Espacio Abierto Cuaderno Venezolano de Sociología Vol.26 No.3 (julio - septiembre, 2017): 119-137


Uma ilha de agricultura camponesa no meio de um mar sucroalcooleiro: o capital social como estratégia de resistência à penetração canavieira no Cerrado Mineiro no Brasil.

Gustavo Adolfo Corrêa*


Resumo

Este estudo analisa as mudanças através do tempo e espaço do capital social no assentamento rural Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido, Minas Gerais, como fator determinante para a sobrevivência desta comunidade frente à expansão das empresas produtoras de açúcar e álcool na região do Cerrado Mineiro. Além de um valioso capital estruturalmente intangível, o capital social é também uma força de coesão incomensurável e inesgotável entre os seres humanos e permitiu a construção de uma forma de resistência da comunidade no assentamento, gerado no âmbito da reforma agrária, na região denominada Triângulo Mineiro. Este assentamento, em particular, adotou uma forma mista entre agricultura massiva e tradicional para sobreviver. Como metodologia de trabalho foram realizadas entrevistas semiestruturadas com assentados, trabalhadores agrícolas e pecuários, como também entrevistas com parceiros sociais tanto do governo como instituições não governamentais. Os resultados indicam que existem várias formas de capital social e elas estão presentes não só em formas puras e unidimensionais


Recibido: 22-05-2016 / Aceptado: 17-01-2017


* Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil.

E-mail: jaxcocogus@hotmail.com



porque os membros da comunidade têm criado novas formas de estabelecer redes sociais complexas para sobreviver como uma comunidade produtiva. Este assentamento não desapareceu como estrutura social porque seu capital social dinâmico está construindo continuamente uma rede social elaborada, que ainda continua adaptando-se a um mundo global. A globalização da produção de biocombustíveis mudou as fronteiras agrícolas nessa região e, à expansão desse agronegócio, a comunidade tem respondido com a recomposição e a adaptação no intercâmbio cultural, o capital econômico e social para perseguir uma forma pacífica e sustentável de convivência e resistência.

Palavras-chave: Capital Social; Expansão Sucroalcooleira; Reforma Agrária; Assentamento Rural; Biocombustível; O Cerrado Brasileiro.


An island of peasant agriculture in the middle of a sugar and ethanol sea: social capital as a strategic resistance to penetration of sugarcane in the Cerrado Mineiro in Brazil.


Abstract

This study analyzes the changes through time and space of the social capital in the rural settlement Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido, Minas Gerais, as a determining factor of survival of this community to face the expansion of sugarcane companies in the Cerrado Mineiro region. In addition to being a valuable and structurally intangible capital, the social capital is also an immeasurable and inexhaustible force of cohesion between humans that allows the creation of a form of community resistance in this settlement born from the agrarian reform in the Triângulo Mineiro. This settlement, in particular, adopted a mixed form of massive and traditional farming culture to survive. As a working methodology, semi-structured interviews were conducted with community members who work as agricultural and livestock producers, as well as interviews with settlement rural extensionists from government and non-



governmental organizations. The results indicate that there are multiple forms of social capital; they are present not just in pure and one-dimensional forms of social capital because members of the community have created new ways to establish complex social networks to thrive as a productive community. This settlement as a social structure does not disappear because its sophisticated social network is continuously building a dynamic social capital, which is still adapting to a global world. The globalization of biofuel production has changed the agricultural frontiers, and consequently, this community has responded with the reinvention and adaptation of the cultural, economic and social capital to pursue a peaceful and sustainable way of living and resistance.

Keywords: Social Capital; Sugarcane Expansion; Land Reform; Rural Settlement; Biofuel; Brazilian O Cerrado.


  1. Introdução

    A reforma agrária é uma ação de grande impacto social moldada por determinações políticas e econômicas conduzidas a fim de mudar as estruturas da propriedade e da produção da terra. A reforma agrária é vista como um processo de distribuição e redistribuição justa de terras, no qual grandes propriedades ou latifúndios são divididos em pequenos lotes os quais são entregues aos atores sociais rurais, camponeses, que, geralmente, são social e economicamente desfavorecidos nas regiões rurais. A reforma agrária defende o conceito de "terra para quem a trabalha e para quem a necessita." Economicamente a reforma agrária visa resolver dois problemas inter-relacionados que são: a concentração da propriedade da terra em poder de poucos proprietários e a baixa produtividade agrícola, devido a não utilização de tecnologias ou especulação dos preços da terra, o que impede ou rejeita seu uso produtivo. A reforma agrária tem sido promovida em diferentes países por toda a América Latina a partir do século XIX, mas em cada país tem havido modos particulares de implementá-la.

    A reforma agrária no Brasil é um fenômeno que pode ser considerado recente. Embora seja verdade que foram criadas algumas leis sobre a posse da terra, como, por exemplo, o Estatuto da Terra, de 1964, onde o Estado tem a obrigação de garantir o direito de acesso à terra para viver e trabalhar, foi apenas a partir da criação do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), pelo governo, em 1970, que o processo de apropriação, redistribuição de grandes propriedades e entrega aos pequenos agricultores começou realmente. Assim, no âmbito deste processo de distribuição de pequenos e médios lotes de terra aos camponeses, é que aparecem os assentamentos rurais como uma concretização social, econômica e política do que é essa abstração chamada reforma agrária.



    Assentamento rural é “um conjunto de unidades agrícolas independentes entre si, localizadas em um imóvel rural que antes pertenciam a um único proprietário” (INCRA, 2016). Os assentamentos rurais são determinados por vários fatores, tais como: a segurança alimentar em uma determinada região, a necessidade de terras por parte de atores sociais em desvantagem, a geografia e a produtividade do solo na área de produção. No entanto, como os assentamentos rurais são uma forma de exploração da terra quase antagonista à forma tradicionalmente utilizada pelos latifundiários, isso tem provocado uma série de problemas e processos traumáticos desde o seu início até agora. Os assentamentos rurais são muito mais do que a resposta econômica da reforma agrária. São estruturas sociais complexas e dinâmicas em uma luta cotidiana para sobreviver dentro de um sistema de mudanças vertiginosas e globalizadas do mercado.

    Os assentamentos rurais são compostos por pessoas que estão em contínuo risco social. Essas pessoas estão em constante busca por estabilidade econômica e isso determina que sejam estruturas que dependem de uma forte coesão interna e, por sua vez, de uma inter- relação e comunicação com os diferentes atores sociais, sejam individuais ou institucionais externos, a fim de assegurar sua sobrevivência. Enquanto estrutura social, os membros dos assentamentos estão o tempo todo enfrentando uma realidade externa e também buscando uma coexistência interna harmoniosa. Embora os assentamentos possuam um desenvolvimento mais ou menos semelhante, também é verdade que cada um tem necessidades e experiências únicas, dependendo da região na qual estejam situados. É por esta razão que cada assentamento é, em si, uma estrutura social única e não replicável, onde para a sua permanência como uma estrutura social-rural incidem muitos fatores, tais como: o tamanho do território, comunidades próximas, cidades vizinhas, tipos de cultivos na região, sistemas de exploração do solo e relacionamentos interno e externo com determinados agentes ou parceiros sociais, individuais e/ou do Estado. Como dito anteriormente, cada assentamento tem seus próprios problemas e desafios; no entanto, os assentamentos localizados em áreas de agricultura intensiva e mecanizada estão recebendo uma acentuada pressão pela mesma estrutura econômica em que estão envolvidos. Assim, para inserir-se, atualmente, dentro de uma economia globalizada, o Brasil desenvolveu novas tecnologias para a expansão da produção de biocombustíveis, como o etanol e o óleo de dendê paralelamente à gasolina e ao óleo diesel, respectivamente, e essa expansão da fronteira agrícola trouxe novas pressões sobre os camponeses de várias regiões do país. Os assentamentos rurais não têm sido exceção a essa problemática.

    Cada assentamento rural é uma estrutura social particular, mas, como uma generalidade, os seus membros possuem pouco ou nenhum capital econômico para o seu desenvolvimento. No entanto, um assentamento rural é composto por indivíduos que têm uma grande capacidade de sobrevivência e sua subsistência deve-se à forma como se relacionam entre si e com os outros para avançar seu projeto de estrutura socioeconômica. Essa dinâmica suscita uma série de perguntas sobre como tais estruturas têm conseguido persistir e ter continuidade através do tempo e espaço desde seu surgimento até agora. Além disso, procura-se entender se essas mesmas estruturas estão ameaçadas por novos desafios e como os atores nesse processo estão trabalhando para avançar e continuar a construir o sonho coletivo de ter um pedaço de terra para produzir e viver. A única maneira



    de averiguar algumas das observações para os questionamentos citados acima foi visitar a um assentamento rural, que não fosse nem muito antigo nem muito recente e, desse modo, observar através de visitas de campo e de entrevistas com os atores e membros envolvidos na mesma estrutura o que está acontecendo na atualidade para assim fazer certas considerações.

    O assentamento rural escolhido como caso de estudo foi a "Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho", localizado na cidade de Campo Florido, no estado de Minas Gerais. Esse assentamento rural foi escolhido devido à atual expansão dos cultivos para biocombustíveis e, também, devido ao fato de estar situado em uma área com elevada densidade de produção de cana-de-açúcar para a produção de etanol e açúcar. Por esses motivos essa região vem enfrentando uma pressão social e espacial por parte de agentes externos econômica e politicamente mais fortes, como são as empresas envolvidas na produção sucroalcooleira.


    Como metodologia de trabalho foram realizadas entrevistas semiestruturadas com membros da comunidade que trabalham como agricultores e pecuaristas, bem como entrevistas com os parceiros sociais que acompanham e trabalham com eles, como é o caso da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da região de Uberlândia e também com agentes governamentais. A informação coletada é complementada com uma revisão histórica e literária deste assentamento para que se possa ter um quadro geral dos fatos em um período de tempo suficiente, a fim de se compreender as construções sociais criadas entre as famílias para continuar a viver como um assentamento rural. Aqui ressalto a importância dessas estruturas fabricadas por meio de relações interpessoais e como essas relações se tornaram o principal capital para sobreviver: o capital social que tem sido construído desde a sua luta inicial exigindo um pedaço de terra, até os dias de hoje, onde



    eles resistem à investida da agricultura massiva, em especial da cana-de-açúcar, a qual é altamente técnica e desenvolvida para suprir os mercados locais e globais.

    O capital social acumulado por esse assentamento rural foi construído através de diversas formas. Foi assim que os membros da "Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho" desenvolveram sinergias complexas com as empresas produtoras de açúcar em seu entorno, com o objetivo de aprender a negociar com o ‘vizinho rico’. Além disso, desenvolveram também novas sinergias com o Estado como uma estratégia de desenvolvimento e permanência (Evans, 1996).


  2. Características gerais do capital social

    O capital social promove a ação coletiva, o autocontrole (controle social) e a responsabilidade social, agrupando e unindo seres humanos em conjuntos, através da confiança, reciprocidade e respeito pelas ‘regras do jogo’. Bourdieu (2002) define o “capital social” como:

    “O conjunto dos recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis. (...) O volume do capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico) que é posse exclusiva de cada um daqueles a quem está ligado” (Bourdieu, 2002: 280 - 291).

    Coleman sugeriu algo semelhante ao dizer que os recursos socioestruturais são para o indivíduo um bem ou ativo de capital e facilitam certas ações dos indivíduos que se encontram na estrutura social. Como outras formas de capital, diz Coleman, o capital social é produtivo e permite a realização de determinados fins que não são possíveis de alcançar na sua ausência (Coleman, 1990). Putnam também descobriu que o capital social é constituído pelos elementos de organizações sociais, tais como redes, normas e confiança que facilitam a ação e a cooperação para um benefício mútuo, porque, como ele diz, o trabalho coletivo é mais fácil em uma comunidade que tem um estoque abundante de capital social (Putnam, 1993).

    O capital social existe ou está potencialmente presente nas sociedades humanas de uma forma natural e, também, é construído inerente às relações socioculturais vividas e desenvolvidas através de nossa história evolutiva. No entanto, o capital social não está presente nas mesmas quantidades em todos os grupos ou comunidades humanas. A emergência do capital social nas comunidades depende de fatores estabelecidos em relação à convivência e proximidade (como parentesco, casamento, nascimento) e também de acordo com as diferentes visões de comportamento e relacionamento, dos interesses em comum e/ou de alianças estratégicas. Outros aspectos igualmente relevantes são as normas e regras de comportamento, os interesses comuns e também os interesses individuais,



    dentre os quais figuram elementos como lealdade, obrigações, preceitos e, algumas vezes, rupturas momentâneas ou permanentes dos laços que unem os atores sociais, não importa se eles estejam próximos ou distantes de seu ambiente ou estrutura social. O capital social se manifesta de várias formas. Neste artigo são citadas as formas observadas no assentamento rural fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho. No entanto vale ressaltar que existem múltiplas maneiras de construção desse capital a partir de constantes fusões de subtipos de capital social, criados quase que instantaneamente entre os atores sociais no tempo e no espaço, algumas bem mais variadas e complexas.

    No assentamento é possível observar principalmente um capital social individual, que é definido em relações diádicas e ego-centradas (Durston, 2002). Este capital social é fortemente baseado na confiança e interesses mútuos entre duas pessoas da comunidade. É baseado em uma relação informal em que a confiança é fundamental e a reciprocidade é esperada para melhorar essa confiança. Outra forma de capital social observada no assentamento é o capital social de grupo, formado do cruzamento de capital social individual presente na comunidade e que gera uma alta densidade. Esse capital é baseado na confiança e no conhecimento mútuo entre os atores sociais. Por conseguinte, existe um elevado grau de fechamento ou encerramento (closure) das relações, isto é, as relações se cruzam entre si e ocorre uma densificação social, com a qual é formado um grupo capaz de funcionar como uma equipe ou, em outras palavras, como uma empresa comercial. As pessoas adquiriram muita confiança umas nas outras porque acumularam muitas experiências de reciprocidade entre si. No interior dos grupos presentes no assentamento os tipos de capital social têm aspectos afetivos e de poder. Estes grupos, que geralmente são pequenos, têm um único líder, que é a pessoa com maior prestígio e de recursos econômicos ou políticos, que estabelece relações desiguais de poder com os outros membros da comunidade e exerce sobre eles certo grau de controle. É importante destacar que neste assentamento foi possível identificar dois grupos caracterizados segundo sua atividade econômica: o de criadores de gado e o de agricultores. Embora tenham diferentes visões da exploração da terra, eles criaram seu capital social próprio, que é o capital social comunitário. Assim, é observada uma terceira forma de capital social, no nível comunitário, o qual permite que os indivíduos que não são membros dos grupos de poder tenham direito a serem membros da comunidade. O capital social comunitário permite que membros externos também possam ser membros do mesmo assentamento sem ter vivido o processo de criação desta comunidade. O capital social da comunidade é criado pelo mesmo grupo de pessoas por uma questão de interesses comuns a todos e, sem dúvida, um interesse comum de lucro prevalece ante os interesses particulares. Durston diz que: "O capital social da comunidade ou comunitário reside não só em toda a rede de relações diádicas, senão nas estruturas que formam a institucionalidade da cooperação comunitária, nomeadamente no sistema sociocultural próprio de cada comunidade e em suas estruturas de gestão e sanção. Ao nível comunitário, as instituições socioculturais trabalham quando existe o capital social; mas elas não funcionam através do capital de uma pessoa ou grupo em particular, mas como uma propriedade de toda a comunidade” (Durston, 2002: 30).



    Também como uma forma relevante de capital social é o capital social de ponte, que é uma fusão das outras formas de capital, o qual é construído pelos laços criados entre os membros do assentamento e instituições exógenas ou também com atores sociais distantes da comunidade. Essa forma de capital permite que o assentamento possa construir ligações com instituições do Estado e organizações não governamentais, o que amplia o poder da comunidade e lhe confere maior grau de confiança (Woolcock, 1998; Narayan, 1999).

    Nessa construção de capital social, as instituições têm um forte papel. Douglass North define as instituições como conjuntos de regras e valores que facilitam a confiança entre as partes interessadas. Como se observa, as instituições são abstratas, enquanto as organizações são manifestações concretas de cooperação com base na confiança (North, 1990).

    Em seguida, é possível observar uma forma final do capital social, o capital social de escada. Como o próprio nome indica, esse é um capital criado de forma ascendente e descendente entre os diferentes atores sociais. Esse capital é explicado como uma existência de diferenças de poder entre indivíduos e grupos em todos os sistemas sociais, mas esta diferença não é barreira para que existam relações de confiança entre os atores acima ou abaixo, superiores ou inferiores, dentro da mesma comunidade. De fato, existem relações de reciprocidade e cooperação em que o grau de controle e do capital de uma das partes é maior do que dos outros e, assim, conecta-se um ator economicamente fraco verticalmente a outro de grande potência econômica. Desse modo, as empresas produtoras de açúcar estabelecem um relacionamento mutuamente vantajoso com alguns membros da comunidade, em que ambos ganham, bem como novas ligações são estruturadas entre as usinas produtoras de álcool e açúcar com a comunidade e relações mutuamente benéficas acontecem; como no caso da facilidade do recurso de mão de obra local ocupada nas indústrias, que gera lucro econômico de ambas as partes. O capital social de "escada" que existe entre as empresas sucroalcooleiras e o grupo agrícola, por assim dizer, dá acesso a outros recursos econômicos escassos para os membros da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho; recursos esses que apoderam ou entregam um certo poder social à comunidade para resistir e continuarem ativos como assentamento rural.


  3. Assentamento Rural Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho

    Geograficamente esse assentamento rural está localizado no município de Campo Florido, no Estado de Minas Gerais, República Federativa do Brasil, na latitude e longitude de (-) 48,5722, e (-) 19,7608, respectivamente (Figura 1). O município de Campo Florido fica a 70 quilômetros de Uberaba, bastando percorrer pouco mais de 10 km para chegar ao assentamento ‘Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho’, às margens da BR 262. Esse assentamento é macro localizado na Mesorregião Geográfica “Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba”, composta pelas microrregiões de Ituiutaba, Uberlândia, Patrocínio, Patos de Minas, Frutal, Uberaba e Araxá.



    Figura 1. Localização Geográfica do Assentamento Rural

    A Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho faz parte dos 335 assentamentos rurais registrados em Minas Gerais, que cobrem uma área de terra de 885.670,89 hectares. Esse assentamento em particular foi criado em 26 de maio de 1994 e atualmente 112 famílias estão assentadas em uma área de 3.583,58 hectares. Esta região é dedicada à exploração intensiva dos cultivos de cana-de-açúcar, soja e pastagens. Também tem uma avançada exploração de gado para carne e leite, sendo considerada uma das regiões agrícolas mais produtivas no Brasil e, particularmente, em Minas Gerais.


  4. Realidades Internas e Externas na Criação do Capital Social

O ano de criação do assentamento rural Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho é cronologicamente marcado em 1994. Atualmente esse assentamento tem 22 anos desde a sua fundação. No entanto, o início da sua trajetória é mais antigo que essa data histórica. A luta dessa comunidade começa no início dos anos 90, quando cerca de 100 famílias de trabalhadores rurais ocuparam a fazenda Colorado, na cidade de Iturama, com o apoio da CPT (Comissão Pastoral da Terra), da CUT (Central Única dos Trabalhadores), da FETAEMG (Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais) e do MST (Movimento dos Sem-Terra).



No entanto, o grupo foi expulso do território, o que os obrigou a fazer uma peregrinação para outras áreas dentro do Triângulo Mineiro onde repetiram o mesmo processo uma e outra vez, de ocupações e acampamentos, o que durou cerca de quatro anos. Durante esse processo de deslocamento sofreram abusos e pressão dos latifundiários e das instituições de segurança do Estado. No final, em 1994, o INCRA determinou a desapropriação da Fazenda Santo Inácio Ranchinho e assentou ali as 115 famílias em lotes individuais de 25 hectares cada um.

No trabalho de campo foram realizadas entrevistas a pessoas com memória histórica dessa época. Assim, o senhor José Ferreira dos Santos, chamado pela comunidade de José Messias, presidente da Associação Nova Santo Inácio Ranchinho (ANSIR) e membro do grupo original que iniciou o assentamento fala sobre esse período:

“O começo foi muito difícil, suportando fome; e nós vivemos em toldos de plástico, para suportar condições meteorológicas adversas; os fazendeiros vizinhos nos assediaram muitas vezes e destruíram pela violência nossos barracos de plástico. Este processo levou mais de quatro anos. Foi um momento muito difícil que vivemos, mas todos nós tivemos esse sonho de ter uma terra própria para nós mesmos e nossas famílias vivermos. Nós nos unimos, eu os organizei e, assim, fomos capazes de resistir a todos os abusos e injustiças para ser o que somos agora. Toda a gente trabalhou unida para alcançar esse sonho” (J. Messias, comunicação pessoal, Campo Florido, MG, Julho 12, 2014).

Alcançar um sonho significou para esta comunidade que as relações entre os membros se tornaram mais fortes e mais próximas durante esse tempo de repressão por parte das autoridades e proprietários de terras. Eles continuaram graças à criação de um capital social individual, de ego centrado e comunitário, onde cada ator estava lutando para ter um pedaço de terra e as inter-relações surgidas entre esses vários atores foi a somatória que gerou uma capacidade de luta e resistência para alcançar a meta de uma propriedade individual e ao mesmo tempo comunitária.

O mesmo entrevistado, José Messias, que tem ligações diretas com a administração pública local, também explica que o INCRA foi muito importante para a comunidade e que são considerados pela instituição um dos assentamentos mais desenvolvidos da região. Mas ele também diz que através dos anos tem havido uma luta contínua para obter os recursos econômicos do Estado. Assim, esse assentamento só começou a ser produtivo economicamente depois de seis anos de ter se estabelecido. Nesse ponto, destaco que os moradores afirmam que a cana-de-açúcar entra intensivamente e com força no ano de 2002. Assim, essa data pode ser considerada uma data crucial para o assentamento, quando o mesmo deixa de ser produtivamente débil, para tornar-se um gerador de lucro e de bem-estar social para a comunidade.

Podemos observar que a criação desse assentamento também foi um trabalho conjunto entre duas partes interessadas e interconectadas. Primeiramente, por um lado, uma comunidade camponesa sem-terra, organizada para a ocupação de uma propriedade e, em segundo, um órgão do Estado, garantindo uma situação favorável para ajudar a comunidade a ter um pedaço de terra para explorar economicamente. Assim, ambos são



atores sociais trabalhando em conjunto para desenvolver um plano de reforma agrária. O Estado é representado pelo INCRA, entidade responsável pela negociação, acordos, distribuição e redistribuição de terras, apropriação e compensação aos atores envolvidos, entre outras responsabilidades relevantes, para o processo de reforma agrária. Eles são promotores e patrocinadores dos assentamentos rurais, que são, em si, estruturas sócio- rurais produto da reforma agrária.

É interessante observar nesse assentamento como dois grupos poderosos com interesses diferentes existem tacitamente no interior do mesmo grupo criando interesses comuns entre eles, diferenciados por terem diferentes sistemas de exploração econômica. Estes grupos são um dedicado à criação de gado leiteiro e o outro dedicado ao cultivo (produção agrícola). Como foi observado anteriormente, dentro desta comunidade criou- se uma forma típica de capital social de grupo (Durston, 2002). Assim, o grupo dos produtores de leite liderados pelo Sr. Edivaldo Oliveira da Silva é um dos que defendem fortemente a não penetração total da cana-de-açúcar como um meio de sobrevivência. Durante nossa conversa no assentamento ele diz:

"Estamos produzindo leite neste assentamento. Alguns de nós também têm bois para corte. Esta região tem sido tradicionalmente uma região de gado, na verdade, antes que esta fazenda fosse nosso assentamento, aqui foi de produção de gado. Esta terra costumava ter muito pasto para os animais. Nós que nos dedicamos ao leite vemos a entrada da cana muito mal. A cana consome muita água; a cana-de-açúcar também pode contaminar nossas águas pelos produtos químicos que eles utilizam e quem sabe mais o quê. O leite, mesmo com as variações de preços, nos permite viver bem” (E. Silva, comunicação pessoal, Campo Florido, MG, Julho 12, 2014).

Como é citado acima, o Sr. Edivaldo Silva tornou-se, por assim dizer, o líder natural dos produtores de leite e, desse modo, passou a exercer algum controle sobre outros produtores, porque eles têm visto nele, ao longo dos anos, uma pessoa honesta, leal e dedicada à causa dos laticínios no assentamento. A construção desse capital social do grupo é devido à confiança por ele adquirida e nele depositada pela comunidade e fica evidenciado que ele é a pessoa que os representa como um grupo de poder em qualquer lugar de decisão sociopolítica, seja interna ou externamente; dentro ou fora do assentamento.

No assentamento, foi observado que há uma central de coleta de leite, para onde o produto ordenhado é levado por cada produtor ou transportado em carroças movidas por cavalos, burros e mulas. Ao chegar na central o leite é resfriado e armazenado até que um caminhão faça a coleta que é realizada regularmente. Durante uma visita à sua propriedade foi possível observar também uma instalação mecanizada de ordenha e cultivo de pastagens para o gado. O senhor Edivaldo Silva diz: “A vocação deste assentamento está se comprovando que é mesmo para a pecuária leiteira. São mais de duas mil cabeças que produzem 2,3 mil litros de leite por dia neste lugar”. No lote de Edivaldo da Silva, a estrutura comprova que os investimentos estão dando retorno, mas essa situação não é a mesma para o outro grupo que se dedica ao trabalho puramente agrícola.



De fato, durante os anos seguintes à criação do assentamento, a comunidade foi dedicada à emulação dos sistemas de subsistência adaptados à produção em massa. Foi assim que eles se dedicaram à produção de mandioca, abóbora, feijão preto e carioca, soja e outras culturas adaptáveis para a área. No entanto, as flutuações de preços e a falta de políticas de marketing causaram graves prejuízos para os assentados. Alguns autores, como Souza e Cleps, também afirmam que anteriormente o fracasso econômico dos camponeses assentados nessa região do Triângulo Mineiro foi devido às dificuldades de acessibilidade ao crédito rural e políticas públicas equivocadas de reforma agrária que não conseguiram gerar lucratividade e garantir a subsistência adequada dos agricultores (Souza e Cleps, 2008).

Por volta de 2002, o cultivo de cana-de-açúcar começou a entrar em alguns lotes do assentamento. Em princípio, a entrada foi em pequena escala, com contratos muitas vezes apenas verbais, gerando um capital social individual informalmente construído com base na confiança entre fornecedores de cana para as usinas vizinhas e alguns dos assentados em Nova Santo Inácio Ranchinho que entravam na negociação. Como vimos anteriormente, esse capital social construído com os produtores sucroalcooleiros estava fortemente baseado na confiança e interesses mútuos entre esses dois agentes sociais rurais.

Nesse momento havia começado a penetração da cana-de-açúcar no assentamento. No entanto, é importante saber quando a presença da cana se torna notória para a comunidade. Há séculos a cana está na agricultura brasileira, mas não era uma cultura determinante para essa região como se tornou a partir de 2002, uma vez que antes havia pastagens e também outros cultivos, como de estadia ou culturas chamadas de sobrevivência. Aqui, para compreender a importância do novo cultivo, outro assentado é entrevistado, o Sr. Antônio Francisco de Souza. Ele possui uma quantidade significativa de plantio de cana em seu terreno e, no relato abaixo, o mesmo descreve bem a crescente relevância que ela adquiriu nos últimos anos:

"É verdade que eu sei da cana-de-açúcar nesta região por muitos anos, ou seja, desde quando eu era criança, mas a entrada de cana para o assentamento começou mais ou menos em 2002. Depois disso teve outra entrada forte entre 2007 e julho de 2014 e hoje posso dizer que cerca de 60% de nós temos cana em nossas parcelas de alguma forma, no todo ou em parte; quer dizer, como aluguel às indústrias ao redor ou para despesas de consumo da mesma estrutura familiar, como também para alimentar porcos de engorda ou alimentação do gado. Assim mesmo, até os leiteiros alimentam seus animais com cana- de-açúcar” (A. Souza, comunicação pessoal, Campo Florido, MG, Julho 14, 2014).

Na verdade, vale salientar que a cana-de-açúcar é utilizada na região por ambos os grupos. Isso significa que os pecuaristas fazem uso da cana para alimentar seu gado enquanto o grupo de agricultores a utiliza como cultivo principal e recurso econômico. A cana-de-açúcar, neste caso, tem múltiplos usos para a comunidade, como energia e fonte de renda.

Sobre a criação de capital social de ponte, observa-se a influência de dois atores externos

sobre a comunidade: o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a



Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT é um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vinculado à Comissão Episcopal para o serviço da caridade, da justiça e da paz; o INCRA é uma autarquia federal da administração pública brasileira.

A CPT, nas palavras do coordenador geral da comissão no Triângulo Mineiro, Frei Rodrigo Péret, realiza um trabalho de acompanhamento em áreas de assentamento e movimentos de luta pela terra rural. Dependendo das necessidades, ela presta auxílio com assessoria, tanto jurídica como também técnica, nas questões de conflitos do assentamento. A CPT atua a partir de uma ótica de justiça ambiental, procurando aprofundar toda a reflexão em relação à questão da reforma agrária, ao relacionamento das pessoas do assentamento com o modelo de desenvolvimento atual no qual vivem, quais são os impactos que ele causa e, ainda, na perspectiva de reflexão teológica e bíblica.

A Comissão Pastoral da Terra, enquanto uma instituição não governamental, se preocupa com a expansão da cana-de-açúcar na região e o seu impacto sobre o assentamento. Assim, Frei Rodrigo Péret afirma:

“Talvez o enfoque mais interessante para reflexão seja o fato de que a região sofreu transformações no final da década de 60, onde o Brasil é impulsionado para o que foi chamada a calcificação da agricultura. Então esse casamento da agricultura com a indústria mecânica, química e com o capital econômico, isso fez uma transformação no perfil de exploração agrícola e no perfil da região do Triângulo Mineiro. A cana entra e assume um papel de avançar em cima de áreas de pastagens, concorre com algumas culturas, como a soja, o milho, o sorgo, então, se a gente vai olhando a série histórica da região, a área que a produção agrícola ocupa e a área que a cana-de-açúcar ocupa. Existe todo um discurso de que o etanol é para a produção de combustível biológico - isso é uma grife, não é uma realidade – mas, aí criam o tal de biocombustível, e você tem então, toda uma propaganda e toda uma movimentação para se transformar esse produto em uma commodity internacional e global. Algumas propriedades continuam, mas você já não percebe mais as propriedades pelas suas fronteiras, pelas suas cercas. A cana ela tem essa particularidade de que ela é plantada de uma forma tal que vai ‘arrancando tudo’ e não fica nada. Então você vê quilômetros, se você sai daqui para São Paulo, a partir de Uberaba, você vai até Ribeirão Preto, praticamente, é só cana” (R. Péret, comunicação pessoal, Uberlândia, MG, Julho 10, 2014).

A cana-de-açúcar foi latente na região no passado, mas era cultivada juntamente com outros produtos. Somente após a massificação da agricultura mecanizada no Triângulo Mineiro que ela veio a tornar-se mais forte e começou a ocupar os espaços deixados por outras culturas que se voltaram menos rentáveis. A expansão da cana-de-açúcar na região não foi difícil porque ela superou a pastagem já estabelecida antes. Pode-se dizer que houve uma substituição entre duas variedades de pastos; uma pequena, usada para alimentar o gado e que foi substituída por outra maior e mais doce, que é a cana-de- açúcar. No entanto, a cana trouxe outras necessidades cruciais como o uso de mais água, o uso de agroquímicos e uma intensiva mecanização, fatores que mudaram a dinâmica da agricultura nessa região.



Alguns autores falam de alternativas de desenvolvimento para substituir a monocultura da cana-de-açúcar, criando uma outra via para sustentar os pequenos proprietários nos assentamentos rurais, como é o caso de Santo Inácio Ranchinho. A CPT está focada no acompanhamento a este assentamento sobre uma premissa básica que é a segurança alimentar, mas esse propósito tem que ser com base em realidades. Frei Péret explica melhor sobre essa meta:

“Eu creio que não se trata de uma alternativa de mudança da cana; são várias ações que deveriam ser contempladas ao mesmo tempo porque, de qualquer jeito, é verdade que a cana ela entra também na perspectiva energética. Então, a primeira discussão que deveria ser feita é que tipo de agricultura é a que nós queremos, se é uma agricultura para alimentos ou se é uma agricultura para energia. Acho que essa é uma grande pergunta, e aí, é lógico, levando em consideração a segurança e soberania alimentar. Toda discussão no futuro tem que ser baseada levando em consideração esses dois horizontes, de segurança alimentar e energética, onde eu não descarto a necessidade da diversificação das matrizes energéticas” (R. Péret, comunicação pessoal, Uberlândia, MG, Julho 10, 2014).

A CPT tem uma vocação de ajuda às comunidades visando fortalecer o bem-estar geral. Eles contam com advogados, engenheiros, trabalhadores sociais e outros profissionais comprometidos com os assentados para estabelecer ligações múltiplas com agentes externos bem como com outras organizações não governamentais e a classe política regional e estatal. Além disso, eles servem como mediadores junto aos agentes do governo e ajudam a encontrar pontos de acordo entre os atores que trabalham para o desenvolvimento da comunidade.

O governo, representado pelo INCRA, também está preocupado com a introdução da cana-de-açúcar nos assentamentos. Nesse sentido, criou-se um conjunto de regras para determinar uma espécie de barreira à entrada dessa cultura nas propriedades, estabelecendo uma porcentagem máxima de cana cultivada em cada um dos lotes de terra. Além disso, o INCRA desenvolveu leis e regulamentos para controlar a possível venda dos terrenos, o que destruiria os assentamentos, produzindo a perda do objetivo principal da reforma agrária que é a produção agrícola sobre novas estruturas econômicas e sociais, como são as unidades de agricultura familiar representadas pelas famílias do assentamento. Assim foi criada pelo INCRA a Instrução Normativa nº 71 de 2012 em que são padronizadas as ações e medidas a serem adotadas pelo INCRA nos casos de constatação de irregularidades em projetos de assentamento de reforma agrária. Com esta normatização o INCRA é a instituição competente que pode fazer o processo de titulação e qualquer transação de compra ou venda de terrenos. Antes, a titulação não era coberta pela lei. O INCRA, como entidade governamental, afirma que deseja, por todos os meios, proteger os assentamentos rurais da desintegração. Em uma entrevista em Belo Horizonte à Chefe da Divisão de Obtenção de Terras de Projetos e Implantação de Assentamentos do INCRA, engenheira Silvia Helena Ferrari, ela enfatizou o papel exercido pela instituição sobre a legalização de prédios:

"O processo de titulação só é dado quando todas as famílias do assentamento

regularizarem. Regularizar significa que todas as famílias, em conformidade com os



requisitos de exploração agrícola familiar, tenham a permanência e estejam cumprindo os objetivos da unidade de agricultura familiar. Antes da titulação qualquer transação econômica feita com base na terra ocupada pelo assentado não é legal. Além disso, 80% das famílias as quais se estabelecem devem ser regularizadas para iniciar o processo de qualificação para a titulação. No assentamento Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho isto não aconteceu ainda. Não existe até agora uma norma ou regra legal de alugar a terra nos assentamentos. O INCRA mantém zelando para o cumprimento da reforma agrária. O INCRA ajuda os assentados para adquirir o capital cultural que será usado como ativo na produção econômica, através de cursos ministrados por instituições de assistência técnica, tais como o Agrolago, por exemplo, que está trabalhando na região para ensinar novas alternativas de produção, como cursos de laticínios e outros cursos de interesse para os assentados” (S. Ferrari, comunicação pessoal, Belo Horizonte, MG, Junho 24, 2015).

A cana-de-açúcar é vista como um problema pelas pessoas de fora do assentamento, no entanto, existem também outros problemas mais cruciais. Um exemplo é a chegada de pessoas externas que não viveram o processo de luta para a formação do assentamento. Ninguém sabe ao certo como eles chegam à comunidade, mas o fato da presença de "novos assentados" tem impactado a atenção em níveis regionais e nacionais. Na verdade, este fenômeno é discutido por alguns autores, como veremos a seguir, como a possibilidade do colapso da reforma agrária. Isso parece lógico, mas dentro da comunidade esta realidade é muito diferente. Há um argumento (Portes, 1998) que a adesão a um grupo social tende a excluir o acesso aos recursos por parte dos atores sociais externos à comunidade. Ainda mais, para que as instituições do capital social trabalhem eficientemente é fundamental definir, com toda clareza e precisão, quem é elegível e quem não têm direito aos benefícios derivados da participação no grupo. Certo subconjunto de usuários de tais recursos comuns tem o poder de excluir outros de acesso e direitos de uso (Ostrom, 1999). Existe, sim, a possibilidade de expandir a identidade do grupo para incorporar outros setores que sofrem os mesmos problemas (Evans, 1996), o que traz consigo a possibilidade de expandir espacialmente o raio de cooperação (Fox, 1996).

Consequentemente, visitando o assentamento, é possível testemunhar na comunidade, como dizem os autores acima citados, que ela desenvolveu um complexo capital social comunitário para lidar com o problema dos "novos assentados" que alguns chamam de "assentados oportunistas”. Assim, os mesmos membros do assentamento fazem suas próprias avaliações e determinam se o novo assentado, que geralmente substitui um antigo assentado, tem as condições e a intenção de ser ativo na comunidade. A comunidade da Fazenda Nova Santo Inácio desenvolve quase um ritual de construção de capital social com o novo membro da sua comunidade, deixando claro para o novo agente social quais são as condições e regras e, por sua vez, ao que tem direito, ao que ele não tem direito e quais são as suas responsabilidades e obrigações dentro da estrutura social já criada por eles.

Aprofundando ainda mais na questão, Ostrom fala que os Estados facilitam o comportamento cooperativo e a produção de bens coletivos de várias maneiras. Também, que isto ocorre normalmente através de coerção - intervenção direta ou indireta do



Estado para obrigar as pessoas a formar grupos cooperativos (Ostrom 1997, 1999). Os Estados propiciam o comportamento cooperativo e a produção de bens coletivos de várias maneiras. No entanto, além-percebidas como ameaças de coerção por parte da comunidade, as determinações do Estado são muitas vezes envolvidas na facilitação do comportamento cooperativo entre os membros das comunidades. Neste caso, o Estado, representado aqui pelo INCRA e as pessoas do assentamento têm uma relação sinérgica contínua para proteger a comunidade de desaparecer enquanto uma estrutura rural camponesa. O Estado viabiliza a tramitação de créditos incentivando a criação de capital econômico, apoia cursos para aumentar o capital cultural através da educação e formação mas, também, estabelece regras para evitar a venda, compra ou arrendamento das propriedades. A comunidade, sobremaneira, tenta fazer os melhores acordos com as empresas de açúcar ao redor e também estabelece contatos com organizações não governamentais, como é a CPT, para sobreviver economicamente. A sinergia é dada entre os atores que precisam uns dos outros: um Estado que quer realizar um projeto de reforma agrária e uma comunidade que quer viver decentemente no tempo e espaço futuro.

No arrendamento de terras nas áreas de assentamento podemos ver que os agricultores têm feito acordos e contratos de aluguel de suas terras em termos e condições diferentes. Assim, eles explicam que o processo de arrendamento é, por assim dizer, um tempo de espera até se encontrar, no futuro, qual tipo de uso poderá ser dado à terra, isto é, que tipo de cultura além de cana-de-açúcar poderão plantar para a obtenção de uma renda fixa e um desenvolvimento econômico sustentável. Os camponeses olham o processo de arrendamento como uma alternativa viável para o progresso econômico e, também, como um período de espera, tendo em vista, ao mesmo tempo, uma melhor oportunidade socioeconômica.

Cabe esclarecer que os chamados capitais sociais criados nesse assentamento rural têm permitido a sobrevivência até o tempo atual, mas esses capitais sociais se encontram em um processo dinâmico de mudança. Também, cada forma de capital social não está presente na forma pura e, em vez disso, eles se encontram misturados e fusionados em diversas formas de interconexão social e pessoal.


  1. Considerações finais

    Os membros do assentamento rural Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho construíram redes sociais elaboradas, criando assim um grande, forte e sofisticado capital social. Atores externos tais como assistentes sociais, profissionais de extensão rural, dentre outros, têm visto sérias ameaças da indústria sucroalcooleira de fraturar essa estrutura social rural. No entanto, existem sinergias entre esta comunidade e funcionários do Estado que lhes permitiu continuar e expandir a comunidade socialmente e fazer dela produtiva economicamente. Como explica (Ostrom, 1997), eles estabeleceram uma sinergia com agentes do governo que também estão interessados na sobrevivência deles. Além do mais, os assentados criaram redes de apoio com outras organizações não governamentais que estão focadas na segurança alimentar, mas precisam criar redes de mercado, distribuição



    e financiamento para fazer mais rentáveis os cultivos e as atividades diferentes da

    exploração sucroalcooleira.

    A relação entre alguns dos assentados e as empresas canavieiras vizinhas é mutuamente benéfica, bem como é feita por necessidade, devido a uma realidade econômica em mudança, onde as culturas tradicionais não produziram os resultados esperados. Mais ainda, os camponeses aprenderam que a cana-de-açúcar também pode ser um poço de energia para o gado como alimento, bem como de crescimento econômico estabelecido temporariamente.

    Um fator de enfraquecimento na construção de capital social dentro da comunidade estabelecida é a diversidade de conhecimento agrícola dos primeiros assentados. Muitos não eram agricultores e o processo para os que não tinham conhecimento e destreza como agricultores para tratar de gerar lucro econômico de suas terras havia sido traumático e difícil.

    O acesso à terra permitiu às famílias melhores estratégias de estabilidade e assim uma maior possibilidade de reprodução familiar e de reformulação econômica que, em geral, produz melhores rendimentos e condições de vida, especialmente quando se considera a pobreza e a exclusão social, o que caracterizava muitas dessas famílias antes de entrarem em projetos de assentamento.

    Atualmente, a população que vive na Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho tem influência demográfica sobre toda a população geral da região e mais notadamente sobre a população do município a que pertencem que é Campo Florido, MG. De fato isso levou à criação de um forte capital social com o governo municipal. Este capital permitiu a participação dos moradores do assentamento em cargos burocráticos e de representação política local, o que lhes deu grande força, mobilidade e capacidade de governança. Outra possível consequência da presença desse assentamento em Campo Florido é que ele contribuiu para redesenhar a zona rural, modificando o território, o padrão de distribuição da população, o fluxo e design das estradas, mudando o padrão de produção e reforçando esse município dentro do mapa social, econômico e político da região.

    No período que imediatamente antecede o assentamento, uma quantidade significativa da comunidade estava envolvida em atividades agrícolas, como trabalhadores rurais permanentes ou temporários, posseiros ou arrendatários e alguns até trabalhavam com os pais ou outros parentes na agricultura. No entanto, há uma grande distância entre aquele que está sendo pago como trabalhador agrícola ou assalariado e um produtor rural. Na verdade, para se tornar produtor rural há normalmente dois modos principais. Um, é sendo filho de produtores rurais e assim adquirido um capital cultural como produtor rural pelo capital social gerado por laços familiares. O outro, é através das escolas agrícolas técnicas ou vocacionais. Assim, é possível facilmente encontrar no assentamento fraturas no capital social da comunidade devido às diferentes perspectivas e as prospectivas econômicas de alguns dos camponeses.

    Para as empresas sucroalcooleiras é importante ter disponíveis os recursos da cana- de-açúcar o mais próximo de suas usinas. E é por esta razão que eles tentam contrair



    a maior quantidade de terras que os rodeiam. Os pequenos e médios proprietários das terras já haviam alugado ou vendido seus lotes para se deslocarem para outras áreas. Assim, o deslocamento para outras regiões do Pantanal, como Mato Grosso e da Bacia Amazônica, está propiciando problemas que ainda não podem ser avaliados. As pessoas dos assentamentos permanecem em suas propriedades porque não podem vender devido às restrições legais ou porque acreditam nos programas da reforma agrária e na rentabilidade futura de seus cultivos. Mas, em qualquer caso, os agentes sociais externos, como INCRA e CPT, têm contribuído de muitas maneiras para que os assentados permaneçam e sobrevivam enquanto uma comunidade rural, com uma agricultura camponesa no meio de um mar de agricultura mecanizada sucroalcooleira.


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Vol 26, N°3


Esta revista fue editada en formato digital y publicada

en septiembre de 2017, por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela


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