriedades iniciou as atividades com a pecuária de corte, é bastante usual a utilização de raças bovinas de origem zebuína, ou quando muito, de gado “cruzado”, como são denominados os animais que possuem algum tipo de genética bubalina. Embora tenham uma boa capacidade de conversão alimentar para a produção de carne, são bastante restritas em termos de produção leiteira, com uma média diária bastante inferior às raças tipicamente destinadas a essa finalidade. A escolha por esse tipo de animal ocorre especialmente pelas suas características de rusticidade, e, portanto, bastante adaptados ao calor característico de regiões de clima tropical e sua boa tolerância ao ataque de parasitas endêmicos, como os carrapatos. Além do mais, como geralmente sua criação é realizada de modo extensivo, a docilidade que esses animais apresentam no seu comportamento também é lembrado como um aspecto que facilita o seu manejo.

Além do mais, não se pode perder de vista que o processo de desenvolvimento da pecuária de aptidão mista feita por esses agricultores ocorre pelo fato da atividade leiteira restringir-se, num primeiro momento, como forma de incremento do consumo familiar doméstico. Por essa razão, de maneira generalizada, foi utilizado o mesmo rebanho destinado à produção de corte como forma de introdução dessa atividade. Em outras palavras, sua organização se inicia como uma atividade complementar da produção direta dos seus meios de vida, destinada a melhorar as condições da subsistência familiar, não havendo o estabelecimento direto de uma mediação com o mercado (PLOEG, 2010a). Ou seja, era destinado apenas para o autoconsumo familiar.

A atividade leiteira, enquanto parte integrante dessa lógica produtiva mista que esse grupo adota somente passa a incorporar valor mercantil a partir do momento em que há uma produção de excedentes em períodos mais recentes. Embora haja uma relação de troca ou comércio com o mercado, esta tem um caráter singular. Sua organização é estabelecida segundo uma lógica em que a ideia consiste em produzir para a subsistência familiar, e apenas o excedente é atribuído a função de servir como fonte complementar da renda familiar. Nesse sentido é possível sustentar que o modelo de divisão social do trabalho adotado por esse grupo de agricultores, em que há uma nítida configuração em que a família produz parte de seus próprios meios de vida, além dos excedentes destinados à comercialização, não coaduna com os mecanismos gerais que regem o conjunto da economia baseado na especialização e dedicação aos produtos mais rentáveis, segundo as condições sociais e naturais do local.

Essa condição, se, por um lado, reduz sua vulnerabilidade à medida que não os expõem diretamente a uma mediação do mercado para garantir à subsistência familiar, por outro, pode fragiliza-los. Isso porque a produção desse excedente é altamente dependente de várias condições, tanto externas como internas, cuja habilidade e o poder de exercer o controle dos possíveis efeitos é muitas vezes parcial. Um exemplo disso está no fato de


haver uma concentração de poucas empresas que beneficiam o leite no mercado local, fazendo com que haja a inobservância do que estabelece a legislação federal sobre a fixação prévia do preço desse tipo de mercadoria, que, em tese, poderia fazer com que os agricultores optassem pela que melhor lhes remunerasse pelo produto (BRASIL, 2012). Fenômeno semelhante já havia sido observado por Ploeg (2010b) ao analisar o processo de concentração no beneficiamento no mercado de leite europeu que ocorreu com a liberalização do comércio, induzindo severas distorções nos preços e levando à uma redução sem precedentes na possibilidade de assegurar a reprodução familiar desses produtores.


A mobilização de uma estratégia baseada na pecuária leiteira para a subsistência familiar

O terceiro conjunto de agricultores é o mais numeroso dentre eles. Composto por vinte e uma famílias rurais, utiliza, como forma de viabilizar sua subsistência, uma prática produtiva baseada na atividade de bovinocultura de leite. Embora seus membros estejam situados em áreas que passaram a ser ocupadas num período relativamente antigo, uma grande maioria das famílias passou a residir na área em um período bastante posterior à fase de sua ocupação inicial, fato que influencia diretamente sobre as práticas de uso e gestão dos elementos do meio natural, sobretudo na dinâmica do processo de antropização dessas áreas.

Segundo Mattos (2010), um aspecto importante a ser observado para se a avaliar a vulnerabilidade entre os agricultores com um perfil pecuário em ambientes amazônicos, e que se verifica igualmente nesse caso, está na constatação de que é frequente haver uma forte relação entre os processos em que há uma subdivisão de lotes e o significativo aumento das áreas de desmatamento que passam a ser destinadas às pastagens. Ou seja, há um movimento de estabilização da dinâmica do desmatamento no transcorrer dos anos dentro do ciclo de ocupação familiar de uma área, ao passo que, ao se estabelecer uma nova titularidade, como parte de uma estratégia em que os antigos proprietários se desfazem de uma porção de suas terras com os novos ocupantes, passa a haver a incorporação de novas áreas à atividade produtiva.

No caso específico desse estudo, foi possível verificar que a associação extrapola as situações que se restringem àquelas em que ocorreram subdivisões no tamanho da propriedade. Mesmo em áreas onde se estabeleceu uma simples permuta, com a entrada de novas famílias nos lotes em razão da migração dos antigos ocupantes, sem sua redução em termos de tamanho, na maioria das vezes, acabou incorrendo em novas substituições de áreas florestadas por pastagens. É evidente que há outros fatores que necessariamente devem ser considerados relevantes na decisão para se incorporar uma nova área à atividade produtiva, mas o fato de haver uma maior rotatividade nos lotes, tende igualmente a estimular uma dinâmica em que facilmente se constata um processo de desmatamento adicional.

Uma outra observação que parece ser relevante ao analisar-se a vulnerabilidade desses agricultores é o fato de apresentarem uma constituição demográfica familiar relativamente


ampliada, quando comparada com a maioria das demais lógicas produtivas analisadas nesse estudo. É bastante usual se constatar um ou mais dos filhos dos agricultores residindo na propriedade, e que invariavelmente são responsáveis por colaborarem nas atividades cotidianas, quer sejam as domésticas, atribuídas geralmente aos do sexo feminino, quer sejam nas produtivas, sob a responsabilidade dos de sexo masculino. A necessidade em mobilizar e organizar uma quantidade maior de força de trabalho no interior nas unidades familiares, em razão das próprias características da atividade, mesmo em locais onde há um certo grau de tecnificação e mecanização, é apontado como um fator que incrementou a sua capacidade de fazer frente as situações que poderiam vulnerabilizar sua reprodução social.

Foi recorrente a tentativa deles em enfatizar o trabalho familiar enquanto elemento que reforça os laços da coesão interna e os “liga com a terra”, avaliados como fatores que melhoraram a vida deles. Há, portanto, um modo distinto de apropriação dos elementos da natureza (TOLEDO et al., 2002). Em outras palavras, mais do que uma necessidade para viabilizar uma prática produtiva, ela está atrelada à noção de trabalho coletivo de seus membros, em que há uma preocupação bastante explícita em torno do processo de sucessão familiar.

É evidente que o simples fato dos filhos morarem e trabalharem junto à família na propriedade não configura nenhuma garantia de que haja um processo de continuidade geracional na condução da atividade e da propriedade, nem tampouco pode ser entendido como sendo um atributo que automaticamente altera a situação de vulnerabilidade deles. No entanto, Martins (2009) observa que em áreas de fronteira, essa espécie de início da socialização dos filhos no trabalho rural geralmente está associada à noção de valor, em que a iniciativa para a garantia da subsistência familiar não resulta primordialmente de uma lógica econômica de produção de mercadorias e a transmissão da terra, enquanto patrimônio, não se esgota somente na noção de uma riqueza material e produtiva.

Embora não se possa negar que há, evidentemente, a finalidade em se assegurar os meios de vida que garantam a reprodução material, esta é necessariamente precedida por uma lógica em que se opera simultaneamente elementos de caráter simbólicos e culturais, transmitidos e retransmitidos enquanto conhecimento acumulado. Lebel et al. (2010) sublinham que esse tipo de aprendizagem cumpre uma importante função que é a de ajudar na redução das expectativas de exposição aos riscos inerentes a um cenário em que há o predomínio tanto da incerteza informacional quanto da normativa.

Todavia, os agricultores percebem que as habilidades e competências, tradicionalmente associadas a um quadro de imaginação associativa de experiências práticas do cotidiano, de um saber-fazer, organizadas e estruturadas na forma de um sistema de conhecimentos acumulados, são insuficientes para produzir respostas eficientes nos dias atuais. Eles compreendem que elas precisam ser continuamente atualizadas e reatualizadas para que possam produzir os efeitos adaptativos esperados, e por isso, sua capacidade de adaptação é igualmente dependente da disponibilidade de apoio técnico.

Muito embora tenham impactado a ambiente local com a redução de áreas florestadas, as evidências empíricas demonstram que as orientações desses profissionais para que implementassem práticas agrícolas que reduzem as restrições ambientais, foi fundamental


para que houvesse um manejo mais adequado das pastagens. É relativamente comum a utilização de um conjunto de práticas que evidencia uma preocupação e um zelo com o manejo na formação e na divisão em piquetes das áreas de pastejo. Em razão da própria restrição de espaço para aumentar o tamanho das pastagens, a adoção dessa técnica, pouco usual nos agricultores que adotam outras lógicas produtivas, facilita igualmente o controle da situação sanitária dos animais. Além disso, possibilita um manejo que promove o descanso e permite a regeneração e a recomposição nutricional das gramíneas utilizadas como capim, o que acaba incrementando a produtividade final média na relação animal/área.

Outra medida que demonstra a importância de uma orientação técnica adequada, foi observar a utilização de procedimentos de silagem ou então a destinação de parte da área da propriedade ao plantio de alguma capineira. Essas medidas evitam, ou amenizam, os prejuízos causados pela diminuição na média da produção diária de leite por animal em função da falta de uma alimentação adequada, sobretudo nos períodos do ano de maior estiagem, quando o fornecimento de forragem natural a campo é escasso e de baixa qualidade para suprir a alimentação dos animais. Ao utilizarem essas técnicas também suprem, muitas vezes, a necessidade de recorrer aos insumos externos produzidos no mercado, geralmente onerosos economicamente. Na prática é uma ação de internalização dos recursos (PLOEG, 2010a).

Porém, é preciso ressaltar que a possibilidade dos agricultores em conseguir acessar os serviços disponibilizados pelos especialistas em extensão rural é bastante heterogênea. Como geralmente ele é mantido pelos entes públicos, é comum haver uma série de limitações na infraestrutura disponível para a sua prestação. Dificuldades essas que compreendem desde um dimensionamento equivocado na quantidade de profissionais técnicos disponíveis para tal, até o número insuficiente de meios de locomoção disponíveis para as atividades, o que dificulta atingir uma cobertura territorial mais ampla, sobretudo nos locais mais afastados.

Além do mais, se retomarmos a noção de que a possibilidade de produzir respostas ou mobilizar os recursos adequados e/ou necessários em um processo de formação de uma situação da vulnerabilidade é altamente dependente da capacidade dos agricultores e de suas famílias para acessarem as principais informações, a importância da cobertura desse tipo de serviços ganha contornos ainda mais claros. Isso porque alguns autores, como Lindoso et al. (2014), o acesso à informação adequada, além da participação dos trabalhadores rurais em associações e sindicatos, é instrumento fundamental para que a capacidade de usar esse conhecimento tanto para implementar sua prática produtiva quanto para o exercício de sua cidadania, criando, assim, condições mais adequadas para que a adaptação às mudanças ambientais, possa ser desenvolvida.


Diversificação produtiva: as estratégias que combinam

práticas produtivas agrícolas e não agrícolas

Em alguns aspectos, as cinco famílias de agricultores que compõem essa lógica de viabilizar sua subsistência apresentam algumas similaridades com as apresentadas na


seção anterior, como o fato de serem migrantes de outros estados brasileiros e residirem na atual propriedade em um tempo relativamente curto. Contudo, há uma série de aspectos que os distinguem em si.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, esse tipo de agricultor foi muitas vezes avaliado como sendo uma categoria residual em termos analíticos, ou seja, seriam gradativamente suprimidos à medida que o ciclo de modernização produtiva no meio rural se concluísse e a matriz sustentada no binômio urbano-industrial se impusesse definitivamente. À época, foram muitas vezes tratados pejorativamente como “agricultores a tempo parcial” (FÜLLER, 1983). O interesse acadêmico por esse tipo de agricultor e a sua reintrodução nos debates e nas agendas políticas, somente volta a ocorrer quando passaram a ser associados à atual noção de multifuncionalidade que os espaços rurais assumiram e crescia a constatação de sua importância na manutenção da sustentabilidade do meio natural (ANJOS, 1995).

Embora essa combinação de atividades produtivas agrícolas e não agrícolas não seja nenhuma novidade e muito mais uma característica recorrente dos recursos utilizados no meio rural para garantir a subsistência familiar, Schneider (2009) considera que essa associação com os chamados “agricultores a tempo parcial” é inapropriada. Segundo ele, esse tipo de diversificação nas práticas produtivas já não é mais um recurso casual e/ ou uma condição transitória e circunstancial para garantir a reprodução econômica do agregado familiar, como usualmente acontecia. A combinação desses tipos de atividades nos dias atuais é dotada de uma rotina organizada e estável, portanto, uma estratégia planejada de inserção no mercado.

Vários estudiosos avaliam que a condição de proximidade com os centros consumidores em espaços urbanos é muitas vezes essencial, ainda que não imprescindível para que haja uma tendência das famílias em diversificarem as suas fontes de renda que atendam tais pressupostos. Além disso, tais inciativas demandam inovações nos processos de trabalho e de produção. Ou seja, é preciso um conjunto de estratégias que facilite a acessibilidade aos mercados locais para a venda de produtos e ao mesmo tempo possibilite um aumento da renda das famílias. Os mecanismos para tanto geralmente residem em se evitar um circuito longo dos produtos agrícolas até o consumidor. Além disso, o acesso às redes de comunicação e de informação, invariavelmente são relatados como condições que melhoram esse arranjo. Portanto, uma renda mais diversificada de fonte que garante a subsistência familiar pode, em tese, ser um fator que incrementa consideravelmente sua resiliência, sobretudo em situações de crises, quando estão expostas às consequências de transformações abruptas e muitas vezes inesperadas, mesmo quando os tamanhos das propriedades são relativamente menores, como esses que estão sendo analisados nesse grupo de agricultores.

Com lotes de tamanhos que variam entre dezessete e não chegam aos cinquenta e cinco hectares, alguns desses produtores criam um pequeno rebanho bovino destinado à produção de leite, ao mesmo tempo em que mobilizaram uma estrutura alternativa própria, tanto de coleta quanto de uma redistribuição desse produto. Ou seja, em vez de entregarem sua produção in natura aos laticínios que atuam na região, estabeleceram ao longo de vários anos junto aos consumidores urbanos, uma relação que lhes permite vender


seu produto através de um sistema pessoal de entrega diária, porta-a-porta, a granel, por um valor substancialmente maior ao que receberiam das beneficiadoras de leite.

Contudo, um aspecto interessante nessa estratégia, é que nem sempre destinam somente a mercadoria que resultou de seu próprio trabalho em família a esse canal alternativo de distribuição em que operam. Quase sempre coletam e comercializam parte da produção diária de leite de agricultores de propriedades próximas. O objetivo é assegurar a estabilidade no fornecimento aos seus consumidores. O motivo para tal estratégia é que, como há uma drástica redução nos níveis de precipitação pluviométrica ao longo do período de estiagem, que provoca uma restrição em termos de pastagens adequadas em termos nutricionais e nem sempre a suplementação com insumos externos à alimentação animal é compensatória em termos de retorno financeiro, a queda no volume total de produção diária do leite que essa restrição natural ocasiona, poderia comprometer o equilíbrio do funcionamento do sistema de entrega que eles operam.

Em outras palavras, o modo que encontram para melhorar a renda familiar foi acordarem (informalmente) com os agricultores vizinhos o fornecimento de volume diário de leite, pré-estabelecido, para garantir o abastecimento aos seus clientes. Como há uma oscilação bastante significativa ao longo do ano na remuneração que os laticínios da região praticam com os seus fornecedores em função de uma série de critérios, os agricultores que organizaram essa redistribuição estabelecem um valor único, ligeiramente superior ao teto máximo praticado pelo mercado, o que contribui para que não haja descumprimento da regra acordada. A vantagem de os agricultores parceiros integrarem tal circuito não se restringe a uma melhor remuneração pelo produto e uma consequente rentabilidade maior que essa quantidade gera ao final do mês, mas, o fato de saberem com antecedência o valor a ser recebido pela mercadoria, prática não observada pelos laticínios locais, o que lhes possibilita um melhor planejamento financeiro.

Algumas iniciativas de diversificação realizadas por meio da agroindustrialização são exemplos que ilustram o potencial que o funcionamento do aparato institucional possui em reduzir ou asseverar as condições que podem induzir à uma situação de vulnerabilidade. Um agricultor que explorava artesanalmente a produção de aguardente de cana e outro, a produção caseira de vassouras de piaçava, acabaram sendo excluídos do mercado consumidor local em razão das restrições impostas por normas de regramentos legalmente institucionalizados. Como a legislação, tanto do funcionamento do mercado de bebidas alcóolicas quanto o de produtos de origem florestal é extremamente burocrática, suspenderam a produção e buscaram novas maneiras de viabilizar a subsistência familiar.

Por outro lado, a disposição dos gestores municipais em criarem espaços exclusivamente destinados à comercialização de produtos agrícolas como as feiras livres, ou ainda melhorando e adequando a infraestrutura disponível das já existentes, foram ações que colaboraram para que houvesse não somente um desenvolvimento na diversificação baseada em atividades agrícolas, como também possibilitou que esses dedicassem uma parte substancial de seu tempo às atividades não agrícolas.

Como há uma imensa dificuldade em ampliar o tamanho do espaço a ser destinado à atividade produtiva, alguns agricultores decidiram adotar uma lógica em que associam


a produção de hortifrutigranjeiros, com a comercialização deles nos espaços públicos ou então, atendendo aos programas oficiais do governo federal que estimulam a aquisição direta de produtos da agricultura familiar, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) ou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), estes em menor proporção. Dito de outra maneira, essas famílias de agricultores adotam uma lógica para garantir a subsistência familiar em que, além de produzirem parte dos produtos agrícolas que comercializam nas feiras livres, destinam outra ao abastecimento criado exclusivamente pela demanda institucional.

Os dados empíricos sugerem que o sucesso da capacidade de mobilizar e construir um arranjo de práticas produtivas que permite uma adaptação bastante flexível desses agricultores está conectado com o fluxo e o modo que as informações consideradas como relevantes sobre novas tecnologias e as práticas adequadas de gestão são difundidas. Assim, os laços sociais informais que esses agricultores construíram lhes proporcionam um canal pelo qual as informações fluem, e por isso, são percebidos como mecanismos de desenvolvimento e dinamização do conhecimento, capazes de interferir nas condições que podem levar à vulnerabilidade. Isso ocorre, em grande medida, porque esse tipo de estratégia permite que haja um fluxo maior de interações entre uma variedade de agentes amplamente heterogêneos, o que leva a uma redução da incerteza e, ao mesmo tempo, favorece as tomadas de decisão dentro de um quadro institucional específico.

Como se percebe, uma compreensão mais atenta sobre as formas de compartilhamento de informações pode oferecer pistas importantes sobre como o acesso a elas se conecta ao controle sobre os processos que modelam a capacidade de adaptação às mudanças ambientais. Isso porque as pessoas usam tais prerrogativas para adquirirem uma quantidade maior de informações de qualidade, o que muitas vezes remete a uma distribuição desigual e desproporcional.

Alguns estudiosos já haviam notado, que o padrão de interações, enquanto efeito de feedback da mútua influência exercida que os agricultores estabelecem, tanto com o meio natural quanto como o social, é uma condição essencial para que o ambiente institucional seja eficaz e possa gerar as condições para que se promova uma adaptação bem sucedida (LEBEL et al., 2010; PAHL-WOSTL, 2009). Em outras palavras, é preciso estar atento ao fato de que os processos adaptativos mobilizados de maneira distinta pelos agricultores, quando não acompanhados da geração de um efeito coletivo da confiança, de auto- organização e de colaboração, podem induzir uma tendência de reforçar e não suprimir as desigualdades sociais. Não é preciso nem dizer que isso muitas vezes pode reforçar as hierarquias sociais existentes.


Considerações finais

Há cada vez mais a convicção de que as mudanças ambientais contemporâneas se converteram em um fator que afeta e coloca em risco e perigo as condições de vida na Terra. Resultado objetivo de uma utopia em que a racionalidade instrumental forjada por um modelo técnico-científico, sucumbe a constatação que estar em risco passou a ser parte indissolúvel da condição humana na modernidade.


À medida que a vida cotidiana pode ser influenciada ou determinada por acontecimentos ou instituições distantes, entender adequadamente como os ajustamentos a tais transformações ocorrem, ou podem ocorrer, passou a ser encarado cada vez mais como algo fundamental. Portanto, há, inevitavelmente, a necessidade de uma rediscussão dos aspectos que estão relacionados com os atributos da vulnerabilidade. Não apenas porque há uma série de aportes teóricos que utilizam o termo com significados muitas vezes completamente antagônicos, mas porque estratégias de adaptação nem sempre são planejadas e, muitas vezes, realizadas de modo autônomo, com soluções incrementais que aumentam as possibilidades do risco de processos que conduzam às más adaptações ou desadaptações. Além do mais, sua delimitação pode levar a uma ampla variedade de aplicações de políticas e implicações práticas nos processos que são priorizados para fazer frente às mudanças ambientais.

Neste artigo, procuramos demonstrar que ainda persistem lacunas importantes que dificultam uma melhor compreensão das características desses processos. Isso porque eles envolvem aspectos que não mais se restringem simplesmente à gestão dos riscos e dos perigos, invariavelmente amparados em orientações e soluções tecnocráticas ditadas pelos especialistas. Portanto, uma primeira dificuldade reside na frequente omissão da influência dos processos sociais e econômicos no que tange ao conjunto de respostas mobilizadas pelos indivíduos ou grupos sociais frente às mudanças do ambiente, sobretudo daqueles que residem no mundo rural.

As evidências empíricas colhidas pelo estudo, demonstram que as pessoas não ficam inertes às transformações que ocorrem em seu meio. A diversidade de estratégias e lógicas de práticas produtivas que os diferentes grupos de agricultores familiares da região do Alto Guaporé (MT) mobilizaram para viabilizar e/ou melhorar suas condições de vida não é casual. Elas refletem os fatores ou condições que lhe são temporal e espacialmente específicos e incluem, portanto, o funcionamento da dinâmica institucional. Os agricultores que optam por um sistema exclusivamente alicerçado na pecuária de corte conseguem continuar a viabilizar sua estratégia, em grande medida, pelo fato de se beneficiarem com a transferência de recursos de programas sociais, como a aposentaria rural e terem a sua disposição áreas relativamente extensas. Quando essas condições não são atendidas, há uma tendência em se optar por uma adaptação nos mecanismos que viabilizam a subsistência familiar.

Essa influência é igualmente constatada nos demais arranjos produtivos identificados no estudo. Os resultados de algumas políticas públicas orientadas ao desenvolvimento da agricultura familiar, que influenciaram de maneira decisiva na melhoria das condições de trafegabilidade das estradas e no acesso à rede de distribuição de energia elétrica, bem como aos serviços de orientação técnica, foram fundamentais para a implementação da atividade leiteira. Ao mesmo tempo, podem se tornar uma barreira, como as verificadas nas iniciativas de diversificação, como a produção artesanal de aguardente de cana e de vassouras de piaçava.

A análise dos dados empíricos ainda sugere que algumas das condições geralmente apontadas como aspectos que reforçam a capacidade de adaptação às mudanças ambientais, modificaram seu status junto aos agricultores ao longo do tempo. A participação cada


vez menos ativa em organizações coletivas como as associações de trabalhadores rurais geralmente reflete um estado em que há poucos espaços para aprendizagem coletiva e, portanto, atenua sua capacidade de adaptação, sobretudo em face às mudanças mais radicais e repentinas nas condições do ambiente. Em outras palavras, essa característica identificada em alguns grupos pode comprometer sua resiliência e a sua capacidade adaptativa futura.

Portanto, é preciso considerar que as decisões das pessoas são julgamentos que não estão invariavelmente condicionados a uma projeção de cenário futuro provável das condições dos fatores naturais. Tais perspectivas, entendidas aqui como reducionistas, apresentam fragilidades enormes e claras limitações em termos de capacidade explicativa aos processos de adaptação. Elas ignoram a importância que os fatores econômicos, políticos, culturais e institucionais possuem, direta e indiretamente, sobre as avaliações e as possibilidades das escolhas das ações para se ajustar às mudanças ambientais.

Quando se considera a enorme gama das respostas das sociedades humanas e dos indivíduos frente a esse fenômeno, como as apresentadas por esse trabalho, percebe-se facilmente que a vulnerabilidade possui atributos que são socialmente diferenciados. Praticamente todos os riscos naturais e as causas sociais da vulnerabilidade impactam de maneira distinta os diferentes grupos ou indivíduos da sociedade. Ou seja, a vulnerabilidade não é uma noção que reflete simplesmente a dimensão da exposição física ou sendo o resultado residual de uma condição social.

Isso implica a necessidade de se prestar mais atenção nas causas que podem induzir a criação de uma situação que pode fragilizar a capacidade das pessoas em responder adequadamente a uma mudança no ambiente, do que propriamente se buscar demonstrar como, e, em que medida, a combinação de diferentes características podem levar a consequências não desejáveis ao longo do tempo. Em outras palavras, significa sublinhar que os processos adaptativos nunca são homogêneos, nem tampouco as características da vulnerabilidade.

É evidente que umas das limitações em se abordá-la a partir dessa perspectiva, está no fato de oferecer um alcance operacional mais restrito em termos de ações que resultem em políticas públicas de alcance geral. O uso de avaliações que se valem de métodos padronizados e prescritivos, que têm como finalidade a mensuração de tais características, geralmente são empregados com uma maior frequência, pois facilitam um exercício comparativo entre o comportamento das condições que integram a formação de uma situação de vulnerabilidade em escalas ampliadas.

Contudo, a forma de abordar a vulnerabilidade nesse trabalho apresenta avanços importantes. O fato de sublinhar a usual assimetria na capacidade adaptativa ou de enfrentamento que cada grupo de agricultores, ou mesmo seus indivíduos, conseguem mobilizar permite uma melhor identificação das múltiplas pressões, ou possíveis causas, a que estão sujeitos. Esse aspecto, inegavelmente, contribui na identificação dos locais e/ou dos grupos em que uma intervenção pontual é mais requerida para promover os processos de ajustamento.


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Vol 27, N°2


Esta revista fue editada en formato digital en junio de 2018 por su editorial; publicada por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela


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